Thursday, November 20, 2008

Solidão e despedida

A vida não faz sentido algum, e eu ando perdendo o dom das palavras, se é que um dia já o tive. De outra forma, creio que me entenderiam. Mas as pessoas não estão interessadas em entender coisa alguma. Acreditam que devem se especializar, um construtor deve construir, um vendedor deve vender, um professor deve professar. Só aos entendedores seria cabido entender. Aos demais, o consolo do auto-engano, a felicidade da hipocrisia, a conveniência do silêncio.

Numa nação abençoada por deus, nada se entende. O ser humano é concebido como fórmula matemática, deus nos faz à sua imagem e semelhança, logo somos imagem e semelhança de outrém, não de nós mesmos. A diversidade é anulada pela ambição da perfeição, e assim a própria perfeição é perdida. A natureza humana é incendiada pelo dogma religioso, os prazeres são convertidos em pecado, a descoberta do corpo é transformada em constrangimento, a verdade dos fatos da vida convertida em máscara.

Um amigo escreveu à turma que iria se casar. Perguntei-lhe, de gozação, quem seria o felizardo ou felizarda. Ignorou-me. Isso uma década depois que eu contei a esse mesmo grupo sobre a minha homossexualidade. A primeira reação na época me causou espanto: todos se alegraram, me abraçaram e festejaram. Anos depois, descobri que vários desse mesmo grupo também eram homossexuais, e nenhum deles achou conveniente se revelar da mesma maneira. Minas Gerais é um celeiro de preconceitos. Vive-se a vida de forma a acreditar que não existem males, que não há homossexuais nem nada que fuja ao padrão. Nas ruas e histórias da minha infância, os únicos homossexuais eram as bichas ridículas e caricatas dos programas de TV, na rua ninguém. Durante toda a juventude me senti um peixe fora d'água, um pária, um monstro, uma degeneração. Os pais sempre sabem, é o que dizem, e os meus mantiveram o mais profundo silêncio. Sofri sozinho, temeroso da conseqüência caso me descobrissem. E o homossexualismo é inevitável, não é uma escolha, nem sem-vergonhice, nem provocação - é um instinto, como gostar de mulher, só que gosta-se de homem. E não há explicação para o gostar. Gosta-se, ponto. Só perto dos dezoito anos comecei a enxergar que não era o único, mas a única maneira de se conhecer alguém era dentro dos guetos. Hoje a situação está um pouco melhor, tolera-se um pouco a diversidade, o que não significa ainda que a entendam, ou que gostem. Lembre-se, ninguém quer entender coisa alguma.

Ia sozinho às boates gays, atrás de caras que me entendessem, atrás de alguém que eu pudesse amar, e que pudesse me retribuir minha humanidade. Ia só, pois meus amigos se consideravam muito machos para me fazer companhia em tais lugares. Eu mesmo nunca gostei de nada ali dentro, a música ruim e barulhenta dificulta a conversação, o ambiente escuro onde não se distingue bem beleza, simpatia ou os olhares certos; a fumaça, o cheiro de cigarro; pessoas vazias. Mas eu ia a cada dois meses, em média, por uma necessidade fisiológica, até, mas nem sempre ficava com alguém. Os melhores exemplares gays da espécie estão muito ocupados satisfazendo a máscara que suas famílias exigem.

Um dia tirei o maior peso dos meus ombros contando à minha família. A maioria dos gays dizem que trata-se de um detalhe muito particular da sua vida, que sua família não precisa saber, etc. Mas os pais sempre sabem, é o que se diz por aí, e se fosse mesmo um detalhe ninguém faria um alarde muito grande no casamento, é o que penso. Logo, não é detalhe algum, e acaso todos soubessem e tivessem liberdade para lidar com a situação, os gays não precisariam se esconder em armários e hospícios, nem eu precisaria ter vivido a vida como se tivesse matado alguém, nem teria tanta dificuldade em conhecer uma pessoa realmente interessante. Meus pais me disseram que não havia problema algum, como se fosse do ombro deles que houvesse sido retirado um grande peso. Sabiam, mas não falavam nada. Esperavam para ver no que ia dar. Nenhum apoio por anos, apenas o medo de que fosse verdade, como se o homossexualismo fosse como uma lepra incurável, uma desgraça moral, assassinato; pior, genocídio. Já ouvi muito pai dizer que prefere filho ladrão a viado; bom, este é o nosso país, abençoado por deus, racista e homofóbico por razões que ainda desconheço. (Pensando bem, é difícil imaginar que a homofobia não tenha raízes religiosas, mas essa discussão está muito além do que a maioria das pessoas tolera.)

Então meus pais descobriram no mesmo dia em que contei a primos, primas, tios e tias. Várias pessoas disseram-me que não deveria ter agido assim, coitado do meu pai, passar uma vergonha dessas perante toda a família. Ele, que sempre fora tão machão, tão mulherengo quando jovem. Quer saber, pai? Eu também arregacei muitos cus por aí, mas não espero que isso chegue a te orgulhar. Também dei o meu cu, mas dói, não gostei. Um cara precisa ser muito macho para dar o cu. Fossem respeitados por essa virilidade extra, não precisariam ter apenas amigas, e talvez não se tornassem essas bichas afeminadas que fecham um círculo vicioso, causando com sua feminilidade o preconceito que isola as novas gerações de gays do contato masculino, tornando-as novamente afeminadas, retroalimentando o preconceito. Mas a quem isso interessa? Somos, novamente, uma nação cristã, e apesar de Cristo aparentemente ter dito todas aquelas coisas sobre a primeira pedra, não disse explicitamente que devemos saber desde cedo a orientação sexual de nossas crianças, para ajudá-las a desenvolverem-se num caminho seguro e sensato, ao invés de terem que descobrir a vida dentro dos piores e mais fétidos antros que já se criou.

