Wednesday, February 27, 2008

Movimento e moral naturais

I. O movimento da natureza

Os cnidários inventaram o movimento corporal, os músculos e os nervos. Nervos, esses fios elétricos que definem nossa concepção comum do que seja um animal.

Revelação científica - é a hidra um animal ou uma planta? No século XVIII, quando descobrimos que tratava-se de um animal, o conhecimento avançou. O conhecimento avança.

A religião se sustenta. Sua função é proporcionar estabilidade, a função da ciência é proporcionar avanço. Os dois elementos são tão necessários à sociedade como são os músculos extensores e contratores para o movimento animal.

A revelação científica acontece sempre que um experimento derruba uma hipótese - no caso, a da hidra ser uma planta.

A revelação religiosa deve ser antiga e só acontecer uma única vez na origem da religião. Quanto mais antiga a revelação, mais a religião prova seu fitness - mostra sua capacidade de resistir às mudanças culturais, cumprindo o objetivo para o qual surgiu.

O problema é que, até o momento, a moral veio da religião, não da ciência. Até hoje, a ciência não pôde servir de guia moral à humanidade, porque não soube onde procurar a moralidade.

A religião foi o guia moral que funcionou enquanto a sociedade não mudou demais. Hoje, vimos que há ferramentas científicas para nos basearmos em uma moral "natural", uma moral que respeite ao máximo a maneira como a natureza nos desenhou.

Pois fomos criados - ou melhor, surgimos - à imagem e semelhança da natureza e não de um deus. Somos naturais, não divinos. O divino é um dos nomes do desconhecido. O conhecido pode ser conhecido por cada um, e mesmo que concentre o poder nas mãos do cientista, concentra bem menos que na mão do sacerdote. O cientista, individualmente, tem menos poder que o religioso. A ciência tem lutado desde seu nascimento para diminuir a concentração do poder no seio da religião ocidental monoteísta.

Religião é, até certo ponto que abrange quase a totalidade da experiência brasileira, monoteísmo. Mas o monoteísmo é a artificialização do conhecimento, sua manipulação por uma tribo de ladrões, treinados nas melhores escolas, com os métodos mais perspicazes e antigos para enganar, possuir e satisfazer suas vítimas ao mesmo tempo.

A civilização foi o advento da divisão de tarefas. Dando poder a animais-nações, cujos cérebros se auto-denominaram reis, czares, imperadores, o poder da civilização cultivou um pequeno e poderoso séquito que até hoje defende o animal-nação em detrimento do animal-indivíduo. Esta talvez seja a primeira diferença entre a direita e a esquerda, no espectro político.

A ciência foi o avanço que permitiu à sociedade sair da posição em que foi colocada desde a origem da civilização, quando os reis-imperadores-czares oprimiam os fracos tornados escravos. A ciência devolvou um pouco do poder ao animal-indivíduo, poder este que estava monopolizado pelo animal-nação e seus hemisférios cerebrais: o rei-czar-imperador e o sacerdote. A ciência não é o fim da civilização, e sim a realização de todo o bem que a civilização, na teoria, diz proporcionar. A ciência divide o poder, pois permite que mais pessoas o compreendam. E, plagiando um grande filósofo, podemos dizer que a natureza do conhecimento científico é tal que quem o compreende deve compreendê-lo necessariamente.

Mas a ciência ainda não encontrou a moral - e apenas por isso a religião monoteísta prospera.

A ética está no campo da filosofia, mas ainda é objeto de muita controvérsia. O que é o certo, quando existem tantas sociedades?

Por exemplo, como podemos permitir que haja uma direita e uma esquerda, quando uma democracia deveria ser a pesquisa das soluções que diminuam a desigualdade e promovam a diversidade? Na teoria é fácil.

Na prática, é insano que metade dos debatedores defendam uma suposta "esquerda", quando a outra metade defende uma "direita". Uma vez estabelecidos os objetivos do progresso, da civilização, da sociedade, da vida, o consenso deve ser buscado.

Dividirmo-nos é nos enfraquecermos.

Voltando aos animais, podemos entender quem ou o que nos criou, e este criador é a natureza. Não devemos desejar que seja externo à natureza, pois "devemos amar à natureza sobre todas as coisas". A natureza é visível, nos alimenta, nos aquece, nos refresca, mata nossa sede, proporciona diversão e beleza, nos dá esperança e nos consola nos momentos difíceis. Todos os povos extraíram sua sabedoria da natureza.

