O sonhador de sonhos
Acordei às sete em ponto, segundos antes do despertador tocar, e preparei um café. A luz do Sol deixava o quarto com um brilho amarelado, meio lilás. Tive um sonho estranho, tiros, perseguição. Corria atrás de alguém, aliás, dirigia. Rápido. Não lembro o motivo, mas a emoção, a adrenalina do sonho ficou estampada na pele como uma cicatriz.Esqueci o café fumegando na caneca e continuei meu trabalho na máquina. Sobre a mesa, um computador com conexão sem fio às lentes de contato em-mente, que eu vinha desenvolvendo há anos. Funcionavam como lentes de contato normais durante o dia, ou durante o estado de vigília do indivíduo - eu já não seguia mais protocolos sobre o horário de dormir - e durante o sono monitorava o fenômeno de reflexo dendrítico na retina.
Descobri esse fenômeno como por acaso, como aliás costumam acontecer as grandes descobertas. Estudava a velocidade de reação nervosa em aranhas armadeiras, quando percebi que parte do impulso nervoso (que normalmente vai dos dendritos para os axônios) retornava aos dendritos, como um eco, como um reflexo tão tênue, tão sutil, tão mais fraco que o impulso original, que até então havia passado despercebido dos fisiologistas por mais de um século.
Minha aplicação para esse fenômeno, que demorei ainda outros anos para alcançar, foi a seguinte: quando estamos acordados, tudo o que enxergamos passa da retina ao córtex occipital, localizado na parte de trás da cabeça e responsável pelo processamento das imagens, e parte das imagens seguem daí para os centros de memória visual. À noite, durante os sonhos, esses centros são acionados novamente, reenviando as imagens ao córtex, fazendo-nos acreditar que "enxergamos" coisas durante os sonhos. Em outras palavras, imagens guardadas na memória retornam para o córtex, causando a sensação de visão - mesmo imagens que nem lembrávamos ter visto, e outras ainda completamente inventadas, não se sabe exatamente como. Uma vez que a imagem vai da retina para o córtex, e daí para a memória, e durante o sonho ela retorna da memória para o córtex, acreditei que seria possível que o "eco" nervoso recém-descoberto pudesse não apenas retornar do córtex visual aos centros de memória, durante os sonhos, mas também às próprias retinas, onde poderia ser captado e interpretado por um sensor bastante sensível.
Hoje chamo esse sensor de lentes em-mente, mas ainda estou trabalhando na interpretação das imagens formadas nos sonhos. Esta noite, por exemplo, lembro de uma entrada em um edifício por onde passei, uma porta estreita com uma recepcionista do lado de fora, no passeio, sentada a uma mesa de madeira. Do lado de dentro uma escada conduzia direto ao piso superior. A imagem foi uma das últimas de que me lembro no sonho, e agora preciso encontrá-la nos últimos minutos de sombras confusas gravados durante a noite.
*****
Raquel chegou trazendo o almoço. Ela tinha me ajudado a desenvolver a lente em-mente, era projetista nanotecnológica. Tinha os cabelos loiros compridos, um pouco ondulados, olhos verdes, os lábios carnudos. Estava falando algo sobre um festival de artes na cidade, mas eu só olhava seus lábios se mexendo. Pensava antes na interação entre os eixos ortogonais da imagem, que precisaria filtrar, mas agora só me vinha à mente aquela boca ágil e firme como uma contorcionista chinesa. Mas eu tinha muito trabalho à fazer, e era melhor assim, já que Raquel era a mulher do meu melhor amigo, e eu não estava absolutamente interessado em ninguém mais.
- Você precisa sair de casa, está me ouvindo? - ela disse.
O transe acabou. "Sim", concordei. "Eu sei, acho que vou descer à cidade no fim-de-semana, pegar o festival."
- O festival acaba amanhã, eu falei - ela estava séria, mas nunca ficava realmente brava comigo. - Ah! Você nunca me escuta não é? Tudo bem, eu tenho outras coisas para fazer; pelo menos almoce, não se mate de trabalhar - ela terminou e saiu como um raio, sem me dar tempo para processar o que dissera.
