No meio do caminho, um outro caminho...
Sempre andei muito. No pré-primário, com cinco anos, caminhava no trajeto de ida e volta da escola mais de 500 metros por dia, de segunda à sexta.Depois, durante o primário (da primeira à quarta séries), andava de segunda à sexta cerca de 1,5km diariamente para ir e voltar da escola. Lembro como se fosse hoje o cheiro maravilhoso de comida que saía de uma certa janelinha quebrada e suja na esquina da minha rua - ainda longe de casa uns 400 metros ladeira acima. Acho que não era só a fome do meio-dia.
Depois, no ginásio (da quinta à oitava), não andei tanto todos os anos. Na quinta série estudei numa escola particular (pelo único ano da minha vida, o suficiente para jamais esquecer a diferença entre uma elite rica e desinteressada e os pobres que queriam aprender mas não tinham bases boas o bastante em casa para acompanhar os alunos e alunas mais produtivos da classe, e por isso acabavam quase sempre tratados como lixo por boa parte dos professores). Nesse ano os ônibus paravam bem perto da minha casa e da escola. Andava só uns 400 metros todo dia letivo. Umas poucas vezes, quando as provas acabavam mais cedo, andava sozinho o percurso de 2,4km até em casa. Gostava da liberdade que a solidão propicia, de sentir o calor do sol da manhã, do verde e marrom enrugado das árvores, dos pássaros que animavam as ruas bem mais que as pessoas.
Na sexta série passei a estudar numa escola pública mais perto de casa, economizava o dinheiro do ônibus e andava apenas 900 metros nos dias letivos. O que seria de mim sem o Google Earth para saber hoje todas essas distâncias? Para ir à padaria era preciso caminhar um quilômetro, ida e volta somadas, o que às vezes era bom (sair de casa) e outras vezes não (sair de casa?!).
Na sétima nos mudamos para um bairro mais afastado, mas continuei na mesma escola. De início contratamos um serviço de ônibus especial que me pegava em casa, mas na oitava série preferi a independência dos ônibus comuns. Com isso, muitas vezes eu ia almoçar na casa de um amigo (vezes até demais, talvez), e costumava andar o trajeto de 1,8km da escola até a casa dele e de lá para o ponto de ônibus. Assim podia economizar o dinheiro de uma das passagens e me lambuzar depois com produtos industrializados doces e gordurosos (coisas que outras crianças faziam com as mesadas que ganhavam de seus pais).
Quando comecei o Ensino Médio me mudei novamente, de casa e de escola. O maior problema é que a casa ficava num extremo da cidade e a escola no outro. Nas épocas em que os motoristas de ônibus faziam o "minhocão" (uma espécie de greve onde os ônibus funcionam mas não ultrapassam uns aos outros, formando filas quilométricas nas avenidas - o minhocão) buscando melhores salários, eu costumava demorar três horas para chegar em casa e raramente ia sentado. Depois ainda precisava caminhar a distância do ponto de ônibus até em casa, que era de 1,26km, somando mais de 2,5km todos os dias letivos (além do fato de se tratar de um Ensino Médio técnico, que tinha aulas durante quase todo o dia, de segunda a sexta. Por sorte, durante o segundo ano, conseguimos ajustar os horários de tal forma que não tínhamos aulas às sextas-feiras. Que período fantástico esse! Ainda que os amigos já não morassem tão perto quanto antes - e bote longe nisso -, pelo menos esta casa tinha piscina e eu tinha um irmão que em geral era companhia suficiente.)
Depois veio o trabalho, a faculdade, e as andanças se tornaram mais dispersas, menos obrigatórias. Mas ainda assim, longas. Talvez até mais longas com o acúmulo dos hormônios (não se encontravam gays em lugar algum - exceto bichas horrorosas - o que tornava a sexualidade mera taração voyeurística que só terminava em punhetas silenciosas no banheiro de casa). Havia, é claro, as boates gays, mas quem gosta daquilo?
Acredito que toda essa andança foi crucial para a formação do meu caráter. E me pergunto como essas crianças - que são deixadas pelos pais ou ônibus escolares no portão da escola e na garagem de casa durante toda a vida escolar - enxergam a vida? Conheço muitas pessoas que acham loucura andar 1km. Considerando que não existe algo como "energia limpa", que até o biodiesel trará um impacto ambiental escabroso para os biomas brasileiros (considerando que há planos de nos tornarmos abastecedores do produto em nível mundial), a única solução é usarmos menos automóveis, mais transporte público (que não é tão ruim assim) e, claro, mais do movimento das próprias pernas, que sai mais barato e é mais interessante que academias de ginástica. Mas do jeito que estamos tratando nossas crianças e jovens, será que chegaremos lá?
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