Thursday, March 23, 2006

Caminhada em Manaus II

Tenho pensado em seguir ou não uma carreira. Com os anos ou nos tornamos senhores respeitados e elogiosos em suas carreiras, ou nos tornamos pessoas ainda vivas, ainda sustentadas pelo próprio trabalho, ainda independentes e lúcidas, mas por algum motivo desconsideradas nas listas dos grandes em alguma coisa, como se a vida se fizesse de fermento cujo objetivo é apenas crescer, crescer e crescer, para a apreciação alheia e nada mais. Sou respeitado pelos meus semelhantes, eu acho, porque tenho atitude. Se com o passar dos anos cobra-se do homem menos atitude e mais posição, ou fama, ou sucesso financeiro, não significa que qualquer dessas coisas traga a alguém qualquer felicidade maior que o simples caminhar sem rumo sob um céu azul de sexta-feira. Não consigo entender. Para mim a razão da vida está na passagem do tempo, nas distâncias que percorremos, euclidianas ou não. Principalmente as últimas. Principalmente a distância dos olhares, do olfato perfumado da pessoa amada, do momento em que o gozo substitui a realidade e transforma homens em anjos alados e sem peso. A felicidade é o caminho, e não há caminho único nem felicidade duradoura. Não há caminho único. A vida é como esta cidade e suas ruas, suas esquinas, seus guetos e subúrbios e castelos e espelhos. Nos vemos a todo instante, não como vemos os outros, mas com os olhos obsequiosos da sociedade, com olhos que nos devoram e às nossas ações, nossa história. Quem foi este homem que hoje caminha sem rumo, e o que ele representa à Terra - é o que querem saber. Não se pode abster de significado, de importância para os outros. Os sem-rumo, os eternos jovens rebeldes e inconformados, não têm direitos, não têm respeito, não podem ter o sossego dos justos e velhos donos de carreiras antigas e aprovadas, não podem se sentar à ponta da mesa entre seus pares, nem propôr o brinde que gostaria de propôr ao luar, ao cheiro da grama e da chuva, ao sorriso desconhecido que passou por uma janela de automóvel numa tarde deprimida.

Alguns homens caminham, outros apenas se locomovem em seus automóveis. É difícil encontrar compreensão; trata-se de um ouro ainda mais raro e valiosíssimo, embora não saibam os homens apreciar-lhe o brilho. Eu compreendo que os homens que andam diferem muito daqueles que se guiam em seus carros ou em meios de transporte de massa. Não buscam a mesma coisa, não têm o mesmo ritmo, a mesma respiração; não sentem um pelo outro a consideração que sentem por seus semelhantes. Caminhar é uma prece. Não se entra num veículo sem a finalidade de chegar num determinado lugar, ou ao menos de cumprir um certo trajeto, a não ser nas exceções de praxe, as raras e inevitáveis exceções de praxe. Ao caminhar não, podemos ou não ter o objetivo de chegar. Muitas vezes é o próprio mover-se, como se o movimento fosse para os pulmões uma espécie de motor, ou quem sabe para o ânimo. Aqui mesmo, nessa avenida, os caminhões devolvem aos meus pulmões a sujeira que devo ter contribuído de alguma forma para criar. Mas não fazem isso apenas comigo; também o fazem aos passageiros, aos rostos sóbrios e duros e taciturnos que lotam os vidros dos ônibus, poluindo suas vidas e seus olhares tristes como uma nuvem cinza urbana pesada e lenta, indestrutível e de difícil descrição, de impossível argumentação ou combate. Seus olhares ficam ainda mais pesados, mais vagos, mais foscos, na medida em que o Sol sobe e transforma a fuligem do trânsito em suor negro colado à pele. Eu também, mas eu ando avenida abaixo cantarolando uma canção, e o movimento ritmado das minhas partes parece que me liberta, parece que encanta algum gênio, algum deus ou demônio que me redime, e me faz transportar meu inconsciente para uma praia distante num tempo remoto, melancolicamente misturado às minhas memórias de tardes e manhãs ensolaradas, e mesmo não tendo a areia branca e os antigos amigos por perto, sorrio, pois a selva de pedra não me reterá ainda por longo tempo, e sei que não posso dizer o mesmo de cada uma das infelizes faces que cruzam meu caminho, certas que devem estar de seu destino traçado nas leis humanas e divinas, incapazes de fugir ao óbvio, ao certo, à cama quente e sufocante do cônjuge, à sanha voraz de filhos indiferentes, à família, à pátria, a Deus, ao inferno. Caminho e canto, certo de que pássaros me observam quietos enquanto respiram cansados o ar quente. Deixo-os voar, como as faces velozes que zunem ao meu lado, e sigo repetindo a canção que não sei inteira, entre um e outro rascunho incompleto de pensamento. É sexta-feira, e não sei onde vou parar.

