Wednesday, August 27, 2008

Eppur si muove

Como é estranho colocar as palavras por aqui. Sei que o vento vai continuar batendo, e as pessoas desinteressadas. Quem eu queria mudar não muda, não quer; quem eu queria ver aprender não sabe que não sabe.

A sabedoria é um longo e trabalhoso processo. Para alguns essa labuta é um prazer, mas para a maioria já deixou de ser. O mundo continua dando corda em seus relógios para que alguns poucos afortunados acordem tarde ganhando mais, enquanto o resto sustenta seu ritmo alucinado. Não poderiam desacelerar nem se quisessem, mas poderiam deixar de desejar? O desejo move o mundo, e só bilhões de budas não-desejosos podem nos conciliar?

Palavras, palavras vãs quando não cimentadas em atos; mas atos, atos sem palavra pensamento plano discussão, não são atos cegos?

A maioria pensa que já está no rumo certo, quando ainda nem olhou em volta. Adorar o Deus dos seus ancestrais, mesmo em guerra com os deuses dos demais? Sobra ainda espaço para o diálogo? O bem e o mal estão acertados? Como o descobriram tão rápido, se nem os profetas ainda tinham tanta certeza? Pra que pensar tanto, me perguntam, vamos viver, propõem. Mas viver hoje é trabalhar comprar consumir morrer? Sem dor mas com medo. Satisfação garantida mas sem arte. Trabalho sem sentido, vida sem direção, ou redemoinho adentro. Um furacão, um furacão é o que somos, e vamos destruindo bucolicamente a paisagem, erguendo prédios e parindo parindo parindo. Multipliquem os pães, porque Jesus já foi embora e hoje é preciso trabalhar. Mais comida, mais brinquedos caros, mais objetos desnecessários, mais algemas, mais lenha na fogueira, mais, muito mais. Números não nos impressionam mais, queremos potências de dez. Se não somos G8 somos BICR, se não somos terceiro mundo estamos em franco e acelerado processo de Avança Brasil. Os pretos na sarjeta, ora são pretos na sarjeta, não ouviste falar? Refugos inevitáveis do processo. Fuja! Recomponha-se. Faça uma caridade para aliviar sua mente burguesa. Dê uns trocados mas mantenha sua classe social. Você fala tão bem, sabe usar os argumentos mas desconhece as falácias que comete, tudo bem. Você é humano, e o principal é que faz parte de um plano maior, onde nada falha. Sem este plano maior ficaríamos loucos, a responsabilidade é só nossa? É demais! O erro existe? Não! O plano perfeito é certeza, ainda que invisível. Sim, ainda acreditamos no progresso, acreditamos na evolução moral das almas ao longo dos éons, não por esforço nosso é claro, posto que não sabemos atentar para os detalhes sutis da lógica que desvela a verdade, mas sabemos conversar sobre o que já sabemos, e como? Querem nos ensinar a duvidar? Mas a dúvida é tão instável, tão insegura, tão incômoda, tão.... duvidosa. Prefiro saber. Prefiro acreditar que sei. Assim poderei criar meus filhos com a pretensão desmesurada do religioso, da religião-ciência, religião-fato que engole realidades, que matou índios e hereges, que atira fogo na lógica e alimenta o esquecimento. Mostrem seus cães, hereges! E sobre eles ergueremos nossa torre prepotente de verdades! Sim, sabemos a verdade explicada pelos livros, aqueles livros apenas, não esses. Esses nunca li, nunca lerei, são pesados demais para meu pobre intelecto amador da verdade, mas preguiçoso de buscá-la. Ah, Hércules da informação, por que se oculta? Brainstormings de farinha, apenas. Mas o quê! Não discutamos para não atrapalhar o sono dos anjos. Não argumentemos para não pôr em xeque nossas certezas falhas frágeis inconsistentes. Há buracos, eu sei, mas no mais onde não os há? Uns se acham melhores que os outros, paremos! Vivamos apenas da alegria do viver, todos iguais, todos medíocres, todos enganados, manipulados, enjaulados bois no pasto pós-moderno dos senhores. Vivamos e não discutamos. Sigamos rolo-compressor à frente, cruel e indigente, selvagem impiedoso mas com tempo nos comerciais para irmos ao banheiro. Está tudo certo, Deus é grande, e enquanto estivermos do seu lado estaremos certos e seguros. Talvez mais que o desejável.

Tuesday, August 12, 2008

O politeísmo e a origem do tudo ou nada

Desde a aurora dos tempos, quando os homens-bichos começaram a descrever o mundo, a noite era a noite e o dia era o dia. Independente dos nomes que levassem, contudo, o crepúsculo nunca foi algo que passou despercebido. O homem primitivo, antes mesmo de inventar nomes para as coisas, sabia que as coisas se apresentavam na natureza em diferentes gradações. Um fruto podia estar verde ou maduro, mas podia estar mais ou menos maduro, muito verde ou nem tão verde assim. Tudo tinha seus tamanhos e graus diferenciados.

