Wednesday, December 27, 2006

Perfeição I (só os sonhos são perfeitos)

Quando o vejo deitado ali, ressonando alto, sem sonhar, lembro sem querer da vez em que nos conhecemos, num desfile de carnaval. A multidão estava na avenida, uma multidão de bêbados alegres, e qual era a chance de termos nos conhecido entre tanta gente? Não sei. Existe estatística do passado? Podia ter sido de outra forma, apenas se eu decidisse demorar um minuto a mais nalgum ponto, ou se não tivesse desistido da fila da cerveja um pouco antes, ou se não tivesse olhado para ele no momento exato. Poderia não olhar? Poderia mesmo? Acho que não.

Mas quando estou ali, e ele também, e durmo, sonho sempre com aquela praia, ou campo, não sei, deserto, e estou sempre em movimento, sem vir de lugar algum, sem ir para nenhum lugar, que eu saiba, pelo menos. Eu só ando, e não há nenhum pensamento de ninguém, nem dele; talvez, não tenho certeza, nem de mim mesmo. Pode ser uma metáfora, a praia, campo... pode ser uma metáfora, ele. Ou eu.

Cada imperfeição nele me lembra tantas imperfeições minhas, agora que penso nisso, que talvez só a praia seja perfeita; a praia que não está mais em lugar nenhum, que nunca existiu de verdade. A praia é o que sobrou de tudo que abstraí, tudo que era imperfeito, que eu subtraí... Nos sonhos não temos consciência - a consciência é a imperfeição. Os sonhos são perfeitos.

Perfeição II (em busca da perfeição, na prática)

Desde o início ele nunca fez parte da praia. Quando o conheci, já conhecia a praia - que julgava perfeita - e meus sonhos de verão, das noites e dos dias, eram sonhos de personagens alegóricos, hipotéticos.

Cada pessoa real que conhecemos nos ensina mais. Mas não se trata de um ensinar didático, não é uma soma de conhecimento, é uma troca. Tiramos de um protótipo o que a pessoa não tem e adicionamos o que desconhecíamos - aquilo que normalmente chamamos aprendizado, o que ele ou ela tem, e que para nós é novidade.

Com o tempo, não avançamos muito, apenas ficamos sobrecarregados de protótipos, de comparações, de fantasmas que rondam a nossa cama para nos lembrar de como eram melhores nisso e naquilo, afligindo-nos com a culpa de jamais estarmos satisfeitos apenas porque sonhamos alto demais? E quem se importa com fantasmas? Os fantasmas, hoje, são as inúmeras possibilidades, mesmo de quem nunca conheceu ninguém, mas tem seus protótipos de outros lugares quaisquer, da TV, das revistas coloridas, da Internet, coisas recentes na história. Talvez a libertinagem seja um exorcismo do excesso de protótipos modernos, talvez seja a busca de um modelo mais humano, talvez seja a satisfação da curiosidade para que possamos um dia recostar a cabeça e dizer com orgulho: Nada me falta! Nada me é estranho! E olhar para o lado e ter certeza que aquela companhia foi escolhida entre mil, e com gosto.

Mas o tempo, oh! o grande arauto da escolha! Os anos passam, e são poucos os que melhoram com os anos! Se no início da busca tivéssemos nos dado por satisfeitos com aquele que, hoje, elegemos o melhor! Mas como! Como poderíamos eleger qualquer melhor sem conhecimento de causa? Não precisamos rodar o mundo inteiro para retornar para dentro de nós mesmos?

Certo está quem experimenta, mas seguro está quem escolhe. Se a questão hoje ainda é fazer escolhas. Ninguém quer envelhecer sozinho, ou ninguém quer envelhecer? Existe filosofia para o amor? Receita para a felicidade? Moderação, é claro, até na moderação!

Que os deuses me ajudem a conservar-me inteiro para mim e para o ser escolhido, e que me dê memória para o que eu encontrar pelo caminho, e sabedoria para comparar; oportunismo, humildade e confiança para escolher. E sorte, para olhar para o lado na hora certa, sem precisar olhar para os lados o tempo todo. Sorte, que o acaso é o deus maior, o mais cruel e o mais bondoso.

Tuesday, December 26, 2006

Não vendo, não dou, não empresto

Andei lendo a respeito das várias formas de conseguir sonhos lúcidos, aqueles sonhos nos quais você sabe que está sonhando e, assim, consegue ter algum controle sobre o que acontece do lado de lá. Fazem uns dois anos que voltei a dormir em rede, e posso afirmar que meus sonhos são muito mais ricos agora do que à época em que eu dormia numa cama.

Meu quarto tem ganchos para rede colocados na altura exata que me permite deitar ao nível da janela, vendo do lado de fora os sinais da noite e do amanhecer. Deixo no chão um ventilador que me refresca através da rede, e pendurado na aba móvel da janela - aberta - um lençol que invariavelmente puxo no meio da madrugada, quando o mormaço do início da noite dá lugar ao frio leve da madrugada. De vez em quando eu acordo, mudo de posição, olho para fora, escuto os gatos se pavoneando ou brigando no quintal, mas sem perder completamente a semi-consciência do sono. É sabido que sonhamos algumas vezes por noite, durante os momentos em que nossos olhos se movem rapidamente (chamados de fases REM - Rapid Eyes Moviment). Também se sabe que apenas nos lembramos dos sonhos quando acordamos durante a fase REM, e quem acorda apenas pela manhã, com o despertador, fora de uma fase REM, acaba tendo a impressão de não ter sonhado nada.

