Tuesday, November 10, 2015

Crianças

Quando crianças, eu, meu irmão e um primo éramos grandes amigos. Costumávamos, meu irmão e eu, dormir no apartamento da família dele, e ele às vezes dormia em nossa casa. Não éramos pobres, mas estávamos longe de ricos. Estávamos mais para "classe média baixa", como dizíamos. Já nosso primo tinha condições melhores, o pai trabalhava como engenheiro, e ele dizia que eram "classe média alta mais pra baixa que pra alta", ou qualquer coisa do tipo, num tom que eu não sabia ao certo se ele estava sendo verdadeiro ou apenas modesto.

Lembro que, quando ele dormia em nossa casa, era para nós uma verdadeira honra. Disputávamos o privilégio de ceder a cama para o ilustre hóspede. Nosso primo tinha a idade intermediária entre nós dois, era mais novo que meu irmão e mais velho que eu, mas a diferença era pequena. Ainda assim, nosso primo era o mais alto e o mais forte dos três. Mas o fato de ter apenas duas irmãs o fazia apreciar bastante nossa companhia, e assim passamos juntos ótimos dias de verão. Pedalávamos pela vizinhança, caminhávamos ou íamos ao clube, do qual nossos pais e alguns outros parentes eram sócios.

Quando dormíamos na sua casa -- o que era raro, geralmente apenas um dos dois podia dormir de cada vez "pra não dar trabalho pra sua tia" dizia minha mãe -- lembro que a cama era sempre posta no chão para nós: uma porção de edredons, lençóis e cobertas, até ficar confortável o bastante. Das dezenas de vezes que devo ter dormido lá, era sempre o mesmo: meu primo dormia na cama dele, e eu e meu irmão dividíamos ou nos revezávamos no colchão improvisado.

Lembro que certa vez comentei com meu primo essa diferença: por que nós cedíamos as nossas camas para ele quando nos visitava (na verdade cedíamos as camas para qualquer visita), enquanto na casa dele dormíamos no chão. Não me lembro se falei isso na frente dos adultos, o que teria sido muito atrevimento, mas eu era um menino atrevido às vezes. A resposta foi algo como "para você e o seu irmão não brigarem nem terem que dividir a cama, que é pequena", mas era óbvio que era mentira, pois raramente dormíamos os dois ao mesmo tempo, e quando dormia apenas um, geralmente depois de uma festa de aniversário, o mesmo se repetia.

Lembro que uma vez, deve ter sido logo depois disso, meu primo me cedeu sua cama e dormiu no chão. Fiquei orgulhoso dele, e também de mim, e pensei: quem disse que não se pode mudar certos hábitos? Mas no dia seguinte, meu primo não parava de reclamar como havia dormido mal, como suas costas doíam, como até seus pulmões pareciam cansados, etc. Eu mudava de assunto, mas ele logo voltava praquilo. Não era ele mais forte que nós? Não era mais alto? Não praticava futebol e caratê? Como podia ser tão frágil? Talvez estivesse apenas preparando terreno para que não precisasse dormir outra noite no chão, o que realmente jamais se repetiu.

Com o tempo percebi que a fragilidade -- ou melhor, o egoísmo -- é um traço comum nas crianças ricas, sejam elas muito ou pouco mimadas. Descobri que as crianças ricas geralmente não cedem suas camas, que este é um traço comum às crianças pobres, seja porque assim lhes ensinaram os pais, seja por seu orgulho natural de tratar bem um convidado querido.

Descobri ainda que isso não se restringe ao "ceder a cama", mas também a muitas outras coisas que são normalmente cedidas, emprestadas e compartilhadas entre pessoas que às vezes mal se conhecem. "Tudo nasceu para ser compartilhado" escreveu Pablo Neruda, mas não é assim que essa gente vê. O que eu descobri foi que as pessoas que não cedem as suas camas também não cedem suas ideias, não se preocupam de verdade com os problemas dos outros, não buscam compreendê-los a partir da perspectiva alheia. Não podem fazê-lo. Talvez por dormirem tão pouco em outras camas (nós o visitávamos com muito mais frequência do que ele nos visitava), e por dormirem ainda menos no chão, talvez jamais se acostumem a mudanças abruptas de perspectiva.

Diga a uma pessoa de uma dessas famílias que o seu partido político ou sua religião têm derrubado as florestas e assassinado as culturas indígenas, e eles desviarão do assunto com mil pretextos, ou apenas fingirão que não ouviram. Enfeitarão seus discursos com frases como "eu amo os índios" para em seguida dizerem que é ótimo que tenham sido catequizados e evangelizados, e que agora são pessoas boas e salvas, sem os vícios que costumavam chamar de cultura e de personalidade. Certa vez um amigo do meu pai me disse que os índios são "a pior raça que existe", e eu o corrigi dizendo que os índios não eram "uma raça", mas sim centenas, milhares de etnias diferentes, com culturas, línguas, feições e temperamentos bastante distintos. E além disso, que "raça ruim" mesmo éramos nós, brancos, que só enriquecemos nos séculos anteriores graças ao trabalho escravo de índios, negros e mestiços, sempre com a benção da Igreja, como se Moisés já não houvesse lutado contra a escravidão em tempos apenas seletivamente lembrados. Naturalmente, foi como se eu nada tivesse dito. Na falta de argumentos, essas pessoas apenas muito raramente admitem que estão erradas.

Talvez por isso criaram essa moda de que "ninguém está errado, apenas cada um tem uma verdade diferente". Assim fica mais fácil para essa direita calhorda fugir do assunto. Porque, numa sociedade que acabava de acordar para a democracia e o esclarecimento, suas mentiras já estavam começando a cheirar mal.

0 Comments:

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home