Quando surgiram as primeiras divindades não foi diferente. Cada deus tinha o seu papel, cada um tinha uma história, e ensinava uma moral diferente. Se alguém não concordasse com a moral de alguma divindade, se houvesse alguma crítica a ser feita, algo a ser discutido, sempre haveriam outros deuses, outras versões da mesma história, ou de outras histórias, outros pontos de vista para enriquecer a discussão. Ainda nessa época, é pouco provável que houvesse a questão de se acreditar ou não nas divindades, da maneira como usamos a palavra 'crença' hoje. Essa idéia simplesmente não devia existir, visto que dicotomias absolutas ainda não existiam. O mundo era feito, como já disse, de gradações. Cada divindade defendia um ponto de vista, cada uma contava uma lição, e os tolos eram aqueles indispostos a aprender com tudo isso.

Muito tempo depois surgiu um fenômeno que ainda hoje exige explicação: o monoteísmo. De alguma maneira, toda a riqueza moral da humanidade foi sendo resumida a uma única idéia, e o mundo se tornou menos colorido: não mais muito verde - verde - médio - maduro - muito maduro. Agora era uma questão de sim ou não, bem e mal, certo e errado, tudo ou nada. Ou se está com Deus ou se está contra Deus. O meu Deus é diferente do seu, mas ele anseia por ser único. O que antes era uma medida de conhecimento, agora era uma medida de imposição. Os deuses cultura se transformaram no Deus política. No Deus força. No Deus dominação.

Hoje ainda existem culturas politeístas e ateístas mundo afora. Podemos dizer que o Taoísmo é uma religião sem deuses, e podemos dizer o mesmo de outras religiões orientais, como o Confucianismo e o Budismo. Ao mesmo tempo temos sociedades nativas das Américas, África e Pacífico que cultuam várias divindades, imagino que mais ou menos da mesma forma que os antigos. Se podemos falar em vantagem - e eu acredito que podemos - está claro que os diversos politeísmos são, enquanto religião, mais tolerantes e curiosos, pois se interessam pelo conhecimento de outros deuses, no lugar de tentar exterminá-los.

Além da curiosidade - a própria origem do "pecado", ao menos para os monoteístas cristãos - os monoteísmos introduziram no mundo o grande mal da dicotomia forçada. Ou seja, enquanto antes os extremos das dicotomias reais eram acompanhadas de toda uma gradação de valores intermediários, hoje estamos acostumados às dicotomias completas. Ou o personagem da história é bom ou é mau; ou se vai para o céu ou para o inferno; ou se evolui para o bem ou não se evolui de todo; ou a Amazônia será destruída ou salva; ou presídio ou liberdade; ligado ou desligado; oito ou oitenta. Sabemos que não precisa ser assim, como aliás sabemos que NÃO É assim. Vejamos o caso do bem e do mal: se todas as pessoas forem boas numa dada sociedade, não tardará a aparecer um oportunista aproveitador da bondade alheia. Esse primeiro indivíduo mau deverá ser punido pelos outros. Mas como a punição é, por si só, algo necessariamente mau, então devemos concluir que o bem e o mal existirão necessariamente em toda sociedade. São inescapáveis e sempre existiram. Talvez se soubéssemos, cada um de nós, como ser bom e mau nas ocasiões corretas, a harmonia social seria mantida muito melhor do que é hoje.

Quando alguém pergunta se fulano é honesto, ou quando se tenta definir o que é o bem, cada uma dessas questões merece uma profunda reflexão. Ninguém é completamente honesto, nem completamente falso. Sabemos o que é o bem quando o vemos, mas será tão fácil defini-lo? Chego à conclusão que apenas o conhecimento pode nos esclarecer sobre essas e outras questões - mas os monoteísmos são, cada qual à sua maneira, inimigos naturais do conhecimento. Se não fossem, teriam toda a curiosidade do mundo em conhecer outras religiões, em partilhar idéias e discutir valores, em filosofar sobre o mundo, buscar entender a realidade e aplicar nosso conhecimento na construção de uma sociedade mais justa. Mas sabemos bem como as pessoas religiosas em geral temem a filosofia. Esse estado de coisas, essa ignorância coberta e recheada de preconceitos, essa intolerância e preguiça em relação à verdade, não é algo que merece ser enfrentado?

A Verdade Absoluta

O que é, afinal, a Verdade Absoluta? Isso existe ou não? Se pensarmos que existe uma Verdade Absoluta, ou seja, uma Realidade alheia às vontades e convicções de cada um de nós, então cada opinião de cada pessoa pode corresponder ou não à Realidade; cada pessoa está mais certa ou mais errada que cada outra pessoa com opinião divergente. Ou ambas igualmente erradas. Se essa Realidade não existir, então só o que temos é a visão de cada um, e não faz sentido falar em certo e errado, apenas em interpretações.

Chamemos essas duas hipóteses de Verdade Absoluta (que existe uma Realidade única independente das nossas expectativas) e Relativismo Cultural (que a realidade é mutante e impalpável, variando conforme nossas crenças). Qual das duas é mais comum? Entre cientistas físicos (o que inclui a física, química e biologia) e também entre religiosos extremistas, parece haver o predomínio dos “Absolutistas”, ao passo que entre cientistas humanos e religiosos moderados, parece haver mais “Relativistas”.