Entender como fomos criados é mais importante do que saber o que nos criou. Não devemos dar nome às forças ocultas na natureza; não sem antes termos compreendido a parte visível. Perguntemos com respeito e seremos respondidos.


II. A moral da natureza

Observando os animais domésticos e comparando-os com os selvagens, como não notar a beleza, a vitalidade, força e majestade destes, bem mais que daqueles?

O animal selvagem utiliza completamente os seus sentidos, órgãos e sistemas, já que funciona no ambiente "para o qual foi projetado", ou seja, onde evoluiu. Como um carro de corrida com pneus para chuva ou para o seco, que deve ser usado na ocasião adequada, com o risco de causar tristeza.

Quando tiramos o animal selvagem do meio onde evoluiu - onde está, por esta razão, melhor adaptado - observamos um decréscimo em sua vitalidade. Nem todos os sistemas orgânicos continuam funcionando bem, conforme os elementos do hábitat que deixam de estar presentes. Se não há mais madeira para escalar, as garras dos felinos crescem exageradamente. Se não há mais extensões a percorrer atrás de alimento, a gordura se acumula e prejudica o animal.

Todo sistema vivo descende de um sistema que acertou no passado. Quando mudamos o ambiente, outro tipo de sistema passará a ter êxito. As características que antes tornavam o organismo bem adaptado agora podem ser inúteis, e até prejudiciais.

Qual a moral dessa história para o homem? Estamos mudando o mundo. Hoje a maior parte das pessoas vivem num mundo de asfalto e plástico, petróleo e papel. Nossos sistemas biológicos estão prejudicados. As taxas de obesidade, miopia, depressão, ansiedade, stress, problemas cardíacos e respiratórios são anormais e crescentes. Isso no mundo rico. No mundo pobre, ainda não resolvemos as maiores causas de mortalidade: fome, doenças transmitidas por insetos e doenças sexualmente transmissíveis. Nossa saúde como espécie está em risco.

Nossa saúde está em risco?

Vamos decompor um pouco mais esse "nossa". A saúde de quem está em risco? E quanto?

Talvez a maior diferença entre direita e esquerda, no espectro político, é que a direita defende a saúde dos ricos - geralmente não enxerga a falta de saúde dos pobres - enquanto a esquerda considera que os ricos já têm saúde até demais. De fato, os pobres morrem por doenças contagiosas geralmente contraídas porque seus prefeitos não instalam um sistema de saneamento. Mas os pobres, assim como os ricos, também sofrem cada vez mais com as mesmas doenças que afetam os ricos: câncer, depressão, problemas cardíacos e respiratórios, etc. Quanto mais avança a urbanização, mais os pobres sofrem dos dois tipos de males.

Se tomarmos um partido, deveremos estipular quanto de saúde a mais os ricos precisam ter para continuar fazendo o trabalho estressante e de maior responsabilidade que (às vezes) costumam desempenhar, como médicos, professores, juízes, etc. Por exemplo, um juiz deve ter o direito a uma saúde melhor que a média, visto que um juiz doente pode prejudicar a saúde de muitas pessoas que não mais teriam acesso à justiça.

Mas não precisamos tomar partido.

Independente de quem tentemos defender, precisamos reconhecer em primeiro lugar que, comparados com o que éramos antes da civilização, somos pessoas doentes.

Diversos relatos de naturalistas em viagens para regiões longínquas do planeta disseram o mesmo dos aborígenes: suas culturas poderiam soar incompreensíveis à primeira vista - razão pela qual várias foram desprezadas e exterminadas - mas sua saúde e vigor físico eram admiráveis. Darwin escreveu isso sobre os moradores da Terra do Fogo, Wallace disse o mesmo dos povos do Pacífico, .............outros...

Podemos dizer hoje que eles morriam com 40 anos? Mas de que vale viver 80, se jamais alcançarmos 1/4 da vitalidade experimentada pelos antigos? Eu, pessoalmente, preferiria morrer com 40 tendo conhecido o máximo que a vida tem para oferecer. Conheço muitas pessoas que não exercem 1/10 dos instintos com e para os quais nossa espécie evoluiu.

O que seria, então, a moral? Uma moral natural?