Felizmente, tenho o sono leve. Os pássaros começam a cantar às cinco da manhã, e já me acostumei a acordar com eles, mas permaneço na rede. É até possível que eu acorde todos os dias a essa hora, mas nem sempre me lembro. O que sei é que criei o hábito de semi-acordar diversas vezes durante a noite, e com isso consigo "costurar" um sonho ao outro, não na forma exata de um sonho lúcido, mas algo como um longa-metragem, como uma sucessão de ondas oníricas que, às vezes, decorrem tão belamente quanto uma senóide perfeita, e me dão o prazer de sonhar cidades inteiras, com tramas de aventura complexas e às vezes interligadas às tramas de outras noites.

Foi o que tentei explicar para alguns amigos que não entenderam como podia eu, brasileiro, em pleno século XXI, dormir numa rede tendo dinheiro para comprar quantas camas eu quisesse. Poderia até comprar as camas, ou mesmo uma só, mas isso seria um pouco como vender meus sonhos - o que está, evidentemente, fora de cogitação.

Wednesday, December 20, 2006

No escuro

Seu lento caminhar escondia um medo.
Tudo o que é lento teme.

Seus passos ecoavam no escuro da noite, entre os muros pichados de construções vazias. A avenida larga, reta, deserta, sombria, sinistra e comprida levava-o ao destino distante, ainda vago.



Dentro de um ônibus um jovem retornava pra casa. O amanhecer já suspirava aos mais atentos, o céu ainda azul-chumbo. No banco oposto ia um negro, forte, discreto. Mais à frente dois outros homens, todos quatro isolados, cada qual em seu assento duplo, pensamentos solitários.

O jovem podia ouvir vozes. Não sabia se as expressões nas faces alheias corroboravam os pensamentos que acreditava ouvir, ou se os ouvia já consciente - inconsciente - de suas faces; ou se, por fim, entendia o que ouvia só depois de ter visto em suas faces um sentido que lhe parecia ouvir. Por vezes, os olhava; noutras, evitava-os. Tinha em sua mente pouco mais que um catálogo de vozes possíveis, de vozes improváveis, e daquelas desejáveis. Apenas raramente diria as palavras que queria, sem nunca estar certo da reação a conseguir.

As vozes que ouvia não o deixavam louco, ou vice-versa. As vozes que ouvia eram apenas um reflexo das vozes que desejava ouvir. Seu passatempo era caminhar na noite, onde podia ouvir melhor o silêncio.

Agora, antes da aurora, ele pressentia uma grande alegria e uma grande tristeza. De imediato, no lado oposto da avenida, três cansadas figuras se movimentaram à visão do ônibus longamente aguardado, como quem verte areia das juntas, despejando uma alegria incômoda, cansada, contida. Mais à frente ele viu o veículo que os redimia. Uma grande alegria, e tão pouco júbilo. Olhou para o negro ao seu lado, mas seus olhares se cruzaram. Por um instante um mar de possibilidades lhe ocorreu, só para em seguida umedecerem-lhe o impulso atento da visão. Sem desviar o olhar, olhou para dentro de si. Depois desviou o rosto, de volta ao caminho que o ônibus redentor riscou no asfalto negro do outro lado da via. Sua grande tristeza.



Tudo o que é lento teme. Seus passos buscavam o caminho, mas os olhos perscrutavam o céu. Ou à frente, nas sombras e esquinas, vestígios de movimento. Uma bifurcação em T, à esquerda, levava à rua de baixo, uma opção. Alguma intuição lhe contou o destino: perigo ou tédio. Pressentimento ou ilusão, não importa. Tinha uma escolha a fazer, e escolheu decidi-la como mais que geometria. O tédio era sempre o mesmo. Nada que fizesse o ajudaria. Seria sempre o amanhecer insípido, a margem da lágrima; o esperar - entre os acordes. Escolheu o perigo. Desceu a rua lateral, estreita, escura, equivocada. No seu tímpano, o pensamento de que errara. Dobrou a esquina, a rua escolhida se escondia no horizonte invisível, negro, distante.

Primeiro ele achou que ouviu um suspiro, uma espécie de estampido, um fôlego; depois foram os passos; depois sua cara queimando no asfalto quente, o sangue ficando entre restos de carne. Sobre seu braço um peso descomunal, quase a quebrá-lo. No outro, uma pressão de mão segurando forte. Nas costas um joelho a triturar sua coluna. Depois, a intimidade. Seus dois braços suspensos atrás da cintura, uma mão de tenaz prendendo os pulsos, o bafo na nuca, cheiro de álcool, medo e suor. O peso insuportável. Tentou desvencilhar-se, mas um braço musculoso envolveu seu pescoço, o outro arriou a calça. Sentiu o volume que forçava, rígido; a rua escura e deserta, o asfalto frio e humilhante. A solidão. A solidão.

A primeira estocada foi como uma faca, a segunda foi pior. E assim as outras. O outro corpo imobilizava seu braço esquerdo; o braço no pescoço quase estrangulava, mas não pretendia. Suas pernas eram inúteis. Sentiu o sangue queimando nas entranhas, cheirando a medo, a dor, a revolta. As estocadas ficaram mais fundas, pareciam alcançar o fundo oposto do cérebro. De repente, o gozo. Uma espuma quente o preencheu como um nada. Depois o outro parou e retirou, devagar, o órgão entumescido, enquanto afrouxava o braço. Foi como se sentisse compaixão, ou afeto, talvez.

Ele se levantou e encarou o homem, que já se afastava. Tentou correr, mas não conseguiu. Suas pernas tremiam, sentiu o rosto se contrair; os passos só funcionavam lentos, cambaleavam, confusos.

No meio da noite o outro sumiu, tão sutil como tinha vindo, invisível; e, mais uma vez, saciado.

