Thursday, October 23, 2008

A instituição das liberdades individuais

Por muito, muito tempo, o homem foi pré-história. O período no qual foram moldados nossos instintos, nossas reações mais básicas e espontâneas, é esmagadoramente maior que o tempo histórico, no qual moldamos a atual cultura e tudo aquilo que hoje parece destoar do instinto. Vejamos o caso das liberdades individuais.

Em toda a história evolutiva da humanidade, muito provavelmente desde os primeiros primatas (60 milhões de anos?) e até antes, o conceito do bando foi necessariamente superior ao do indivíduo. Superior no sentido de ativar instintos mais fortes em sua defesa. Afinal, o que seria de alguém sem os outros? A socialidade, presente há tanto tempo em nossa linhagem animal, só poderia moldar boa parte, e possivelmente a maior parte do nosso comportamento. Com isso em mente, o que podemos dizer acerca das liberdades individuais?

O maior problema com esse conceito é que ele esconde o seu oposto (como faz, aliás, a maioria dos conceitos). Neste caso, as liberdades coletivas, harmonia ou homeostase social. Não é possível aumentar indefinidamente a liberdade dos indivíduos sem perder essa harmonia, o equilíbrio do grupo. Nisso baseiam-se as leis e o Estado de direito. Pagamos ao Estado para que este nos proteja das tentativas ilegais de "liberdade" dos outros. E quais exemplos temos hoje de liberdade individual restringindo a liberdade coletiva?

No trânsito, por exemplo, quando as pessoas têm a liberdade de terem vários carros na mesma casa, e dirigirem sozinhas no interior dos mesmos, ou terem carros grandes e poluidores sem necessidade, ou melhor, como símbolo de status. As liberdades individuais aqui congestionam o trânsito, aumentam a poluição do ar e sonora, perturbam nosso humor e contribuem para o aquecimento global.

No uso da terra, as liberdades individuais têm permitido que poucas famílias mantenham hereditariamente grandes propriedades nem sempre produtivas, enquanto outras numerosas famílias foram e são obrigadas a se mudarem para as cidades (o fenômeno recente e em escala mundial chamado êxodo rural), inchando ainda mais os centros urbanos, justamente em sua porção mais frágil - as periferias.

Na economia, as liberdades individuais têm permitido a concentração absurda do capital, geradora de toda a crise em que vivemos, a maioria das pessoas sem consciência alguma sobre como poderia ser "um outro mundo possível". A liberdade irrestrita sobre o porte de armas contribui muito para a violência urbana.

Em nome da liberdade religiosa permite-se que igrejas acumulem fortunas fabulosas e mantenham o povo na mais profunda, abjeta e miserável alienação. Em nome da liberdade de expressão, candidatos mentem descaradamente em campanha, sem que nenhuma instância reguladora opine.

Em nome da liberdade comercial, emissoras de rádio e TV produzem e disseminam produtos de péssima qualidade, em horários impróprios, que incitam o consumismo e massificam ainda mais a população. Na guerra pela audiência, metade das rádios toca "hits", e a outra metade, "programas de crentes". Onde há cinemas, a maioria das salas repetem os mesmos blockbusters estadunidenses (sempre com a bandeirinha lá, em alguma cena. Isso me lembra o conceito de livre comércio adotado pelo governo dos EUA: liberdade para os nossos produtos, não para os dos outros).

Desde a Revolução Francesa o projeto ocidental de sociedade tem defendido - creio que sem medidas - as liberdades individuais, e nenhuma visão poderia ser mais cara às elites do Brasil e do mundo (sejam financeiras ou intelectuais). Mas a gestão de uma nação, o governo de um povo, a administração de um território exigem bem mais que esse laissez-faire global, embora muitos sequer enxerguem o tipo de túmulo socioambiental que estamos cavando com os próprios pés. A gestão do coletivo exige controle sobre as liberdades individuais; um controle que pode, ao menos na teoria, ser um controle democrático e legal, mas ainda assim, um controle. (Digo "ao menos na teoria" porque no ocidente este controle já evaporou faz tempo.) Comparado ao atual modelo industrial, capitalista, neo-liberal e insustentável, eu diria que as liberdades individuais já estão demais (para a minoria abastada), e para o povo, como diria aquela rainha louca, estão acabando até os brioches...

2 Comments:

At 2:23 PM , Blogger maria. c said...

gostei do seu texto!

 
At 1:50 PM , Blogger Rodrigo said...

valeu!

 

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