Perguntar às pessoas honestamente, como você prefere viver? Exercendo seus instintos ou evitando-os? Prefere uma sociedade que privilegie a diversidade, a espontaneidade, a necessidade de saber defender-se, de cooperar e competir? Ou uma que privilegie o artificial, a desconsideração pelo instinto e pela vitalidade, a máquina substituindo nossos movimentos imemoriais e necessários ao bom funcionamento do organismo, a aglomeração urbana que coloca o indivíduo em situações nas quais ratos em uma gaiola já teriam abandonado a vida?

Esse é um momento importante para a civilização - um momento de crise e reflexão: qual será nossa resposta ao progresso, o seguiremos como peixes? Ou o determinaremos como humanos - pressupomos - racionais?

Friday, February 22, 2008

Sapos e grilos

Como pode alguém dizer que acha "chato" o barulho dos grilos à noite? Dos sapos? Sons da natureza? As mesmas pessoas que não acham chato o barulho dos celulares, a música repetitiva nas rádios, o "sucesso" do momento, a televisão?

Onde chegamos? Uma humanidade inteira meio destruída, meio desperdiçada, porque não sabe mais o que é bom. Perdeu o rumo. No escuro todo lado é um norte. Então tanto faz, não ganhamos nada tentando convencer ninguém de nada. Nem sabemos do que convenceríamos alguém. Não temos mais ideais, a não ser religiosos. E estes esmagam as minorias que tentam respirar. Os ideais religiosos não respeitam a diversidade. Desconhecem a diversidade - quando conhecemos a diversidade, qualquer religião perde o sentido. Simplesmente não vem mais ao caso. Há coisas mais importantes, e caminhos mais efetivos de alcançar essas coisas. Então, somos uma geração que ou não tem ideais, ou tem ideais que não vêm ao caso.

Só aprendemos a ajudar o próximo, não o distante. Hoje o mundo é globalizado, o distante tornou-se próximo, e o mundo precisa mudar.

Quando acordarmos, teremos TV, rádio e celular, teremos carros, apartamentos e roupas, mas não haverão nem grilos nem sapos. Podemos ser ricos e ver essas "curiosidades" no zoológico, no parque ou mais longe. Mas os mais pobres são cada vez mais pobres, mais numerosos, e nós somos cada vez mais como eles. Estamos todos perdendo a riqueza de saber desacelerar, parar o carro, apagar os faróis, descer, caminhar até o acostamento e olhar as estrelas. Esperar, em silêncio, os olhos se acostumarem com a escuridão, e ver. O mundo é belo. Até no escuro o mundo é belo. Bem mais belo do que TVs, rádios e celulares. Mas estamos tão ocupados em comprar TVs, rádios e celulares, carros, apartamentos e roupas, que não podemos medir as extensões de nossos atos, as conseqüências do que fazemos. Estamos com pressa, queremos nos divertir, e não aprendemos mais a achar bonito o barulho dos grilos e dos sapos. Nossas crianças crescerão cada vez mais distantes dessa beleza. E o mundo cada vez mais feio.

É uma pena.

Libelo anti-espírita

O espiritismo é apenas um "ramo" dentro da árvore do cristianismo. Um ramo que se diz o ramo verdadeiro.
O cristianismo é apenas um "ramo" dentro da árvore das religiões. Um ramo que se diz o ramo verdadeiro.
As religiões são apenas um "ramo" dentro da árvore da vida. O ramo que se diz o ramo verdadeiro.

Eu estudo a árvore inteira, a árvore da vida, com ramos de conhecimento como as religiões, a filosofia, as ciências, a história, as outras culturas. Dentro do "ramo" religião, eu estudei o espiritismo e o cristianismo com maior profundidade, por serem minha origem. Mas estudei também o agnosticismo, o budismo e o hinduismo, o suficiente para ver que há profundas diferenças entre estes e aqueles. Estudei ainda parte bem pequena das mitologias grega, yanomami e desana, e vi que também são muito diferentes.

Quem criou o Universo? Deus? Deuses? ETs? Não sabemos. O "ramo" religião afirma que sabe, mas os outros ramos dizem que não sabemos, e que muito provavelmente nunca iremos saber. De qualquer forma, qual a utilidade da pergunta? Quem ou o que teria criado essa "coisa" que teria criado o Universo? E o que a teria criado? Não há fim. O mistério é impenetrável. O que ganhamos dando-lhe um nome?