A posição dos cientistas físicos busca evitar toda e qualquer forma de antropocentrismo: o mundo é o que é, não o que pensamos que seja. Toda a história das ciências parece avançar nesse sentido, derrubando as certezas antigas (e antropocêntricas) em favor de um universo indiferente a nós (vale notar que esse progresso se deu pela adoção das leis mais simples que explicam o maior número de fatos, o chamado princípio ou navalha de Occam). Já os religiosos fundamentalistas chegam à mesma posição, embora pelo caminho inverso: seu Deus é o único existente, suas Leis não são “descobertas”, mas “reveladas”, e são universais, mas apenas os seguidores da mesma religião conheceriam a Verdade.

Desnecessário dizer que a primeira visão (dos cientistas físicos) pode ser compartilhada por toda a humanidade, já que toda teoria científica está humildemente à espera da evidência contrária que fará o conhecimento avançar, independente da raça, sexo ou ideologia de quem apresente tal evidência. Ciência é isso. Entre os religiosos fundamentalistas não pode haver tal consenso, uma vez que suas “verdades” não são fundamentadas em nenhuma evidência palpável; e como as verdades de cada lado são defendidas com o mesmo furor cego, nenhum lado jamais se juntará aos outros.

Já o Relativismo é comumente defendido por vários cientistas humanos (embora por essa única razão eu prefira o termo “humanidades” ao invés de “ciências humanas”). Para vários desses profissionais (incluindo antropólogos, cientistas sociais, jornalistas e outros), parece não existir o conceito Verdade. Não quando investigado a fundo. Se uma sociedade crê numa coisa, e outra sociedade crê em outra, teríamos apenas um fenômeno de diversidade cultural, que deve sempre ser louvado, nunca questionado. No meu ponto de vista, os Relativistas confundem a beleza da diversidade cultural com a validade de pontos de vista discordantes.

É comum entre os que têm contato com povos indígenas, por exemplo, a idéia de que o conhecimento de mundo desses povos seja apenas diferente do nosso. Nem mais certo nem mais errado, em nenhum ponto. Como se fizessem parte de outro “reino” natural, suas explicações os satisfazem, então simplesmente não faria sentido questionarmos qual “reino” estaria correto quando há divergência. Relativistas parecem não se fazer esse tipo de pergunta. Por exemplo, a tribo indígena A diz que o Sol está mais distante da Terra do que a Lua, a tribo B diz que a Lua está mais distante, e a tribo C diz que ambos estão à mesma distância. Sabemos que a astronomia tem um modelo heliocêntrico, no qual a Terra e a Lua orbitam juntas em torno do Sol, e as distâncias são enormemente diferentes. Para que as tribos B ou C estejam corretas, um novo modelo deveria ser proposto que explicasse todos os fenômenos astronômicos que a teoria atual explica, das interações entre galáxias distantes ao movimento das marés, do fenômeno da paralaxe às instabilidades nas órbitas dos satélites. Enquanto esse modelo não for proposto, e o modelo atual explicar com satisfação e simplicidade os fenômenos que observamos, não temos porque achar que A, B e C estão igualmente corretos. Pior, independente da verdade, como podemos pensar seriamente que os três possam estar corretos ao mesmo tempo?

Um dos temores que as pessoas têm em relação à idéia de Verdade Absoluta parece ser o risco de alguém se apropriar dessa Verdade, como a Igreja fez entre incontáveis assassinatos à época da Inquisição. É fácil perceber como as pessoas têm um certa desconfiança, e mesmo temor, em relação à ciência. Mas não é isso que os “Absolutistas” propõem. A despeito de existir uma única Realidade, o que a ciência faz é se aproximar dela cada vez mais, sem nunca alcançá-la. Sabemos que nossa compreensão atual do mundo é mais completa do que o quadro que tínhamos no ano 1300. Mas também sabemos que esse quadro será sempre incompleto, por mais detalhes que adicionemos.

O que os animais fazem na obscuridade de seus ninhos depende da natureza deles, não da nossa. Da mesma maneira um cometa é visto em qualquer país sobre o qual passe, independente de que um decreto presidencial proíba a passagem de corpos celestes. Uma geada destrói plantações inteiras, independente do entendimento que façamos dela. E esse entendimento pode ser o mesmo que explica porque o gelo bóia, como o Ártico sustenta ursos polares e como construir geladeiras. Ou podemos ter conhecimentos místicos dissociados de outros campos do conhecimento. Em outras palavras: podemos escolher entre interpretação individual ou coletiva. A interpretação individual é a que os Relativistas respeitam, a interpretação coletiva é aquela buscada pelo consenso dos Absolutistas.

As mortes que uma guerra causa não são devolvidas. Não há espaço para interpretação nisso. Ou alguém morreu ou está vivo. Assim, o fato de não alcançarmos em definitivo a Verdade não significa que esta não exista. Para um biólogo ou um físico, essa sentença pode parecer tão óbvia que sequer mereça ser escrita. Mas as humanidades parecem circular ao redor de seus eruditos, dos grandes filósofos e seus complexos sistemas sem encontrar um porto seguro, sem encontrar um pensamento onde ancorar seu mundo. Aparentemente, o estudo de muitas teorias divergentes associado à ignorância científica comum à maior parte da população produz este resultado insensato: a Realidade é tida como menos relevante que as opiniões.

