Bicicleta
Comprei uma bicicleta. O céu era azul e cúmplice, meus bolsos estavam preenchidos pela justa medida do meu esforço, e foi toma lá dá cá, o suor da labuta por outro, o das rodas finas deslizando pelo asfalto quente; linda e forte, ela, a bicicleta.Ainda não tinha desenvolvido todas as técnicas, ainda não comprei um cadeado, ainda não mandei botar um retrovisor (em Manaus É preciso um retrovisor), ainda não adquiri a destreza necessária para rapidamente amarrar minha mochila ao bagageiro; este, sim, mandei botar antes mesmo, na véspera da compra. Sim, já tinha namorado ela ali, pendurada num gancho da parede fria da oficina, triste, solitária, murchando pouco a pouco sua vontade de viver. E eu a minha, antes dela. Até ela.
Agora, não. O asfalto brilha de oportunidades novas, as manhãs já não são chocantes retiradas de um universo onírico; são, isso sim, um doce convite. Pedalei até em casa entre afoito e sereno, como uma criança ou um cachorro que ganha uma bola e não sabe ainda todas as formas de aproveitá-la, de vivê-la. Corri entre os carros, manobrei aventurosamente entre as filas e através das esquinas, detrás dos ônibus e à frente dos caminhões, na beira da pista, no passeio, na contra-mão.
Ainda longe de casa, um engarrafamento se formava na pista oposta. Eu seguia pelo lado contrário do tráfego, na pista vazia que antecede a abertura do sinal-farol-semáforo lá adiante. Do outro lado, motoristas tensos, suados e impacientes saíam dos carros e praguejavam, levantando as mãos à cabeça, implorando pela piedade de uma divindade invisível e improvável, tentando entender o tempo, o precioso tempo que se escorria por entre os seus dedos de trabalhadores respeitosos, idôneos, engravatados, por seus volantes e freios e bicos de injeção, por suas calças de tecido fino e escuro, por seus sapatos de couro e suas vidas repetitivas, quando a paixão parou em algum sinal ou congestionamento lá atrás, talvez na adolescência, talvez na infância, ou um pouco depois, mas que definitivamente não estava ali, com eles e seus carros de último tipo. Não, a paixão estava do outro lado da rua, numa bicicleta e um cara de bermuda, com a mente leve e desanuviada, agitada pelo vento e pela velocidade, pela assombrosa fartura do universo, que pode ser expressa numa fórmula simples, que se move sobre duas finas rodas de borracha sob um esqueleto metálico, corrente e pedais.
O congestionamento seguia imóvel por quilômetros, virava outra avenida e alcançava finalmente a entrada do meu bairro. Desci com as mãos fora do guidom, como um novo redentor, abençoando o asfalto e a multidão que me olhava com uma ponta de inveja entremeada com toda aquela ranhura amarga de quem não tem opção senão enfrentar a criatura morta-viva de um engarrafamento na tarde sufocante do paraíso equatorial. Paraíso que, diga-se de passagem, ganha agora mais um novo e auto-proclamado santo sobre rodas.
2 Comments:
Ficou bão esse texto, gostei. A crítica social do workaholic-ismo é boa, concordo plenamente.
Sobre bicicletas, aqui na Europa é muito bom andar com elas... as cidades são bastante planas e muitas (muitas mesmo!) têm ciclovias. Em algumas, como Cambridge, a bicicleta é, sem qualquer sombra de dúvida, o principal meio de transporte.
Mas sem as duas mãos no guidom eu só consigo pedalar por alguns segundos, digamos, 10.
Se você pedala por 10 segundos você pedala o quanto quiser, uai.
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