Quanto ao que seria Deus ou o universo, e principalmente, quanto ao que acontece após a nossa morte, cada "ramo" dentro da religião diz uma coisa. É ilógico que estejam todas certas. Por exemplo, no espiritismo a consciência se mantém após a morte, ou parte dela. No budismo, a consciência se dissolve no Nirvana. Voltamos a nos integrar ao todo, a individualidade desaparece. Podem ambos estarem certos? Talvez, conforme nossa crença. Quem sabe ao certo?

Mas aí reside um problema.

Há um "ramo" a mais da árvore da vida, e que é fácilmente observável: todos temos sonhos. Somos felizes se conquistamos nossos sonhos, e somos infelizes quando não conquistamos, geralmente. O espiritismo busca levantar a moral dos que não conquistaram seus sonhos, dizendo que teremos outras chances, outras vidas, inúmeras. O que importa, então, realizarmos nossos sonhos? Não importa tanto. Não importa nada. O que importa é elevarmos nosso espírito, tornarmo-nos pessoas boas (dentro do que o cristianismo define como bem, parece), e olhe que temos a eternidade inteira pela frente. Não há pressa.

O budismo, por sua vez, é mais prático: se tens um sonho que não alcança, abandona-o, ou sofre. Nada é dito sobre o invisível. Seu núcleo é a realidade. É a árvore toda. É o que pode ser visto sob a luz do dia por todos, na praça da cidade, no fórum, na assembléia. Está acima da dúvida, é material e imediato: desejando, realiza ou sofre. Sofrendo, tenta não desejar. Nada de fantasmas acessíveis só aos "escolhidos". O budismo se interessa pela árvore inteira, ele não se estranha com a filosofia, a filosofia não o contradiz. A filosofia incorpora o budismo como uma sabedoria viável, porque honesta. E a filosofia vê o espiritismo como uma religião, ou seja, como algo em que "se deve" acreditar. Sem a "crença", essa sabedoria, esse "ramo" não produz seu efeito, não gera seu fruto. A filosofia gera seus frutos independente de crença. Não é preciso crer, nem forçar nada. E os frutos da filosofia são mais saborosos que os frutos do espiritismo, do cristianismo e da religião. Como, mais saborosos? E acaso provaram dos outros frutos da árvore?

Ou vão morrer adiando as palavras certas com as pessoas certas, por terem a eternidade à disposição? Não é o que acontece na prática?

Wednesday, February 20, 2008

Do heterossexual

Os pacifistas de plantão dizem que a religião e a ciência tratam de assuntos diferentes, ou assim deveriam. Mas a prática é bem outra. Um cristão certamente definirá o heterossexual como a norma, regra, conduta exemplar e a única moralmente aceitável; mas um cientista não pode definir o heterossexual senão como uma circunstância peculiar, uma aleatoriedade histórica, uma exceção à regra natural e, por que não dizer, um acaso bizarro.

O que é um heterossexual? O dicionário explica que são pessoas que têm atração sexual e amorosa por pessoas do sexo oposto. Mas e os bissexuais, o que são? Não sentem, como os heterossexuais, amor, paixão e tesão por pessoas do sexo oposto? Como o sentem também por pessoas do mesmo sexo? O que a existência e os hábitos dos bissexuais nos dizem sobre os heterossexuais?

Em primeiro lugar, o entendimento de que o homem evoluiu de outros primatas - e que podemos, sim, chamar nossos ancestrais de macacos, pois também nós ainda o somos - é coisa bem rara. Mais do que isso, apenas em pouquíssimos casos essa maneira de pensar saiu das arenas biológicas para fazer avançar conceitos usados em outras áreas do pensamento. As ciências humanas, por exemplo, ainda debatem conceitos há muito tornados obsoletos, e que seriam imediatamente esclarecidos se nossa herança biológica fosse levada em consideração. Mesmo a medicina, essa ciência que se julga superior à biologia, como também o direito, ganhariam muito se devolvessem o ser humano à sua humilde posição dentro da Árvore da Vida.