Talvez numa dimensão mais distante da realidade, no nível das partículas sub-atômicas, ou em velocidades próximas às da Luz, ou nas vizinhanças de um grande buraco negro, tudo isso deixe de fazer sentido. Mas na escala humana, nas dimensões médias do nosso planeta e nossas vidas, os fatos observados por uma pessoa são os mesmos fatos observados por outras pessoas. É verdade que as diferenças culturais atuam como filtros, dificultando o entendimento. E é precisamente aí que a diferença entre Absolutismo e Relativismo se torna relevante. Quando aceitamos diferentes pontos de vista sem questioná-los ou entendê-los, não estamos contribuindo em nada com o mundo. Se, pelo contrário, conversamos até estabelecer denominadores comuns ao entendimento, conceitos intercambiáveis, podemos manter nossa cultura, compreender a do outro e tornar ambas mais ricas.

E você, qual é a sua Verdade?

Tao Te Ching 41-50

41

O aprendiz elevado, ao ouvir o Tao,
diligentemente o segue;
o aprendiz médio o segue conforme a ocasião;
o aprendiz medíocre, ao ouvir o Tao,
dá sonoras gargalhadas.
Se não gargalhasse, não seria o Tao.

Por isso foi criado o provérbio:
o caminho (Tao) claro não parece tão claro,
avançar no caminho parece retroceder,
o caminho seguro parece falho,
a virtude elevada parece rasa,
a virtude vasta parece pouca,
a virtude sólida parece frágil
o caráter verdadeiro parece oscilar,
a grande clareza parece ofender,
o grande quadrado não tem pontas,
o grande instrumento é o último a ser terminado,
a grande música tem poucos sons,
a grande imagem não tem forma.

O Tao é oculto e desconhecido
e ainda assim nutre e completa todas as coisas.


42

O Tao deu origem a um,
o um deu origem a dois,
os dois deram origem a três,
os três deram origem a todas as coisas.

Todas as coisas vêm do yin (feminino) e buscam o yang (masculino),
do equilíbrio entre os dois se produz a harmonia.

As pessoas odeiam a solidão,
a pobreza e a falta de valor.
Mas os líderes assim se definem.
Pois as coisas decrescendo, aumentam;
ou aumentando, decrescem.

O que outros ensinaram eu também ensinarei:
os violentos sempre têm uma morte violenta.
Esse será o meu ensinamento mais importante.


43

O mais flexível sempre passa à frente do mais duro.
Quem tem pouco entra onde não há espaço.
Portanto eu sei o benefício da mínima ação.

Poucos no mundo alcançam
a sabedoria de ensinar sem palavras,
e o benefício da mínima ação.


44

Fama e saúde, qual é mais querido?
Saúde e dinheiro, qual vale mais?
Ganhar e perder, qual é mais destrutivo?

Quem se apega demais
desperdiça o que é mais valioso.
Quem muito guarda, muito perde.

Por isso, quem se contenta com pouco sofre menos.
Quem sabe quando parar se afasta do perigo,
e vive por mais tempo.


45

A grande realização parece incompleta,
mas não engana.
Aquilo que é completo parece oco,
mas seu uso não o extingue.
A grande reta parece torta,
a grande habilidade parece desajeitada,
o grande argumento parece ilógico.

O quieto vence o inquieto,
o manso vence o feroz.
A tranqüilidade serena é a maneira do universo.


46

Num mundo com o Tao,
os cavalos levam esterco pelo campo.
Num mundo sem o Tao,
cavalos de guerra proliferam nos campos.

O maior desastre está em
não se satisfazer com o bastante.
A maior falha está no desejo de ganho.

Portanto, a satisfação com o que se tem
é a satisfação mais duradoura.


47

Sem sair pela porta, conheça o mundo;
sem olhar pela janela, perceba o Tao do universo.

Aquele que mais se afasta de si
é o que sabe menos.

Por isso, o sábio descobre o mundo sem viajar,
entende as coisas sem vê-las,
alcança o que deseja sem agir.


48

Na busca do conhecimento, a cada dia algo é aprendido.
Na busca do Tao, a cada dia algo é abandonado.

Abandone, e abandone mais,
até aprender a mínima ação:
não fazer, e não deixar sem fazer.

Para conquistar o mundo
é preciso constantemente se desapegar das coisas.
Se o apego for mantido,
sempre restará algo por conquistar.


49

O sábio não tem uma mente fixa,
sua mente acompanha a mente das pessoas.

Para os bons, eu sou bom;
para os maus, eu também sou bom;
eis a virtude do bem.
Para os honestos, eu sou honesto;
para os desonestos, eu também sou honesto;
eis a virtude da honestidade.

O sábio vive num mundo bem restrito, não parece?
mantém sua mente simples e verdadeira.
Todos o observam e o escutam,
e ele os trata como crianças.


50

Para morrer basta estar vivo.
3 em 10 são seguidores da vida;
3 em 10 são seguidores da morte;
3 em 10 amam a vida,
mas se movem rumo à morte.
Por que é assim?
Porque se apegam demais à vida.

