inside and outside boys
No meio da rua andava um cara com pernas grossas e calça jeans. Atravessou a praça e eu o segui. Estava de camisa verde, de gola e dois botões. O de cima estava desabotoado. Persegui seus passos, simulei que apenas passava, mas mantive o ritmo ao seu lado, e ataquei de chofre: te vi aqui, andando, e pensei se você não seria uma boa companhia para uma cerveja. Só se for agora, ele respondeu.Já era tarde da noite, mas o bar do Anésio ainda estava aberto, e as mesas do lado de fora, vazias. Já nos indicadores mostrei o tamanho da garrafa, e seu Anésio piscou um assentimento de bom entendedor. Sentamos. Era madrugada de sábado, no que a cidade ficava quieta àquela hora. Mais estaria se fosse dia de semana, mas sem aquele burburinho surdo de quem se esconde com vontades e a determinação de segui-las. No escuro das árvores podíamos ouvir desejos. Sobre a mesa, seu braço pesado se impunha em silêncio. Já estávamos os dois bêbados, mas ainda bem lúcidos. Anésio serviu e se afastou. Brindamos e bebemos. A conversa foi amena, ele me conhecendo melhor, e eu o mesmo. Sabia que morava no morro da Pedreira, e que era belo de corpo e de rosto, ainda que um rosto diferente, que a maioria não fazia coincidir com a beleza branca da moda. Não chegava a se achar feio, apesar dos outros; sabia muito bem a impressão que dava, e dava gosto.
Por isso estava ali. Os lábios grossos calados e marotos. Os dois braços, agora, na mesa, me encararam. Me desafiavam a lutar para tê-los, e eu aceitei.
- Vamos pra sua casa? ele disse.
- Só se for agora.
Paguei e saímos. As estrelas eram milhares, milhões. O ar estava cálido, como se houvesse chovido. Mesmo daquela distância podíamos ouvir as cachoeiras. Mais algumas garrafas e teríamos a certeza de poder escutar até as estrelas mais distantes. À direita o morro da Pedreira tampava uma parte do céu; mas ao redor a imensidão do horizonte era contínua e distante. Não se sabe disso muito, mas cada pouquinho a mais de céu que se vê é de uma sensação tão sublime que não pode ter preço. Ali a abóbada escura era uma bacia a nos envolver e proteger, tudo conspira a nosso favor abaixo dela, ao menos nas noites em que se tem boa companhia.
Se há pecado é deixar a vida escorrer entre os dedos sem fechar as mãos para apanhá-la. Temos garras ansiosas por isso. Mas normalmente falta coragem. Não importa o quanto aprendemos, sempre erraremos um pouco mais. Com toda a experiência de uma vida, com tantos ombros de gigantes onde se apoiar, continuaremos errando e tentando e tentando.
Na cozinha toquei seu braço, na sala nos abraçamos e no banho lhe ensinei a devoção. Na cama ele me ensinou o amor, e na janela amanheceu outra manhã. Nos amamos com promessas douradas e órfãs. Dormimos nos braços um do outro e depois nos despedimos, recebendo a manhã com seus tantos outros olhares de estranhos e curiosos, voltando à existência cotidiana de solidão e paz, misericórdia, doçura, trabalho e a morna passagem do tempo na companhia dos nossos camaradas. O que mais a manhã trouxe, senão um intervalo a esperar pelo próximo alvorecer?
4 Comments:
Você está escrevendo muito bem, Rodrigo! Sensual, erótico neste último, mas delicado, e no anterior, uma boa trama, quase um roteiro!
Abração do admirador!
Marco
Muito foda mesmo...Uma cronica linda.
Digno de um wikiquote:
"Se há pecado é deixar a vida escorrer entre os dedos sem fechar as mãos para apanhá-la."
"Na cozinha toquei seu braço, na sala nos abraçamos e no banho lhe ensinei a devoção. Na cama ele me ensinou o amor, e na janela amanheceu outra manhã."
Sem mais comentários...
rafa
Tenhos alguns comentários: se o cara de pernas grossas fosse uma gostosa de pernas grossas e eu perguntasse se ela me acompanharia na cerveja, ela me mandaria me catar.
Caso isso não acontecesse e fôssemos tomar uma cerveja, ela jamais me perguntaria se poderíamos ir para minha casa e quando eu, sem paciência, o perguntasse, teria como resposta um: vá te catar.
Donde-se conclui que ser minoria pode ser bom tbm, pelo menos no quesito "sexo".
Chico, experimenta vir tentar isso no Amazonas - aqui a história é bem outra!
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