Se remontarmos à Antigüidade, encontraremos em Platão, e sua idéia das "essências", a possível causa destes dois erros superficiais e lamentáveis: o heterossexualismo e a incompreensão generalizada do pensamento evolutivo. O que afirmava Platão? Que o mundo real era uma formulação, uma tentativa a partir de um mundo perfeito e ideal, um mundo de idéias. Assim, a diversidade encontrada entre os organismos de qualquer espécie seria apenas o erro de tradução a partir de um "ideal" perfeito. Todos os canários são diferentes porque se afastam em igual medida do "canário ideal". Todos os cavalos são diferentes porque se afastam da essência do "cavalo ideal". Tudo leva a crer que esse mundo de seres ideais seria a mente de Deus - Ele mesmo, como sabemos, o representante do "humano ideal". (Ou do homem ideal? Qual seria então a representante da mulher ideal?)

Ora, a ciência mostrou a diversidade como a regra da Natureza. A variabilidade entre os organismos é o motor da evolução, a única lógica que torna a vida viva. Sem diversidade, apenas os minerais se reproduzem. De fato, parece não haver uma única caracteristica biológica que não apresente uma diversidade considerável.

***

Então, o que seria o heterossexual? Arrisco-me a tentar definições para uma categoria tão ampla. Pode ser a pessoa que faz amor com o cérebro (ou sem uma parte deste), uma vez que nega a possibilidade de se envolver sentimental ou sexualmente com indivíduos do mesmo sexo.

É claro que sua primeira defesa será de que o sexo, naturalmente, evoluiu como comportamento heterossexual. Mas quem não vê o bissexualismo na natureza? Basta procurar, e será encontrado entre vertebrados e invertebrados, em milhares de espécies.

Argumentarão então que, embora o bissexualismo, e até o homossexualismo, existam na humanidade e no restante da natureza, o heterossexualismo parece ser a norma. Sim, o comportamento heterossexual parece ser mais abundante que o comportamento homossexual, mas em número de indivíduos ou de coitos? (E de qualquer forma, quem os contou?) Será que indivíduos que fazem exclusivamente sexo heterossexual são mais comuns do que aqueles que fazem sexo de todas as formas? Vou mais além: será que existem, na Natureza, indivíduos que excitem seus órgãos reprodutivos apenas com indivíduos do sexo oposto, durante toda a vida? (E é bem verdade que a vida sexual vai muito além da simples excitação dos órgãos genitais, mas mesmo essa base simples o heterossexualismo já nega e repudia, tornando insuportável a vida de muitos que não se encaixam no padrão desejado.)

E o que dizer da inteligência? Comparem o comportamento animal em relação à inteligência de cada espécie (que pode ser estimada dividindo-se o peso do cérebro pelo peso corporal). Chega a ser surpreendente que os animais mais inteligentes são justamente os que extraem mais prazer (e relativamente menos reprodução) de seus órgãos sexuais? E que o façam nas formas mais variadas possíveis (sozinhos, a dois ou em grupos; entre indivíduos de sexos diferentes ou iguais; com indivíduos da mesma espécie, de espécies próximas ou distantes evolutivamente)?

Talvez o cidadão urbano se surpreenda com esses fatos, mas quem vive próximo à Natureza não os estranha. Apenas a destruição da Natureza e o processo de urbanização crescente poderiam ter criado esta nova espécie de pessoas, ignorantes dos fatos naturais, a ponto de ser enganada em escala crescente pelos derivados mais aleijados do pensamento essencialista.

Argumentarão, esses mesmos cidadãos urbanos e ignorantes dos fatos naturais, que o ser humano não pode ser comparado aos animais, por inúmeras razões. Mas eu prefiro nos comparar aos animais, que são as únicas criaturas que conhecemos. E somos, de fato, bastante parecidos.

Vejamos outra perspectiva do heterossexual. A inteligência humana nos permite a comunicação num nível sem precedentes. Uma dessas formas elaboradas de comunicação chama-se empatia, e consiste em podermos nos colocar mentalmente no lugar de outra pessoa e imaginar quais seriam as nossas reações frente a alguma situação enfrentada por essa pessoa.

A maioria dos heterossexuais não podem ter empatia em relação aos homossexuais, pois o simples pensamento de uma perna cabeluda, digamos, num momento de intimidade, desencadeia reações fisiológicas de agitação, ansiedade, desconforto, podendo chegar a ânsias de vômito e agressividade. Pesquisas sobre sexualidade desenvolvidas na China relataram que muitas mulheres ameaçavam vomitar à simples menção de temas como prazer sexual ou relações sexuais. Aparentemente essas mulheres foram reprovadas na infância por se tocarem ou examinarem o próprio corpo. Para um brasileiro, a situação dessas mulheres parece irreal, podendo ser vista como cômica, e até incrível, mas não difere muito do que os heterossexuais brasileiros sentem quando examinam a bissexualidade.