Thursday, December 14, 2006

Da qualidade de um texto enquanto legibilidade

Saber ler é uma habilidade muito ampla. Ler é reunir palavras e tirar delas o seu sentido, mas múltiplos sentidos podem se esconder nas mesmas palavras. Alguns autores buscam a complexidade intencionalmente - segundo Schoppenhauer, têm como objetivo disfarçar o fato de não terem nada de interessante a dizer. Quem tem algo a dizer - e deseja ser compreendido - busca o máximo de clareza e o mínimo de palavras.

Porém, mesmo escritores (que se julgam) claros sofrem com a falta de compreensão de seu trabalho. Entra aí o outro lado da escrita - o leitor e sua vontade de compreender.

Num mundo onde existem milhares de escritores reconhecidos, que vendem um bom número de cópias ainda em vida, nos quais podemos esperar encontrar um conteúdo inusitado, interessante, curioso, - como podemos entender que séries inteiras de livros semelhantes sejam vendidos? Por exemplo, Operação Cavalo de Tróia e suas intermináveis continuações. Será tão difícil encontrar um bom autor, a ponto de justificar a fidelidade a um único artista, havendo tantos e tão variados no mercado?

Aí é que está: o mercado é formado pelo grosso das pessoas, pelas maiorias, e a maioria não quer desafios intelectuais. A maioria não quer criatividade, não quer novidade, não quer aventuras. A maioria quer recostar a cabeça com tranqüilidade no mesmo lugar de sempre, e deliciar-se com o mesmo, passar o tempo de modo seguro, previsível, tendo tudo sobre controle. O desejo de controle é o novo vírus do comportamento - ou talvez nem tão novo assim.

Os textos são considerados legíveis na medida em que não tragam novidades ao leitor. Pode parecer absurdo, mas muita gente lê o que já sabe, apenas para ajudar a suportar a passagem do tempo, que de outra forma seria intolerável. Assistem a programas como Zorra Total, onde as piadas são sempre as mesmas, e as pessoas já sabem do que rirão e do que não. Lêem livros espíritas ou de auto-ajuda onde casos (ligeiramente) novos vêm reiterar os mesmos preceitos morais. Mas se o leitor já conhece a moral da história, para que lê-la? Apenas para suportar a passagem do tempo num mundo tão repetitivo.

Parece um raciocínio circular e absurdo, já que a repetitividade do mundo vem da própria falta de inovação das pessoas que repelem a repetitividade. Mas a circularidade e o absurdo me parecem as características mais gritantes da história. Pouquíssimas pessoas lêem para variar, para se instruir ou se acostumar a um ponto de vista até então desconhecido. Por isso autores de best-sellers fazem fortuna vendendo vários outros livros depois do primeiro. E logo depois caem no esquecimento, quando surge outra pessoa para ocupar o primeiro plano da opinião pública.

Voltando à legibilidade, Nietzsche é um exemplo instrutivo por dois motivos: primeiro, ele derrubou inúmeros mitos com suas perspectivas contudentes e sua prosa ferina, influenciando decisivamente áreas do pensamento como o existencialismo, a filosofia analítica e a psicanálise. Mesmo assim, continua sendo debatido apenas em círculos acadêmicos restritos, não chegando a afetar o dia-a-dia das sociedades que tanto desejou mudar. Segundo, seus estudos de filologia clássica, aliados a uma inteligência excepcional, funcionaram como uma viagem ao redor do mundo, extirpando seus preconceitos e forçando-o a ver além do pensamento único de seus contemporâneos.

Se Nietzsche soubesse dos avanços que seriam alcançados nos transportes de longa distância e nas telecomunicações, imagino que ele previria uma relativização constante da moral, como sempre insistiu, graças às viagens e ao conhecimento mútuo entre os povos. Infelizmente não aconteceu nada disso. As pessoas viajam apenas para onde sabem que encontrarão um McDonalds, onde nenhuma diferença cultural gritante as fará perder o equilíbrio, e ainda assim voltam para casa correndo, mortas de saudade do lar onde precisavam ler do mesmo para tolerar o cotidiano. Talvez na era pré-industrial um viajante que fosse a cavalo para um vilarejo a cinco dias de viagem aprenderia mais sobre o mundo do que 90% dos viajantes que cruzam o Atlântico hoje.

Então, o que é a qualidade de um texto? Expôr um novo ponto de vista, após uma demorada análise de um mundo diferente (seja pela filologia ou pela demorada imersão física em outra cultura), ou escrever o que o leitor espera ler, num mundo dominado pelo mercado, pelos números e pela repetição?

Não receber tantos visitantes em meu blog, quem sabe, pode afinal ser um motivo de orgulho.

Wednesday, December 13, 2006

Por uma moral científica

A moral até hoje esteve circunscrita ao campo das opiniões e de culturas individuais. A filosofia e a ciência avançaram muito mais do que o julgamento moral que fazemos de nós mesmos como indivíduos ou como espécie. Como indivíduos, sujeitamo-nos à opinião alheia, à sociedade, aos costumes, à vontade moral da maioria; como espécie, repetimos julgamentos desinformados, preliminares, superficiais, e com isso prolongamos o sentimento de injustiça que acompanha a humanidade desde sempre, mas que poderia hoje ser muito menor - caso soubéssemos onde procurar a moral.