Fala-se daqueles radiantes de vida,
que seguem seu caminho sem temer
encontrar um rinoceronte ou um tigre,
que entram no exército sem temer os tiros.
O rinoceronte não encontra nele
um lugar onde cravar seus chifres.
O tigre não encontra nele
uso para as suas garras.
O soldado não encontra nele
destino para sua lâmina.

Por que é assim?
Porque nele não há lugar para a morte.

Thursday, August 07, 2008

O alvorecer do homem

A espécie humana caminha para a afeminação, isso já não foi dito? Depois que as máquinas começaram a fazer todo o trabalho pesado - para quem as pudesse comprar - a característica viril mais marcante foi subjugada: a força física.

Na maior parte do reino animal os machos são os animais mais vistosos. Leões, touros, galos, pavões, cervos, macacos: os machos em geral não são apenas maiores, são também mais fortes, mais rápidos e mais coloridos. Quando é a fêmea quem escolhe, os machos não têm escolha a não ser capricharem naquilo que elas exigem.

O animal humano por muito tempo não foi diferente. Ainda hoje podemos observar a vaidade dos homens Xingu e Yanomami em seus trajes de festa, suas pinturas, máscaras e adereços variados. No Xingu, os homens lutam como forma de adquirir status social. Seu tamanho descomunal (para o típico homem urbano e moderno) é um assustador retrato do passado. Entre os Sateré-Mawé, os jovens que alcançam a idade adulta devem colocar as mãos numa cesta cheia de temíveis formigas tocandeiras, cuja picada dolorosíssima é a mais violenta entre os insetos conhecidos. A afeminação da espécie nada mais é que o abandono de práticas como essas, que valorizaram por milênios virtudes masculinas hoje desvalorizadas: força, coragem, habilidade, entre outras.

E não é que a mulher tenha deixado de escolher, apenas seu objeto de escolha hoje deixou de ser natural, deixou de ser intrínseco ao conjunto masculino - corpo e mente - para ser apenas um produto da posição do homem dentro da sociedade. Em outras palavras, dinheiro.

Os homens que competem pelas mulheres sabem o que apreciam nelas: seu charme, sua leveza; um jeito próprio, especial e cheiroso de mexer no cabelo, ou de caminhar, ou sorrir. Ou tudo isso junto. Apreciam também a volatilidade feminina, essa capacidade de se adaptarem ao recipiente que é o ego masculino, sua necessidade de se encontrarem no homem; de só ali, em seu protetor e parceiro, se realizarem, se encontrarem e serem mulheres. E, como disse o poeta, ser então toda amor. E é claro que esses homens ainda valorizam aqueles traços mais mundanos, medidas, circunferências, um belo corpo de violão, etc.

E as mulheres que gostam de homens, valorizam o quê? E os homens homossexuais, valorizam o mesmo que essas mulheres? Não, não vou traçar paralelos nem diagonais. Levaria muito tempo e correria o risco de ficar impreciso ou incompleto. Mais seguro dizer o que eu admiro num homem. Só posso lamentar o fato de os homens seguirem o que as mulheres sempre desejaram, ou seja, a capacidade de se adaptarem à sociedade local de modo a prover o sustento de uma prole outrora numerosa, durante no mínimo duas décadas. Hoje a prole não é mais tão numerosa, mas sua criação é tão custosa que o homem outrora bravo, forte e viril hoje chega à maturidade como um rascunho, uma sombra do que foram nossos antepassados. A especialização hoje necessária à sobrevivência torna os homens criaturas frágeis, dóceis, obedientes aos chefes, temerosos de perder o emprego, submissos à mulher, aos sogros, a Deus, à patria, à família, à vizinhança, ao que for. Sujeitos passivos, gentis, controlados (ainda que à força), obedientes às regras sociais e impossibilitados de se afirmarem como indivíduos únicos, diferentes, próprios, pessoais. Na possibilidade de darem errado como experiência, temem estender à esposa e aos filhos as conseqüências de tal erro, e por fim deixam de experimentar, de arriscar, enfim, de serem o que em outras ocasiões é o apogeu do macho.

A maior e mais valorosa característica masculina é a coragem. Antes da mídia de massas ser descoberta como uma poderosa ferramenta de manipulação popular (a esse respeito, sugiro que se conheça a obra do sociólogo francês Gustave Le Bon), antes disso poderíamos dizer que as pessoas tinham um nível "normal" de coragem. Hoje, muitas pessoas temem andar a esmo nas ruas das grandes cidades, apavoradas por um medo artificial, inventado e sustentado pela divulgação constante e incansável de desgraças, atentados, assaltos, homicídios, suicídios, tiroteios, chacinas, genocídios, perseguições, acidentes, e todo um universo de más notícias que - dizem - atenderia a uma necessidade inata do ser humano pelo que há de mais pérfido na natureza. A perda da coragem é uma espécie de doença neurótica que transforma os outrora homens em sujeitos passivos, cada vez mais satisfeitos com os muros e grades que nos protegem uns dos outros, e que cada vez menos nos permitem conhecer a sociedade em que vivemos, da qual dependemos, e que é cada vez mais um anexo obrigatório, um parasita que nos sustenta, uma espécie de gêmeo siamês - cuja tentativa de separação finalmente nos mataria. A sociedade a cada ano deixa de fazer sentido para se tornar algo com o que nos identificamos por pura falta de opção.