A libido pode tomar e toma múltiplas formas, mas apenas a forma ortodoxa recebe aprovação social. A libido não escolhe sexo (e isso é mais evidente nas espécies mais inteligentes), quem o escolhe é nossa racionalidade platônica e cristã. Na Natureza, heterossexuais estritos são minoria, mas se passam por maioria no palco da sociedade. Basta observar o comportamento sexual declarado dos homens amazonenses e mineiros, para vermos até onde a influência essencialista (e cristã) levou os respeitáveis cidadãos do estado onde as maiores atrações turísticas são igrejas barrocas.

Os heterossexuais ensinam a humildade como uma virtude que não põem em prática. Sentem-se superiores a outras formas de vivência sexual, e não escondem esse fato. Confiam na tradição e temem fugir dela, seja por ignorância ou vaidade. Preferem o sofrimento de muitos do que a simplificação dos seus preconceitos. E acima de tudo, sentem-se protegidos por pertencerem à maioria.

***

Quem é mais forte, o animal que vive sozinho ou aquele que só sobrevive em bando? A influência do essencialismo platônico, que ganhou força ao se unir a todas as idéias errôneas do cristianismo, acabou dividindo a humanidade em duas partes: por um lado, um único grande e uniforme bando, que se sente "honrado" com sua mediocridade de rebanho, com suas evidências de "normalidade" estatística; do outro lado, pequenos grupos-satélite que buscam a própria verdade num mundo que sobrevive de aparências, e assim têm que aprender a resistir por si próprios.

O heterossexual não é nada natural, mas apenas um rótulo. É para onde corre a maioria dos bissexuais, incompreendidos por aqueles que não se arriscam a pensar com a própria cabeça, preferindo se esconder sob o manto da maioria. O heterossexual se sente elevado por bloquear o que a Natureza distribuiu em maior quantidade para os animais mais inteligentes, e não apenas se sente elevado, como constantemente busca rebaixar tudo o que tem essa liberdade, tudo o que expressa coragem na busca das próprias respostas, e que necessariamente há de fugir das normas, do normal, das referências mundanas, cada vez mais globais, mais globalizadas, mais falsificadas em nome de uma suposta "aceitação", que na verdade está muito longe de genuína.

A aceitação que hoje se diz acerca de bissexuais e homossexuais é ainda mais afetada que os mais afetados dentre esses excluídos. Trata-se de uma aceitação mentirosa, superficial e excludente, que faz um esforço cada vez que deve surgir, que nunca é natural, porque nunca é inconsciente. Porque, no fundo do inconsciente, está a figura da empatia e o bloqueio a que ela remete a sociedade. Uma aceitação genuína obrigaria a sociedade a encarar os seus tabus e paradoxos, obrigaria a sociedade a reexaminar seus mitos e jogar na lata de lixo toda essa ideologia metafísica que nos separa dos animais e dissocia a inteligência dos instintos, dando maior valor à primeira. Porém, não nos enganemos: a razão pode ter certas habilidades, mas os instintos guardam a maior sabedoria.

***

O bissexual é uma espécie em extinção, pois a sua maioria se esconde sob o véu do heterossexual, em casamentos de fachada, e a minoria restante esconde-se nos mesmos guetos onde sobrevivem minorias homossexuais; quando este mesmo gueto é ocupado por indivíduos que usam maneiras afetadas de falar, de andar, de se vestir, e até de consumir; quando cidades turísticas exibem uma "faixa livre" no litoral, onde gays passeiam de mãos dadas e namoram nas praias, ao lado de uma "zona de conflito" onde as mesmas ações seriam recebidas com tiros e pedradas; tudo isso indica que a aceitação é apenas mais um artigo de mercado - uma estratégia de marketing para abrir mercados de consumo específicos para uma clientela fiel e até endinheirada, principalmente por não terem filhos. Não fosse o mercado, talvez o não-heterossexual fosse ainda considerado um criminoso em nosso país, como foi até o passado recente, e ainda é em muitos lugares do mundo.