A ciência abriu caminhos nunca imaginados, mesmo há poucas décadas, mas ainda não se atreveu a afirmar-se como possível enunciadora de juízos morais. Toda a opinião pública e privada de hoje repete a mesma ladainha: a ciência é um meio, é apenas uma ferramenta, apenas uma instituição humana, e por isso, justamente por isso, não pode servir de base para julgamentos morais, para a ética, para guiar o que deve ou não ser feito com a própria ciência, com a tecnologia, com os investimentos materiais e humanos que fazemos todos os dias. Como se isso se deduzisse logicamente! A ciência pode ser tratada como uma "instituição" humana, desde que se admita que tudo, desde a linguagem até as religiões, são instituições igualmente humanas. As discussões sobre a ética fundamentam-se em quê? Na filosofia aristotélica ou na platônica, e suas descendentes ocidentais, o cristianismo, a democracia, o moralismo piegas do bem único, do bem geral, do bem da maioria e do governo pela maioria! As eleições são uma das maiores farsas da história - servem apenas para que o povo sinta-se envolvido com o processo que ocorre por trás dos bastidores, no excludente Plano Piloto brasiliense, às escondidas, no silêncio da noite. E o mesmo povo aprendeu a dizer da ciência: "Não! A ciência não! A ciência é apenas uma instituição!".

As discussões sobre ética são na verdade um emaranhado de conceitos e argumentos ultrapassados, tornados tão complexos com o passar do tempo que ninguém mais os compreende. O público acha justo julgar-se imbecil demais para tomar parte da contenda. Os cientistas acham justo julgarem-se especializados demais, institucionalizados, talvez, demais para serem úteis à discussão. Esquecem-se de que a mesma religião, a mesma filosofia que serve de premissa para nossos valores é uma instituição humana, tanto como a ciência - e tanto pior que aquelas sejam instituições muito mais equivocadas.

A moral sair da ciência, a moral ser desvendada pela ciência - talvez essa idéia cause arrepios nos que ainda têm pesadelos com o holocausto e outros erros do passado. Mas não podemos basear nossas considerações no medo, ou apenas no passado. O ser humano ser visto como "tábula rasa" até os dias de hoje - eis um erro a ser corrigido. O ser humano ser visto como a mais desenvolvida das espécies, a mais evoluída, a "melhor", a mais próxima dos desígnios divinos, criada à Sua imagem e semelhança - aonde nos trouxeram tantos séculos, tantos milênios de engano? Buscamos basear a moral numa quimera, e ainda não entendemos, ainda não se entende o como somos semelhantes aos animais - na verdade, como somos simplesmente animais com um tanto a mais de cultura.

A velha distinção: instinto X cultura; nature X nurture. Os pseudo-filósofos, muitos dos quais com carteirinha e currículo, continuam se debatendo sobre essa questão com um interesse desproporcional ao seu conhecimento do assunto. A maioria dos filósofos - esses quase "cientistas humanos" - sabe infinitamente mais de cultura que de natureza, que de instinto. Quantas definições conhecem para cultura? E quantas para instinto? O que é o instinto? pergunto-lhes. Quanto do homem é instinto? Quanto dos animais é cultura? Tenho lido em todos os lugares apenas nulidades, apenas desconhecimento travestido de profundidade, palavras difíceis e discursos pomposos ocultando uma vaga idéia sobre o que mal se conhece. Quantos filósofos de renome saíram das cadeiras da biologia ­- o estudo da vida, do lado animal do homem, da definição biológica (e por isso mesmo mais universal) de cultura?

Cultura pode ser definida como qualquer transmissão não-genética de informação. Há livros muito bons sobre a cultura no reino animal (e mesmo fora dele), que derrubariam de uma vez por todas o antropocentrismo dominante nas discussões sobre o humano e a moral, caso fossem ao menos lidos nos cursos introdutórios das ciências humanas. Mas até hoje, um século e meio após Darwin ter elucidado o mecanismo principal que criou mesmo nossa capacidade para ter cultura, as discussões sobre ética são dominadas por pessoas que ignoram completamente a relação entre instinto e cultura a nos formar.

Dizer que a cultura é predominante (esta a visão comum) ou que o instinto é predominante (esta a visão revolucionária, maligna, excludente), é dizer nada. Não se trata de uma queda de braço com apenas um vencedor, nem de um recipiente onde caibam cem "bolinhas" de duas cores, e estimemos pois a porcentagem de cada tipo. O instinto humano assemelha-se mais à maneira como um veículo vem de fábrica, estando cada dono possibilitado a modificar o que quiser, com as ferramentas disponíveis em sua cidade. Simplesmente não é possível colocar três andares numa motocicleta, ou transformar num carro de corrida o que foi construído para consertar asfalto. Essa perspectiva costuma ser bem aceita quando se trata de explicar por que não podemos respirar debaixo d’água ou voar, mas não quando é aplicada ao comportamento humano, às relações humanas. Acredita-se que apenas o fisiológico deva ser explicado pela biologia, e que o humor, as emoções, as esperanças, vontades e gostos, estariam muito além disso. Ledo engano.

O que mais confunde quem não está acostumado com essa análise é a plasticidade do instinto. O instinto não é uma tendência a agir desta ou daquela forma - é uma tendência de agir desta ou daquela forma dependendo do ambiente em que se encontra. Aí sim, entram não só a cultura, como um dos determinantes do ambiente, mas também o clima, a abundância ou escassez de alimentos, o tipo de ambiente em que se vive (montanhas, campos ou florestas), e certamente outras variáveis que ainda desconhecemos, e que não seriam bem enquadradas como "cultura".

As discussões éticas sobre o aborto, a pena de morte, a corrupção no poder público, etc. falham sempre ao tentar impor o certo baseando-se num conceito rígido. O bem, como o cristianismo herdou de Platão, é visto como um ideal a ser alcançado, mesmo que nunca o tenha sido em toda a história. O bem e o mal coexistem não só na natureza (onde, aliás, é igualmente aceitável dizer que não existem), mas também na natureza humana. Compreender a fundo a natureza humana é a única forma de se obter uma ética autêntica e imparcial, porque fundada no que todos os humanos têm em comum.