Outra mudança paulatina do mundo em que vivemos é a degradação ambiental, que longe de nos causar apenas "possíveis problemas futuros", já eliminou de boa parcela da humanidade a noção do que seja a biodiversidade. O homem moderno não teme apenas seus semelhantes urbanos, principalmente os menos favorecidos, teme ainda mais as outras espécies, as milhões de espécies que durante milênios serviram de inspiração à arte, à mitologia e à ciência, e que hoje são geralmente vistas com reações que variam do desdém ao nojo, do desinteresse ao mais genuíno e profundo medo. Se há uma característica masculina típica e nobre, é a de se interessar pela natureza ao seu redor e não temer o desconhecido. Característica, infelizmente, cada dia mais rara.

A força física, embora admirável, perde para a coragem por uma razão bastante simples: um homem fraco mas corajoso é capaz de obras mais elevadas que um homem forte, porém medroso. Ainda assim, a força física, por si só, não poderia ser ignorada quando tentamos traçar um retrato do homem ideal. Ainda que o homem mais forte do mundo seja um luxo desnecessário em qualquer época, ou apenas uma interessante curiosidade, o que observamos hoje é uma preocupação excessiva no acúmulo de bens, a tal ponto que não apenas a força física em geral é relegada a último plano, mas a própria saúde é deixada de lado. O homem moderno, assim como a mulher moderna, aceitam ajuda das máquinas não apenas quando desnecessária, mas mesmo quando prejudicial. Algum conselho para uma vida mais saudável poderia dizer "para subir um andar ou descer dois, use as escadas" - mas o que vemos é um hábito generalizado a mesmo descer um único andar pelo elevador. Isso, mais vidros elétricos nos carros, máquinas de lavar pratos, máquinas e mais máquinas não nos trouxeram, incrivelmente, àquele mundo onde teríamos mais descanso, mas pelo contrário, nos trouxeram a um mundo mais congestionado, mais poluído, onde precisamos trabalhar muito para pagar por tantas máquinas e contas, e ainda perdemos muito tempo nos trajetos de ida e volta; para no fim das contas vivermos mais preocupados, mais apressados, mais nervosos, mais fracos e com menos saúde. Vivemos mais anos, mas somos débeis sombras de guerreiros envelhecidos antes mesmo dos trinta anos. Nos rincões menos civilizados do globo vemos vários homens capazes de carregar uma carga considerável por uma longa distância, ou mesmo apenas carregar essa carga (para colocar um motor em um bote, por exemplo). Dizer que esse tipo de trabalho é inútil nos dias que correm é algo como admitir que seja saudável vivermos num mundo em que somos cada vez mais fracos (e burros); e as máquinas, mais fortes (e inteligentes). Não é preciso muita imaginação para enxergar onde isso pode parar.

A curiosidade também é um traço tipicamente masculino. As crianças dos dois sexos são bastante curiosas, mas à medida que as meninas são preparadas para cuidarem da futura família, é sugerido aos homens que sigam seus instintos investigadores. Talvez por herança histórica, talvez pela diferença biológica entre os sexos, o fato é que os maiores gênios de todos os tempos foram homens. Os maiores cientistas, os maiores pensadores, escritores, pintores, escultores, músicos, arquitetos, inventores, enfim, as maiores mentes de cada época e área de especialização foram homens. Enquanto suas irmãs e primas estavam sendo ensinadas a agir com graça e elegância para conseguirem um bom marido, as mentes desses homens estavam ocupadas em fugir das imposições há muito estabelecidas pela tradição, em buscar o novo. Talvez venha justamente dessa curiosidade a típica independência masculina. Ao contrário da mulher, que em geral só é completa quando junto ao homem que escolheu para seu, creio que não exagero ao dizer que o homem só é ele mesmo quando solitário, quando seus demônios voam livremente no universo da imaginação, criando e vibrando como música em infinitas e vagas variações, inúteis, despropositadas, e por isso mesmo tão carismáticas e apaixonantes como a boa arte deve ser.

Aliando a curiosidade e a coragem, temos o perfil do homem engenhoso, do tipo que conserta um encanamento, troca a resistência do chuveiro, improvisa uma churrasqueira, e coisas assim. No mundo moderno, é cada vez mais comum que paguemos a profissionais por serviços desse tipo, e com isso o homem deixa de lado esse belo traço próprio da espécie, a capacidade de improvisar, de moldar o próprio mundo ao invés de apenas trabalhar, de resolver por si só um quebra-cabeças e encontrar prazer na tarefa.

Há ainda uma tríade de sentimentos, ou antes ações, ou estados de espírito, que acredito serem tipicamente masculinos, e ao mesmo tempo parecem desvanecer largamente no mundo atual, que tanto valoriza a aparência sobre a essência, o possuir sobre o ser. São eles: a serenidade, o desprendimento e a permissividade.