Não fui à cidade, evidentemente. Não vi festival nenhum, nem almocei. Por vários dias Raquel não apareceu. Ao menos pude desenvolver melhor o tratamento das imagens oníricas.
*****
Certa noite sonhei com um balão vermelho, e finalmente consegui discernir uma forma ovóide na tela do computador, gravada na faixa vermelha do espectro, um décimo de segundo antes que eu acordasse. Funciona!, pensei, e esse pensamento me deixou ainda mais confinado, mais entrevado, obcecado com o momento em que a imagem completa do sonho, a seqüência de cenas em seus mínimos detalhes surgisse na tela do computador.
Levei dois anos para alcançar esse resultado. Perdi dez quilos, e profundas olheiras agora enfeam minha face. Faz três meses que não vejo Raquel, acho que ela se cansou da minha apatia; apenas as baratas e os ratos me fazem companhia. Mas descobri algo interessante: na medida em que comecei a analisar meus sonhos, eles começaram a tomar uma forma mais... digamos... real.
Há dois meses sonho sempre com o mesmo lugar, uma cidade pequena que criei em minha mente, com pessoas que conheci há muito tempo, outras das quais não me lembro, mas que posso ter conhecido, e outras ainda que estou consciente de ter criado deliberadamente. Os sonhos vêm e vão durante a noite, mas é como se o tempo passasse continuamente nesse meu universo interior. Quando me deito lá, acordo aqui. Quando me deito aqui, acordo lá. A cada noite o sonho começa com o mesmo movimento de acordar e abrir as janelas para o céu azul e palmeiras e o cheiro de grama e ar puro, o canto das aves.
Há um mês e meio passei a dormir doze horas por noite (ou por dia? nem sei mais), de forma que agora vivo uma vida perfeitamente dupla, alternando entre um mundo surreal e belo, e a realidade poluída, abafada e monótona.
*****
Acordei e abri a janela. O Sol já tinha nascido, mas ainda não podia vê-lo, oculto atrás das palmeiras do outro lado da rua. Apanhei algum dinheiro, pulei a janela e fui comprar pão. Acima de mim algumas nuvens frias, azuladas, vigiavam a cidade do alto. Cá embaixo a terra estava úmida, como nas manhãs depois de muita chuva, e o clima era agradável. Gostaria de ver a chuva da noite, mas mesmo sabendo tratar-se de um sonho eu não consigo controlar uma porção de coisas. Sou refém, por exemplo, do clima, das pessoas, da passagem do tempo. Quase tudo se passa aqui como no mundo real, exceto pela causalidade a que estamos acostumados, que por vezes se recusa a funcionar como deveria. Este mundo de sonho segue suas próprias leis, e eu ainda estou longe de compreendê-las. Por mim tudo bem, basta-me aproveitar o tempo aqui da melhor maneira possível.
Ia a meio caminho da padaria, ao longe o barulho do rio, quando vi Júlia que vinha distraída no sentido contrário. Quando me viu, veio correndo me abraçar. Nos vemos quase todos os dias, e tenho certeza de que não a conheci de verdade, no mundo real, nem a criei deliberadamente. Talvez ela seja o reflexo inconsciente do que eu desejaria que a Raquel fosse, ou talvez ela seja apenas o meu ideal de fêmea: morena, cabelos lisos, seios fartos, jovem, bonita, romântica e dependente, tão diferente da outra, com seu temperamento prático, até agressivo, às vezes. Júlia me acompanhou até a padaria, não estava fazendo nada, disse; e depois fomos para a minha casa, comer o pão-de-queijo que compramos, com suco da acerola do quintal.
Acho que era domingo, ou por outro motivo nebuloso não precisava trabalhar. Trabalhava aqui como pedreiro, às vezes pescava alguns peixes, sabe como é. Dá pra ir vivendo. Fiz amor, o que estou falando? trepei com a Júlia loucamente três vezes antes do almoço, eu insaciável, ela ainda mais. Gosto do jeito como ela cochila comigo depois que gozamos, em silêncio, os corpos colados e o barulho do ventilador e dos sanhaços nas árvores do lado de fora.