Este, talvez, é o erro mais comum entre os que rechaçam o instinto como predominante no homem: pensam que as diferenças genéticas que temos entre nós determinaria as diferenças de comportamento. Mas o que importa no estudo do instinto, em sua relação íntima com a moral e a ética, é, pelo contrário, a uniformidade de comportamento. As diferenças do comportamento são o reflexo do mesmo instinto em ambientes diferentes, mas isso não descarta o papel do instinto, apenas torna-o bem mais específico, e quem sabe, mais útil e mais acessível. Em outras palavras, "o que você faria no lugar dele?" Quase todos nós faríamos o mesmo, dadas as circunstâncias. A relação entre as circunstâncias e as ações é que são definidas pelo instinto.

As discussões contra o aborto e o infanticídio, este praticado com maior freqüência em lugares muito pobres, muitas vezes trazem o argumento da "defesa da vida". Ora, defender a vida é um conceito muito vago, uma vez que, para comer, precisamos matar qualquer coisa viva. Mas um embrião do tamanho de uma ervilha não chega a ser uma ervilha, como também não é ainda sequer um feto. O que essa discussão conseguiu até hoje foi que, entre outras coisas, defendêssemos a vida com tanto ardor que ignoramos a própria qualidade da vida. Sustentar 6,5 bilhões de pessoas num único planeta não tem se mostrado tarefa fácil, e ainda que haja comida para todos, e ainda que a dificuldade seja distribuí-la, ainda assim a concentração humana é, muito provavelmente, a causa primeira dos grandes problemas que enfrentamos, como poluição, violência e criminalidade, doenças físicas e mentais, falta de convívio humano, egoísmo exacerbado, consumismo, esgotamento dos recursos naturais, entre outros. Designa-se "primitiva" uma população que realiza o aborto ou o infanticídio para manter uma densidade demográfica sustentável a longo prazo. Mais uma vez, ignora-se o que tanto animais como humanos sempre fizeram - o que o instinto recomenda individualmente a cada mãe, em cada comunidade - e abraça-se ideais filosóficos e religiosos na busca pela moral, negando sempre investigar o reverso da moeda.

No fim, nosso desenvolvimento moral deverá ser não um avanço para a frente, mas um retrocesso ao que o instinto sempre ditou. E isso só será alcançado após uma longa queda de braço entre a ciência e a religião. O papel da ciência: desvendar, de-divinizar, finalmente, a moral humana.

É

Seu corpo sujo se atritava sob o meu peso, indo e voltando como ondas na praia, não! numa tempestade! com ímpeto, fúria e volúpia, peso e volume; era a pedra do templo, o altar sagrado, a ressurreição da carne; era o mais profano e sagrado de todos os atos repetidos cotidianamente desde sempre, era a aurora da graça, prosopopéia não-sei-de-quê, que toda palavra jamais chegará a conhecer. Era ele debruçado no colchão velho, gemendo, rebolando, desmanchando de tesão e desfazendo-se em suor, gritando, gostando, sorrindo e implorando por mais, mais, mais forte, mais rápido, mais fundo, mais de mim, muito mais; e eu, daqui, dividido, exaltando ora tudo aquilo, ora a existência como um todo, que tinha sido até então tudo menos aquilo - e não podia, portanto, ser altar, ou templo, ou salvação, ou memória...

apenas era.

Monday, December 11, 2006

Brasília III

Depois que cheguei no hotel, saí com um amigo para conhecer melhor a noite da capital tupiniquim. Fomos em alguns bares só para descobrir que, no fundo, ou mesmo no raso, são todos muito parecidos. Os mesmos jovens buscam seu caminho entre a arte e a ciência, entre o tédio e a loucura, entre o prazer e a solidão. Em que eles mais se parecem é a resposta que dão a essa busca, ou melhor, a posição que assumem na estrada, buscando o prazer máximo, imediato e sem compromisso, rejeitando a solidão como a um vírus, o tédio como uma tristeza doentia, a loucura como uma inviabilidade técnica, e arriscando-se na arte com medo de acertar, e na ciência sem o ímpeto para fazer as perguntas que interessam.

A juventude pelos bares quer ser jovem, moderna, quer mais ser feliz que ter razão. Todos querem formalizar seus direitos de posse, garantindo sua permanência no sistema, na posição perfeita que concebem como realidade.

Brasília II

Dentro da van fui ao lado da filha de um colega, uma incrível tagarela de apenas vinte anos, que me explicava passo a passo todas as opções para me divertir na noite brasiliense aquela noite mesmo (fui eu que o solicitei), apoiando em cada opção o seu ponto de vista sobre o que valia a pena, o que estava na moda, o que era bem freqüentado ou era "underground" demais. Em todo o palavrório, o mesmo: que Brasília era uma cidade ótima, que boates dentro de shopping centers são "o que há" em diversão, que a juventude local era linda, fina, inteligente e gente boa. Não discordei. Cada um tem o direito, senão o dever, de enxergar o lado bom das coisas que é forçado a conhecer. Para ela, dinheiro não era o problema. Ganhou sua primeira Barbie aos dois anos, sabia que hoje uma dessas bonecas não sairia por menos de 50 reais, e estou certo de que ela não concordaria com a hipótese de que uma criança não precisa de Barbie, nem de e-mail, nem de celular. Mas talvez seja eu quem esteja ficando velho... Por fim, saí naquela noite mesmo, mas nada de boates em shoppings.