Serenidade é quando tentamos não nos perturbar pelos acontecimentos externos. Isso inclui, por exemplo, tolerar o clima de uma região permitindo que o corpo se aclimate aos poucos; não se manifestar sobre uma condição que não podemos controlar, até que esta tenha atingido um limiar realmente insustentável; manter o humor estável o suficiente para que se possa tomar uma atitude racional mesmo em meio a uma tempestade. As mulheres são tipicamente mais levadas pelas próprias emoções; e o que por um lado pode ser útil à inteligência e à ação, muitas vezes avança para quadros mais instáveis e até histéricos. A serenidade é a calma antes da ação, a ponderação antes da decisão, a estabilidade frente às ondas, o porto seguro no mar agitado. Ainda que uma boa dose de descontrole seja lindamente aproveitada pelas artes, e até pela própria ciência, a serenidade é o traço masculino que impede que esse descontrole se transforme em frenesi, em excesso, e muitas vezes em perda.

Desprendimento, ou desapego, é a capacidade de reconhecer que as pessoas e os momentos que vivemos têm uma importância incomparável frente aos objetos, às posses e aos detalhes. Poucas coisas na vida realmente têm importância, e descobrir que coisas são essas é uma preocupação cada vez mais ignorada. Damos importância demais ao que não é importante, e fugimos ao principal. Aqui entram valores antigos, como a religião e seus preconceitos, idéias de culpa e pecado, salvação, vida após a morte e outros vícios; mas entram também valores modernos, como o consumo, a competição, a ostentação, o luxo e a riqueza; todos contribuindo igualmente para que percamos de vista o que realmente interessa. Hoje, nesta sociedade afeminada, podemos dizer que o desprendimento é um valor que falta igualmente a homens e mulheres, mas a história tem registro de vários homens que se tornaram eremitas, muitos deles sábios, assim como hoje na Amazônia podemos conhecer homens que vivem com muito pouco em meio à única riqueza que valorizam: o canto dos pássaros, o ar puro, a água limpa para nadar, frutos e peixes variados, entre outras tantas maravilhas naturais. Poucas mulheres abrem mão de criar uma família, mas muitos foram e são os homens que abrem mão dessa tarefa em busca de uma vida mais simples. Melhor fariam, talvez, se criassem uma família e passassem adiante os seus valores, que, acaso fossem compartilhados por uma parcela maior da humanidade, nos ensinaria a todos a deixar de lado a competição virulenta que causa esse mal-estar da modernidade.

Por fim, a permissividade se refere à tendência de permitir que a natureza siga seu curso, sem que queiramos interferir. Essa atitude parte da concepção de que a natureza é mais sábia que os homens, e portanto temos mais a aprender com sua observação do que ensinar pelas nossas ações. A permissividade consiste em deixar que os outros sejam felizes fazendo o que precisam, mesmo que isso nos cause por vezes um certo desconforto. Consiste em valorizar as coisas não apenas pelo que trazem a nós e aos nossos, mas principalmente pelo que trazem às outras pessoas, que por vezes sequer conhecemos. Aqui as mulheres tendem a ser mais egoístas que os homens, talvez porque as mulheres têm mais certeza de que os filhos que criam são mesmo seus, ao contrário do homem, que tem sempre de encarar o espectro de ser "o último a saber" e carregar na testa um símbolo do fracasso. Mas, pensando assim, se o fracasso é possível e mesmo nele podemos ser felizes, então talvez o fracasso não seja de todo ruim. Mais ainda, talvez seja apenas o fracasso, com toda a responsabilidade que nos retira dos ombros, que permita ao indivíduo viver a vida sem se sentir obrigado a mostrar aos outros do que é capaz. O fracasso seria, assim, liberdade. Daí o desprendimento e a permissividade andarem juntos, uma vez que só somos verdadeiramente livres quando não temos nada a perder.

À guisa de epílogo

Não lembro se foi Thoreau ou Emerson quem falava de uma época no futuro em que os homens seriam novamente exemplares, quando não mais poderiam olhar de soslaio, pelo canto dos olhos, e apenas poderiam olhar para alguém virando toda a cabeça na direção desejada. Se e quando este futuro chegar, os homens terão vencido as diversas camadas de preconceito e superficialidade que nos separam da verdade, e poderão abraçar sem medo a sua completude, serão seus próprios eus, nem mais, nem menos. Até lá, cabe a cada um de nós resgatar cada uma dessas virtudes aos poucos perdidas, mas que se encontram ainda nas fendas cavernosas da mente coletiva. Até lá, cabe a nós sermos o ideal que esperamos encontrar, e cabe a nós cobrar dos outros esse tipo de honra que a algazarra eletrônica da modernidade anseia por nos deixar esquecer. Enquanto isso, sejamos bravos, fortes, curiosos, hábeis, serenos, desapegados e permissivos. Sejamos, em uma palavra, homens.