Os heterossexuais modernos, de forma geral, apreciam a diversidade com o mesmo sentimento com que apreciam mercadorias expostas nas vitrines. Desejam uma diversidade agradável, não querem nem ver a diversidade desagradável. Desejam uma diversidade moderna, fogem da diversidade antiquada. Desejam uma diversidade móvel, consumível, comparável, classificável; não desejam a diversidade em si. Sequer sabem o que é isso.

Para o heterossexual moderno, faz bem ter um amigo ou amiga homossexual, é moderno, é chique. Mostra que você é tolerante, é cosmopolita e tem um pensamento "independente". Mas isso significa que seus filhos terão maior liberdade para viver a própria sexualidade? Nem sempre. Por outro lado, é inegável que há uma abertura cada vez maior, e que os "dissidentes da tradição" podem viver suas vidas com um medo cada vez menor (embora nunca ausente) de serem assassinados por serem reconhecidamente homossexuais. Ainda estamos longe da verdadeira aceitação.

Para onde vamos? Talvez continuemos andando em círculos. É o mais provável. Qualquer avanço conseguido durante séculos de lutas pode ser eliminado em uma década de repressão. Ou talvez a diversidade seja cada vez mais aceita e finalmente compreendida e absorvida como motivo, como modelo, como um fim em si mesma. Não quero ser pessimista nem otimista. Quero acordar os heterossexuais para as mentiras que ainda ocupam seus sótãos, e para as idéias que andam apenas na noite de seu inconsciente, com passos retraídos e indecisos - isso se não foram tornadas paraplégicas, o que acontece quase sempre. E quero pedir-lhes que conversem com seus filhos, deixando claro que todos somos diferentes, e ao mesmo tempo tão parecidos.

Wednesday, February 06, 2008

Desenvolvimento sustentável, capitalismo e igualdade social

Duas questões devem ser tratadas ao se discutir a possibilidade de um desenvolvimento sustentável:

1) É possível a construção da sustentabilidade dentro de um sistema capitalista?

Para responder, é preciso separar o sistema capitalista em duas vertentes: o capitalismo regulado e o neo-liberalismo. No primeiro, cabe ao Estado regular os mercados para evitar aberrações sociais como monopólios, exploração da mão-de-obra, desemprego, inflação, e também a destruição dos recursos naturais. No segundo, é o mercado quem regula a economia, devendo o Estado reduzir-se ao mínimo necessário para tratar de assuntos que não poderiam ser resolvidos de outra forma. Assim, o que vemos hoje em todo o mundo ocidental é o avanço do neo-liberalismo, com grandes empresas tendo maior poder decisório que a maioria dos governos nacionais. Nesse cenário, apenas a boa-vontade dessas empresas poderia garantir o desenvolvimento sustentável, e basta estar vivo para ver que isso não ocorre. Por outro lado, o capitalismo regulado tem, teoricamente, o poder e a obrigação de controlar a exploração dos recursos naturais, garantindo a sustentabilidade. É, inclusive, o que diz o Artigo 255 da nossa Constituição. Mas da teoria à prática há uma distância...

Além disso, com a abertura da cortina de ferro no final do século passado, tornou-se evidente que os países socialistas do leste europeu e União Soviética não trataram seu ambiente muito melhor do que os países capitalistas do lado de cá haviam feito. A China, ainda hoje, é condenada por muitos pelos altos níveis de poluição observados em seu território. Convém lembrar, porém, que somos nós, ocidentais, com nossa aspiração ao American Way, quem geramos a demanda pela sua poluição.

Acredito que o sistema político pode facilitar ou dificultar, mas não eliminar, a possibilidade de se alcançar a sustentabilidade. O importante é que o poder seja tomado por um grupo consciente do problema, interessado em resolvê-lo e capaz de abordá-lo. Apenas no neo-liberalismo esses pré-requisitos não são satisfeitos.

2) O desenvolvimento sustentável é a chave para corrigirmos as desigualdades sociais? Ou vice-versa? Ou são conceitos independentes?

O desenvolvimento sustentável tem como premissa fundamental o consumo dos recursos naturais numa velocidade que permita sua reposição. Para alcançar isso há inúmeros fatores a considerar: redução na taxa de crescimento populacional, redução das taxas de consumo, maior eficiência energética, produção de bens mais duradouros, diversificação da agricultura, redução do uso de insumos agrícolas poluidores, planejamento da ocupação territorial, redução dos latifúndios, inversão do êxodo rural e/ou diminuição dos grandes centros urbanos, melhoria dos sistemas de transporte urbano, entre vários outros.