Brasília I

Fui dos primeiros a chegar em Brasília. No aeroporto um rapaz de terno e gravata me esperava perto da floricultura, portando uma placa de identificação com grande solenidade. Cumprimentei-o e ficamos ali conversando sobre o mundo, enquanto não chegava o horário da van que nos levaria ao hotel, e ninguém mais chegava. O solene rapaz tinha o sonho de ficar rico. Não sei se pelo terno ou pelas maneiras, mas ele aparentava ter algum dinheiro; disse-me que em Brasília não se vive com três mil reais por mês - no máximo sobrevive-se - era a sua tese. Perguntei o que ele tanto precisava que não tinha ainda condições de ter, e ele desfiou a lista automática: um barco, um carro importado, uma casa de praia... Disse a ele que até ter uma casa de praia ele poderia já ter conhecido todo o litoral brasileiro, hospedando-se em pousadas simples, econômicas e hospitaleiras, sem precisar ter a dor de cabeça de trabalhar tanto para ter algo que depois, provavelmente, não se mostraria tão essencial como agora parecia em seu sonho. Mas a juventude... ou será o homem? Sequer considerou meu argumento; já falava de outras grandiosidades, outras pressas, outras necessidades impreteríveis. E eu desisti, de uma vez por todas, de tentar convencê-lo do contrário.

Monday, December 04, 2006

Os fatos, a ciência e a política

Fatos, ciência, política.

"Contra os fatos não há argumentos."
"Penso, logo existo." Mas e os fatos?
Existem fatos objetivos? Ou podemos ser todos solipsistas sem mentir?

Aquele que conhece os fatos tem poder, pois tem informação.
Aquele que conhece a ciência tem ainda mais poder, pois a ciência é a generalização dos fatos para a compreensão e previsão dos fatos futuros.

Existem dois raciocínios semelhantes, hoje em dia bastante disseminados:

1) um preconceito, misturado com descaso, contra a ciência, contra o seu método reducionista, que busca - com imenso sucesso - leis naturais simples ocultas na complexidade dos fenômenos individuais. As pessoas que nutrem essa espécie de rancor, em geral cansadas dos males da vida moderna (que foram, sem dúvida, conseqüência dos avanços científicos), abrem mão de compreender o âmago das coisas, das leis que regem boa parte do funcionamento das coisas, e preferem buscar uma aura, propriedades imanentes misteriosas, o bem e o mal em cada objeto, sem reduzir nada a leis, ou quase nada, e com isso tentam viver mais próximos da natureza, mais próximos, talvez, da condição primitiva do homem, sua essência selvagem e ignorante, distante das excessivas atribulações do nosso tempo.

Porém, tudo isso não passa de desconhecimento das vantagens da ciência, ou da incapacidade (preguiça? preconceito? ignorância?) de pôr cada coisa em seu lugar, cada problema com seu método, cada pensamento com sua utilidade.

Se usássemos a ciência para entender o ser humano (e me refiro aqui à Sociobiologia, não às Ciências Humanas tradicionais) seríamos capazes de evitar grande parte dos mal-entendidos, preconceitos e divergências de cada dia - situações talvez mais nocivas que as conseqüências negativas da própria ciência reducionista.

2) um preconceito, ou má-fé, ou desesperança, contra a política. Um amigo ontem me perguntou se eu não acreditava na revolução. Outro amigo, outro dia, dizia que a única solução seria uma terceira guerra mundial: começar de novo, do pau e da pedra. O Chico, do Crônicas Cotidianas, anda pregando a anarquia. Ora, sigo meu conhecimento sociobiológico de que o homem é a soma de seus instintos e sua cultura. Se milênios de civilização não nos tiraram da barbárie, ao menos nos permitiram acumular o conhecimento que hoje pode nos deixar mais perto de alguma solução política contra nós mesmos - se é que tal quimera existe. Para mim existe, e isso é óbvio: lugares e épocas distintos têm políticas distintas, e tantas políticas diferentes não são, e nem poderiam ser, igualmente boas ou ruins para todos (mesmo que sejam boas para alguns grupos e ruins para outros, nem tudo é relativo).

A humanidade levou milênios para acumular valores como direitos humanos, diplomacia e participação popular; dizer que tudo é igual, que "tanto faz", me parece pura ignorância histórica. Uma grande guerra resolveria o problema da super-população, mas certamente o reencontraríamos adiante; e pior, numa terra ainda mais devastada. Quanto à revolução, talvez melhore muitas coisas, mas acredito mesmo que os novos governantes cairão nos mesmos erros dos atuais. Acredito num desenvolvimento moral da humanidade em pequenas doses, através de pequenas mudanças na maneira como percebemos cada problema, cada regra e hábito. A mudança assim alcançada é mais duradoura, pois muda as pessoas, não os políticos. E, mais importante, pode ser implementada por cada um de nós, aos poucos, dentro de cada comunidade, na faculdade, na família, enfim, dentro do raio de ação de cada um. Como disse ao meu amigo revolucionário: não é preciso tornar-se um político para agir politicamente.

Inimigos de todas as formas da pressa

"- Em Adão e Eva? Estava mesmo? - disse Lídia. - Não é possível.
- Para quem vai para o Xingu pela primeira vez não é tão estranho assim - disse Nando. - Você sabe que a religião é a memória da espécie? Nós não esquecemos nada. Carregamos tudo conosco, através dos tempos.
- Hum, isso atrasa muito a marcha - disse Lídia.
- Nós somos - disse Nando - os inimigos de todas as formas da pressa."

Quarup, de Antonio Callado.

Marari

Marari
guardo de ti
tuas curvas
tuas chuvas
tuas serras

tuas águas claras
dilacerando rochas antigas
teus ventos impetuosos
acariciando o dossel
como um machado

tuas nuvens graves
teu céu azul
teu humor inconstante
tuas aves, teus insetos
tua vida murmurante

tuas sombras e clareiras
tuas lianas e palmeiras
tuas praias ribanceiras
calmaria de lua cheia.