Quando fiz a piadinha ao meu ex-amigo, perguntando com qual gênero viria a se casar, seu silêncio me constrangeu como nada antes, acredito. Ora, ele era desses que festejaram quando saí do armário, me cumprimentou com um caloroso abraço, feliz com minha honestidade, minha segurança, meu desprendimento, minha coragem em enfrentar a vida. Acreditei que não havia aí mais nenhum preconceito. Mas como quase tudo na vida, enganei-me outra vez. É assim: os heterossexuais podem fazer piadas de viado, mas quando um viado faz essa mesma piada com alguém supostamente heterossexual, a festa acaba. Bem, vivo e aprendo a cada dia. Aprendi que a religião impede as pessoas de pensar, as proíbe de terem pensamentos próprios, como se o próprio deus estivesse em cada fresta dos neurônios vigiando tudo. Ou apenas perde-se um tempo tão considerável com novelas, jornais mentirosos, trânsito, um trabalho enfadonho e sem sentido, livros de auto-ajuda atrás de livros de auto-ajuda, que não se aprende nada. Gosto da minha família, mas é preciso dizer: trata-se de um bando de ignorantes. Aprenderam algumas coisas na vida, várias coisas, mas toque o nervo exposto, o fio solto em seu raciocínio obtuso, e verá como fogem. Tenho muitos homossexuais na minha família, mas todos fingem que não, chamam o homossexualismo de imoral nas minhas costas, e depois vêm me cumprimentar com um sorriso no rosto. Imagino se não lavam as mãos em seguida, às escondidas.

A vida após a morte é o pior de todos os mitos. Cria a convicção de que teremos inúmeras tentativas, chances para sermos diferentes, já que esta vida tem horas que é uma merda. Mas o pior é que, confiando em outra vida, fazemos tudo de errado nesta, e ainda criamos crianças covardes, ingênuas e crentes, fracas frente à verdade, incapazes de questionar as coisas de frente, incapazes de ousar desafiar o que está posto. Ou seja, a preguiça mental dos adultos torna as crianças preguiçosas. Outro círculo vicioso. E as pessoas querem ter o seu direito de acreditar, e exigem que sua crença não seja desafiada, questionada ou criticada. Temos direito à liberdade de expressão, mas não espero que esse direito se estenda ao racismo, à intolerância, à opressão. Porém, enquanto a religião é respeitada, jamais sairemos dessa trilha. Acreditava que minha irmã tivesse um senso moral um pouco mais claro; afinal, foi ela quem primeiro me incutiu dúvidas a respeito da existência desse deus que aí está. Casou-se agora na igreja. Meu irmão, para mim, foi surpresa ainda mais desagradável. Sempre teve as idéias emparelhadas às minhas, sempre foi ciente de todos os meus questionamentos, de toda injustiça e falta de senso desse sistema, e agora que teve um filho, correu a batizá-lo na igreja mais próxima. Não percebem o que estão fazendo? Não enxergam que dão munição ao mesmo sistema que nos transforma em bife? Bife, sim, pois ao homossexual não é permitido amar; quem já era diferente desde o início descobre-se ainda exposto e vigiado, odiado e temido, solitário e em débito. Como se tivesse matado alguém. Como se tivesse estripado gerações dos mais nobres e honoráveis sábios. Neste reino do terror, meu pecado é seguir o que amo e não desejar mal a ninguém. Mas não consigo mais. Desejaram-me, com seu silêncio, com sua ausência, com seu desinteresse, todo o mal que pude suportar. Agora não quero mais. Não quero mais nem seu bem nem seu mal. Não quero mais nem seu silêncio nem suas palavras. Não quero mais seu desinteresse ou interesse, seu consolo ou desconsolo. Nada. Que se fodam.

Agora com o cursor piscando no fundo branco da tela, não sei mais o que dizer. Sei que voltarei a Belo Horizonte um dia, e terei o mesmo silêncio constrangido, o não saber falar da parte deles, ou não querer falar sobre o que sou, sobre como sou, sobre mim, sobre minha vida. Eu tomei o primeiro passo, o segundo e o terceiro. Não quero mais andar sozinho. Engraçado que as pessoas adoram falar sobre a vida umas das outras, mas no meu caso o melhor caminho sempre foi o silêncio. Nasci e cresci assim, e agora que aprendi a ser só, acabei gostando. Tem hora que dói, hora que cansa, mas estou bem treinado. Vou passar uns anos sem ir ver minha família, acho que é a melhor maneira de mostrar que certas coisas, ou não as aceitamos, ou as aceitamos incondicionalmente. Não tem sido seu caso, embora rezem todos os dias aos seus deuses. Não sei o que pedem. O que sei é que, se dissessem o que pensam, se falassem a verdade uns com os outros, ao invés de guardar a verdade mais profunda para as divindades, teriam chances muito melhores de conseguirem o que querem. Mas, quem sou eu para dar conselhos? Já sabem toda a verdade, ou acham ou fingem que sabem. E não aceitam argumentos de alguém mais novo, nunca aceitaram, creio que nunca aceitarão. Não comentam, não discutem, as idéias para eles são ídolos pétreos que se deve cultuar, não argila moldável que fazemos crescer e damos forma em sociedade. Pois bem, que assim seja. Sem mais idéias, pois.