Sunday, August 03, 2008

Rio de Janeiro

O Rio de Janeiro continua lindo, a Zona Sul com sua elite de sempre, os negros ainda porteiros e babás, os vidros dos carros fechados, os nomes das lojas em inglês, francês ou espanhol. Jovens na porta da boate da zona sul se referem às pessoas que moram na Zona Norte como "lixo". Os gays continuam dizendo que procuram gente com conteúdo, mas não colocam conteúdo pra dentro, só aminoácidos. Na boate em que se paga na entrada e antes de beber, é proibido sair pela porta de emergência, embaixo - não há motivo ou justificativa, é apenas a regra da casa. Três policiais entram no ônibus armados, revistam algumas pessoas, me perguntam em primeiro lugar onde moro - sou mais suspeito se moro em certos lugares -- tive medo que me assaltassem. Depois perguntaram de onde vinha e para onde ia. Manaus, Jacarepaguá, Glória. Não me revistaram. O estudante de administração não espera nada no futuro, diz que vamos "destruir tudo mesmo". Só devemos aproveitar a vida, pois. Não concordo, sou menos egoísta. Negros pedem esmola, mas sem muita boçalidade: não querem manchar a imagem do Rio Turístico. Dou-lhe um gole de cerveja, as bactérias não distinguem classe social. Mas outros não dariam, independente de beijarem cinco numa noite. As pessoas aqui em geral são educadas, cultura só prejudicada pelo hábito de contarem vantagem e se acharem esxpertos quando estão em outros estados. O Sol continua nascendo do outro lado da praia, e mesmo no inverno Copacabana está lotada às oito da manhã de sábado. Jacarepaguá é longe pra burro, e muita gente tem medo de ir até lá porque o ônibus passa pela Cidade de Deus - eles viram o filme. É lá que moram as "pessoas-lixo", segundo o dialeto da zona sul. Pensando bem, todo o mundo, tirando a zona sul e talvez alguns bairros de São Paulo, Miami, Nova Iorque e Paris, "são lixo". E todo o resto, cujas fantasias nascem na tela da Globo, invejam esses idiotas. Mas a senhora no acarajé, que de início parecia antipática, se despede da vendedora pelo nome, com tchau e um sonoro obrigada. Nas ruas, como em Manaus, muitas vezes somos "querido" ou "meu querido" (mas Manaus vai além, e somos até "meu amor", para homens ou mulheres). Como em Manaus, muitas vezes a pessoa repete a informação pedida mais que o necessário. Ao contrário de Manaus, domingo o ônibus custa o mesmo, e não metade. Mesmo no inverno, cai às vezes uma chuvinha boa. O clima não é tão frio nem tão seco que me rache os lábios, como em BH. Mas nas festas da zona sul os brancos parecem ser a única raça presente no país, tirando o segurança - via de regra negro. Os clientes homens em geral parecem tomar mais hormônios do que aulas, e as mulheres bonitas não se incomodam se trombam nos desconhecidos enquanto dançam drogadas. Ao menos nos deixam entrar de chinelo, para revolta dos que gastaram o salário na última roupa da moda. Em outra boate, um cara sai para tomar ar - provavelmente alguma mistura de drogas que quase não deu certo - e a amiga esclarece, sem ninguém perguntar, que "ele toma antibióticos". O segurança, novamente negro, ri. As músicas dos anos oitenta se repetem em diferentes boates e pubs, e várias são as mesmas que tocam em vários lugares de Manaus. Os anos oitenta produziram apenas 20 músicas memoráveis? E nas festas fora da zona sul, não sei, meus companheiros ricos ainda não tiveram vontade, ou coragem, de ir. Subornar a polícia num teste de bafômetro custa trinta reais, ouvi dizer. Um jovem já mui louco recebe a cocaína do amigo, mas já está tão pra lá que sopra ao invés de aspirar, vi acontecer. E só assim toleram a música que de resto não teria interesse. E estamos na zona sul da cidade "mais bonita do mundo". Poucos ouviram falar de meditar, ou que "o coração ocupado em se preencher não percebe a essência das coisas". Filosofia é coisa de nerd. Um funcionário que trabalha na Barra e mora depois de Guaratiba fica duas horas e meia no ônibus - duas vezes por dia, seis vezes por semana - e nunca leva um livro. Já poderia ter dois cursos superiores. Depois pensamos até num ônibus escola, onde professores substituiriam os vendedores de chicletes. Pensamos também numa sauna lésbica, coisa que ainda não existe, onde as mulheres poderiam relaxar, nadar, conversar e se distrair como num clube, com a vantagem de não ter a música alta das boates nem os olhares incompreendidos dos clubes e praias. Pensamos também numa boate sem música, onde as pessoas levariam seus iPods ou alugariam os da casa, e baixariam as músicas que não tivessem para ouvir ali mesmo. Para conversar bastava tirar o iPod, as luzes fariam o resto. Pensamos ainda muitas outras coisas, mas o mundo não está maduro o bastante para elas...

A prova da ascendência símia

Subi e desci as escadas. Na festa de baixo, sucessos antigos, o velho macaco, saudosismo, emoção, dança, sensualidade, instinto, leveza, facilidade, felicidade. Em cima, um rap eletrônico, um cantor crítico, informado, inteligente, ácido, "o criador que deve destruir". Entre os dois, subi e desci, e decidi ficar embaixo. Era mais fácil; não queria pensar, queria apenas viver.