Guardo de ti tua bravura
o sorriso do teu povo
forte e independente
seu afeto inocente
sua justiça estranha
incerta e intermitente
suas dúvidas ingênuas
sua ganância ainda pequena:

bons selvagens numa terra distante
ou natureza humana em corrupção galopante?

Não espero de ti a resposta
Marari, gigante barrento
pois sei que o Padauiri
teu destino certo e lento
traz a mesma dúvida posta -
que o futuro do rio
é o futuro do homem
e o destino de ambos
aguarda, sem pressa, à margem
insensível à paisagem
indiferente ao tempo
só se lembra assim,
de passagem
quando, num súbito vento
surge a triste imagem
de que o rio
se torne miragem.

Os programadores estão anos luz à frente quando o assunto é cooperativismo.txt

Não sei o que é cooperativISMO, mas quando os programadores do mundo todo fazem gratuitamente serviços como o OpenOffice.org, o Linux, e tantos outros programas bons, leves e eficientes, percebo que os programadores estão muito à frente do restante da humanidade.

Ajudam-se e abalam o monopólio da Microsoft (o Mozilla já é mais usado por quem vê meu blog do que o IE) e fream a queda-de-braço entre software e hardware, que não baixou o ritmo desde meus tempos de estudante, há mais de 10 anos.

Esta briga de foices consiste em aumentar os efeitos visuais, além de, é claro, trazer todos os drivers para os novos periféricos que surgem a cada ano. Mas a facilidade do "plug-and-play" foi apenas por acaso trazida junto com o Windows. O DOS poderia ter tantos drivers como o Windows tem hoje, e ser compatível com toda essa maquinaria moderna, mas a história do computador tem sido até então um aglomerado de coincidências. A cada ano um novo processador, num toque quase mágico, consegue aprimorar ainda mais a perfeição de jogos, a velocidade das simulações, a perfeição dos detalhes, que antes jamais se pensara possível.

De qualquer forma, o computador é uma máquina simples, e é apenas questão de alguns anos para que seu desenvolvimento diminua o ritmo (a não ser na capacidade de alguns periféricos - memória e disco, e de processadores mais avançados apenas para as indústrias de ponta).

Para dizer a verdade, creio que já passou da hora dos processadores deixarem de se desenvolver a cada ano. Chegou a vez do software retornar à simplicidade dos tempos antigos, em que as máquinas eram lentas, e por isso o programa devia ser mais simples. Não que as máquinas devam ficar mais lentas (apesar de que seria a melhor solução para baratear seu custo), são os programas que devem ficar mais simples.

Antes era essencial que não se perdesse tempo com distrações, só se programava o indispensável. Hoje, se você não tem a máquina mais avançada, um simples clip de papel animado no Word, com a pretensão arrogante de ser mais inteligente do que o usuário, às vezes é a gota d'água no nosso humor com a máquina já nem tão user-friendly, isso quando não se soma aos milhões de bytes supérfluos que, por fim, travam a máquina. O código-fonte dos programas era bem menor antes. Hoje a maioria dos usuários não usa mais recursos do que o WordPerfect já tinha 12 anos atrás.

Hoje o Windows não transfere o Ctrl+C Ctrl+V entre o Notepad e o DOS (aliás o "command", que já se chamou "Atalho para o MS-DOS", menos brilhante e portanto menos danoso à visão, menos "colorido"; mas que a Microsoft achou melhor tirar do Menu Iniciar no Windows XP); como também excluiu o direito de mover o cursor do Paint (aquela setinha para desenhar) através do teclado, além de não te perguntar se você deseja atualizar sua cópia do Windows cada vez que você se conecta com seu modem que ainda não é de banda larga. Até você perceber que tem a opção de desabilitar o download automático, já perdeu preciosas horas conectado. Hoje o Windows traz a barra de pastas e a de status ocultas por default em seu Explorer (bom mesmo era o Navegador de Arquivos do Windows 3.11 para Workgroups) e não mostra o tamanho de um arquivo zipado na barra de status. A pergunta é: o que se ganha escondendo informação?

O GetRight ainda é melhor que ambos IE e Mozilla Firefox para baixar arquivos; o Windows Media Player te dá a mais horrível ferramenta para formar os nomes dos arquivos de música copiadas do CD; o OpenOffice faz tudo o que 99% dos usuários precisam. E estou plenamente confiante de que o 1% restante é simplesmente louco.

http://www.micosyen.com/ é uma aula de simplicidade (embora não de humildade) e dignidade. Ele fez o tocador de mp3 de apenas 40,5 KB que uso e recomendo.

Termino com sua "filosofia de design":

"there is no greater elegance than simplicity. 8 bits are preferred over 16 and 16 over 32. 5 MHz clocks are preferred over 50, and 50 over 500. Assembly is preferred over C, and C over C++. The elimination of software bloat is the key to eliminating hardware bloat. The elimination of hardware bloat is the key to creating a product that rises above the cacophony of mediocrity to garner praise for innovation, performance and cost-effectiveness."

Friday, December 01, 2006

Descartes errou

Êxtase profundo? Como pode a profundidade se debruçar sobre a simplicidade? O êxtase origina-se no simples. Talvez não seja o êxtase profundo, e sim o reflexo da superficialidade, a proximidade da linha d'água e do infinito celeste, de ares superiores, vibrantes, nem quentes nem frios, atemporais, afísicos, incendiantes das paixões que jazem na antiga memória coletiva da humanidade, de um tempo em que a ausência de palavras pesava como a atmosfera, e todo desejo, toda dor, todo impulso e todo prazer eram um, tudo se sentia, sem se tentar explicar, sem se deformar o significado atribuindo-lhe palavras, sem essa luta pelo sentido, essa auto-agressão da consciência, essa luta impossível que hoje nos sobrecarrega a vida de contrastes tênues, de irrisórias nuances, imprecisas delicadezas, sofisticadas e inúteis, a nos arrastar por labirintos auto-criados, férteis e ramificadas árvores onde se perde a unidade do que se sente, e se desbota o fulgor da emoção genuína, original, divina.