Mais adiante uma avenida mais larga interrompe meu caminho arborizado. Do outro lado há ruas que descem rumo à baixada central da beira do rio Negro, no centro da cidade. À esquerda o grande boulevard leva de volta aonde vim. À direita leva para a região oeste da cidade, que desconheço. Na esquina uma banca sombreada vende sucos e salgados. Sento-me num banco do canto, de onde posso ver todo o movimento das duas avenidas, os jovens que vendem jornais e compram esperança à prestação, os idosos que caminham despreocupados, porque ficaram tão velhos? Por que só começaram a se despreocupar depois que as rugas já enfeavam-lhes a cara? O rapaz que me atende abre um largo sorriso e me pergunta o que quero. Não posso dizer tudo o que quero, e nem quero tanto assim, então peço só um açaí. Ficamos ali de trivialidades, ele batendo no liquidificador meu pedido, eu olhando os detalhes de sua nuca morena, o pescoço denso e firme, as mãos pequenas e retas, os dedos grossos. Ele repara e se encabula. Divido com ele meus pensamentos e ele os acolhe. Reparte comigo os dele, encabulado, atende outro cliente depois de me entregar o copo grande e suado. Bebo devagar. O cliente se vai e ele se senta. Diz que quer viajar, conhecer lugares, pessoas, viver. Ele está certo. Não, não viajou muito não, chegou do interior e trabalha duro, se diverte pouco, economiza o que pode e não tem filhos. Como ele pode não suar trabalhando o dia todo ali embaixo? Não sabe, acha que é acostumado, nasceu naquela terra quente, herdou a pele escura e a disposição de resistir, o passo firme. Percebo que ele traz em si a capacidade de produzir a felicidade em tantas pessoas que o mundo não pode ser uma roleta, um jogo de azar. Eu mesmo outrora fiz outras pessoas felizes, mas viajei e me mudei em busca do novo, e agora o novo me apanhou de calças na mão, fugindo não sei bem de quê, talvez do próprio novo, embora em busca do mais novo ainda, como se a novidade fosse me devolver o que o antigo me havia tirado, ou talvez o que eu nunca tenha tido de fato.

É difícil explicar o que queremos. Algumas coisas que tenho eu sempre quis, outra nunca. Outras quero sem saber se terei, e outras ainda é apenas questão de tempo. Mas o único desejo a permanecer, independente do que consigo, independente das possibilidades e oportunidades, é essa vontade de andar, de ir além, de continuar vendo o novo, esse flerte com o desconhecido, essa paixão pelo inédito. Não sei como as outras pessoas conseguem manter um cotidiano tão prolongado, nem sei se somos da mesma espécie. Penso se não me sentiria mais à vontade num grupo de caçadores-coletores, morrendo de velhice aos 40 anos, mas sem nunca ter tido a impertinência de me questionar a razão de tudo isso.

1 Comments:

At 5:36 PM , Anonymous Anonymous said...

Muito bonito, ainda melhor que o texto anterior.

E essa frase: "como se a novidade fosse me devolver o que o antigo me havia tirado", acho que vou ficar um bom tempo pensando nela.

Muito bonita.

 

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