Depois do almoço tirei um cochilo - sem sonhos - e mais tarde saí para uma caminhada. Acabei encontrando uma turma de amigos e fui com eles até uma festa do outro lado da cidade. Nunca até então havia bebido tanto nessa minha cidade de sonho, e o que aconteceu foi realmente estranho: acabei acordando bêbado entre as minhas baratas. Resolvi limpar o quarto e telefonar para a Raquel, mas ninguém atendia. Resolvi sair, ir à cidade, mas a miséria, a sujeira e a violência se abateram sobre meu ânimo. Voltei para casa triste, assisti de novo ao sexo matinal, o gozo de Júlia, seus olhos apertados, os dentes perfeitos aparecendo entre os lábios um pouco abertos.
Podia patentear meu invento, ficar rico, mudar para um lugar melhor, mas nada disso fazia sentido. Antes não faria sentido sem Raquel. Agora não fazia sem Júlia. Desde que pudesse tê-la a cada noite, que diferença faria a minha vida desperta? Por que me preocupar? Todas as mulheres do mundo não significam nada para um coração escravizado, e era como me sentia, acorrentado a uma possibilidade impossível, preso a uma realidade de pesadelo, ininterrupta, inescapável. Se ao menos pudesse sonhar para sempre com o mundo de Júlia...
O telefone tocou, era Raquel. Disse que estava preocupada comigo, que recebera minha ligação, que queria me ver. Quis dizer a ela que não viesse, não queria que ela presenciasse meu estado, mas ela desligou. Alguns minutos depois a campainha tocou, mas não era ela - era Júlia! Estaria ficando louco? Ela entendeu meu olhar de espanto, e com um gesto fez como se não houvesse razão para me preocupar, entrou e me abraçou. Era o seu abraço, a cabeça encostada em meu peito, os dedos trançados atrás das minhas costas, seus pés pequenos procurando proteção junto aos meus. Afastei por um instante seu corpo, olhei dentro dos seus olhos, tão reais como nos sonhos. Ela não podia me explicar o que estava acontecendo, ela também não sabia. Fizemos sexo e ela finalmente dormiu. Antes pedi que ela colocasse as minhas lentes, e ela não hesitou.
Liguei o monitor e fiquei esperando por seus sonhos, que vieram logo. Em seu sonho ela acordava às sete em ponto, segundos antes do despertador tocar, e fazia o café. Andava pelo quarto, pela casa, mas era a minha casa, o meu quarto! Não podia ser. Ela sonhava a minha vida, o meu trabalho, até Raquel e sua fria superioridade, tudo! Alguns detalhes eram diferentes, a cor do despertador, a posição do café no armário, os móveis na cozinha; mas era eu, era de fato a minha vida.
A campainha tocou, devia ser Raquel, mas eu não atendi. Quem atendeu foi Júlia, em seu sonho, e era mesmo Raquel. Fiquei olhando; na tela os dois personagens se agarravam e se beijavam caoticamente, ficando sem roupa antes que uma freira pudesse dizer amém. Corri até a porta, mas Raquel, ou quem quer que fosse, já tinha ido.
Quando voltei, Júlia estava acordada, séria. Algo havia mudado em seu semblante, nunca a tinha visto tão distante, tão... magoada. Como fui idiota. Tinha a mulher dos meus sonhos deitada em minha cama, e ainda assim corri atrás de outra. Júlia se levantou em silêncio e saiu. Seus olhos úmidos não me fitaram, mas diziam tudo.
Acordei sobressaltado. Tivera o pesadelo mais estranho da minha vida. Fui até a janela e abri os dois lados. Olhei o céu azul e as palmeiras risonhas, que pareciam me dar bom-dia. Retribuí seu cumprimento e agradeci à existência por mais um dia neste mundo insano...
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