Sinto, logo existo.

Epistemologia do sentimento

Qual é hoje o destino do sentimento? Jogado a escanteio, escondido pelos cantos em rituais ocultos de autoflagelação, é onde se encontra a verdade, o instinto, a vontade. O desejo da vontade. O desejo pelo desejo, o amor ao desejo. Somos seres-bichos, antes de sermos humanos. Forma-se primeiro no embrião as fendas branquiais de seus remotos antepassados aquáticos, como se forma no fundo da alma humana um tapete de sensações e medos e alvoroços próprios da nossa natureza, inegáveis e insubstituíveis, não como o amor ou o ódio, que essas palavras representam apenas uma conjectura. Palavras expressam não a emoção em si, mas a interpretação que essa emoção teve ao longo da história, dos tantos erros e tão poucos acertos de nossos antepassados próximos, cultos e letrados. A palavra designa uma interpretação do sentimento, sua associação recente com a moral escrita, dominante, institucionalizada. Amor e ódio são vizinhos próximos, ou são uma e a mesma coisa? O sentimento se mede por sua força sobre nossos ombros, seu peso puro, e não há régua que o permita definir. Amor é uma vontade de ter, de submeter o outro ao nosso ego, à nossa vontade. Também o ódio é uma sede semelhante de forçar, de vencer, de demonstrar o que temos por dentro, um desejo de desvendar para o outro o nosso íntimo, nossas intenções, nosso ego. E as palavras que hoje se jogam da boca como cuspe trazem em si uma história nem sempre percebida, mas mantida pelo sistema de reprodução cultural, pela mídia, pelas centenas de filmes e novelas que todos já assistimos, e seus invariáveis finais felizes, bem contra o mal, esperanças recompensadas e justiças óbvias. O sentimento não se traduz, não se explica, não se esquece, apenas adormece em algum recanto obscuro do espírito humano, que deveríamos voltar a vasculhar, tirar a poeira e reviver.

Como e para que escrevo

Gosto de começar de olhos fechados, digitando idéias desconexas, tentando não pensar, seguindo imagens que se mostram para mim, procurando antes um ritmo, um clima, do que um argumento ou idéia específicos. Nem sempre encontro o que procuro, então abro um novo parágrafo e tento de novo, descrevendo imagens que me agradam, como:

Abrasaram-me as horas sem piedade, o céu viu as estrelas partirem e o vermelho chegar, o claro e leve vermelho da manhã que precedeu o dia mais fantástico que o mundo já viu.


Não sei que dia foi esse, ou o que o teria tornado fantástico. O que tento é despertar em mim esse sentimento, de uma alvorada qualquer passada em claro, quando um único pássaro no céu podia descortinar a maior felicidade que um homem pode experimentar. O que será o nascimento de um filho? Ou o casamento com um ser ideal? Um sentimento diferente de tudo que se tentou antes, mas não acredito em felicidade maior que aquela que se permite. A felicidade em ter um filho não é de uma magnitude diferente, maior; pertence a outro plano, e por isso não se pode comparar à imagem do pássaro numa manhã úmida, com uma luz clara e difusa no céu e no espírito. A felicidade, ó injustiça das palavras!, é uma quimera, um espectro impreciso e surreal, como uma substância gasosa que se alastra pelo espaço e se concentra inexplicável e caoticamente pelo universo, podendo estar presente nos momentos mais sutis, num sorriso, num silêncio, numa luz oblíqua a atravessar as palmeiras de uma praça numa tarde de terça-feira. Os grandes momentos, aqueles unanimemente grandes, trazem consigo uma formalidade, um rigor que, por acompanhar a grande felicidade, desconfiguram-lhe por completo, tornando-a incomparável às outras ocasiões de grande felicidade, estas, desprovidas de solenidade e por isso mesmo menos evidentes, mais puras, mais sensíveis à exploração literária, à arte, essa tentativa de comunicação.

Escrevo para retratar os locais onde costuma se esconder a grande felicidade.

Da vantagem da poesia

Nossas obras não marcam tanto a evolução de nossas personalidades ao longo do tempo, precisariam ser muito detalhadas, muito psicológicas, muito auto-biográficas para isso. Elas deixam apenas rastros, mostram por onde passamos - são os fósseis de nosso humor e de nossa erudição num dado momento. Por isso é tão interessante escrever, para deixar um rico registro fóssil. Outro dia leram para mim uma poesia que escrevi há um ano. Não reconheci até ver a minha letra. Não me lembrava, e também não gostei. Mas não importa. É bom saber que temos fragmentos por aí - que outros lerão e se lembrarão de nós - como se, na verdade, tivéssemos vários clones a criar por nós, com a nossa letra, difundindo nossas idéias, nossas caras idéias, sem esforço de nossa parte, apenas da parte desse clone do passado, que já não existe mais. Sim, passarei a fazer mais poesias em lugares improváveis e a distribuí-las pela minha casa, e nas casas de amigos, com maior freqüência. Que seja para ganhar um convite para o almoço, ou apenas para fazer sorrir alguém que se esquecerá de me contar que sorriu. A poesia tem um custo mínimo, mas não tem preço. Só seu destino é incerto. Mas não é assim mesmo o nosso?