As desigualdades sociais precisam de iniciativas políticas complexas, que sempre esbarram nos interesses de grupos tradicionalmente alojados nos poderes oficiais ou por trás deles: educação de qualidade para todos, melhor distribuição da carga tributária, saúde de qualidade, combate à corrupção, humanização das forças policiais, combate ao tráfico de drogas por uma perspectiva de saúde pública, iniciativas culturais e esportivas, reformulação das idéias de urbanização, dando maior enfoque às comunidades locais (criação de creches, centros de convivência, parques, descentralização de comércios, etc.), além de vários outros fatores, muitos deles também necessários para alcançar o desenvolvimento sustentável.

Contudo, ainda que a solução dos dois problemas passe por algumas medidas em comum (como redução de latifúndios e das metrópoles), a solução de um não levará, necessariamente, à solução do outro. O desenvolvimento sustentável prevê que as grandes indústrias devem ter moderação em seus lucros, não que os lucros deixarão de existir. Prevê que os meios de transporte poluam menos, não que sejam igualmente acessíveis a todos. São coisas distintas, sustentabilidade e igualdade social, e forçar a aceitação de um quando discutimos o outro apenas torna o debate nebuloso.

Por outro lado, o aumento da igualdade social não levará de imediato a um desenvolvimento mais sustentável. Se, no mundo de hoje, os ricos compram um carro novo por ano e os mais pobres, na melhor das hipóteses, dois quilos de carne por ano, então a sustentabilidade não estará no fato de que todos possam comprar do mesmo no futuro, mas quanto de cada produto cada um comprará. Num planeta de seis bilhões de pessoas, onde o ritmo extremamente lento das melhorias sociais implica que só alcançaremos alguma igualdade (se a alcançarmos) quando já houverem talvez dez bilhões de humanos, só chegaremos perto de uma possível igualdade em um nível material muito inferior ao que estamos acostumados, todos que temos a sorte de poder ler estas palavras.

Apenas uma coisa é certa: num mundo de tantos miseráveis e muitíssimos pobres, são estes os que mais sofrem com as conseqüências do insustentável modelo atual. Torna-se cada vez mais caro um alimento de qualidade, a saúde e as opções de lazer são reduzidas com a poluição, a própria educação sofre com a massificação crescente das culturas ao redor do mundo. Projetos de desenvolvimento alternativo e sustentável reduzirão essas perdas que não são contabilizadas nos índices tradicionais de qualidade de vida, transformando-se automaticamente em igualdade social e dignidade.

Da competência

Trabalhadores do Brasil (e do mundo), quantos de vós sabeis o impacto final de vosso trabalho?

O mundo está sendo impactado pelo nosso excesso de competência. Produzimos demais, gastamos demais, queimamos demais. E não é só o aquecimento global (para os incrédulos que resistem): a destruição de tudo que a Natureza nos dá de graça está trazendo graves prejuízos para todos, principalmente os mais pobres. E a tendência é piorar.

Competência, hoje, é perceber o tamanho do impacto que seu trabalho e estilo de vida causam, e adotar medidas para reduzir esse impacto. Quanto mais, melhor. O que não significa perder todo o conforto, mas principalmente abandonar atos impensados e nocivos. Isso se aplica a cidadãos E governos. Mas só os cidadãos podem exigir de seus governos.

Competência? Não faço questão de terminar o meu trabalho, talvez seja melhor largá-lo no meio. Não estou aqui para produzir, mas para aprender. E não dou a mínima para assinar meu nome na saída.

Se você gosta de luxo, você não gosta de conservação

Enquanto Brasília viver de luxo, nada será conservado - é só olhar como se trajam, se transportam, seus ambientes de trabalho, lares e locais de lazer urbano, quem aceitam receber em seus escritórios, o que comem, bebem e desperdiçam, como costumam colocar a lei acima do bom senso e a burocracia na frente de um objetivo qualquer, como ganham mais que 98% dos brasileiros e não ADMITEM que são ricos - estou falando ainda dos que trabalham EM FAVOR da conservação (e ainda me chamam de radical).