Do direito ao aborto e das dificuldades para obtê-lo
Cada sociedade tem a sua moral. Povos nômades, próximos da Natureza, têm uma moral mais ligada à conservação do ambiente, incluindo medidas de controle populacional (direito materno ao aborto e até ao infanticídio). Já os grandes impérios, cujas guerras de conquista exigiam populações crescentes, tenderam a adotar morais contra o infanticídio e até contra o aborto.Em tempos de superpopulação e destruição crescente de recursos, Brasil e China ocupam extremos morais na questão do aborto. É verdade que a população chinesa é sete vezes a brasileira, o que levou o governo chinês à política do filho único - saída emergencial para o que podemos chamar "vítimas do próprio sucesso". Já o Brasil, que destruiu 95% da Mata Atlântica, 70% do Cerrado e 20% da Amazônia (e continua destruindo, a Amazônia a uma taxa de 1% a cada 2 anos), cuja população continua crescendo, com uma imensa parcela de pobres e miseráveis, uma maioria absurda de analfabetos funcionais e contingentes gritantes de desempregados; cuja inserção no mercado mundial (graças às louvadas políticas lulistas) significa um grau crescente de consumo e descarte; cuja agricultura é requisitada não só para alimentar sua população cada vez mais obesa, como também uma população mundial crescente e crescentemente obesa, além de produzir também biodiesel e etanol para um mundo com menos petróleo - este mesmo Brasil, dono da maior biodiversidade mundial e que mais rápido a destrói, não apenas estimula o crescimento populacional, como proíbe o aborto. Ou seja, se os imperfeitos e nem sempre acessíveis métodos anticoncepcionais, usados por mulheres igualmente imperfeitas (que se esquecem, por exemplo) falham - a mulher é obrigada a gerar uma criança que é ainda feto ou embrião. Não importa se o pai é conhecido, se deseja uma criança, se deve terminar os estudos; não importa se a mãe se sente preparada, se deseja terminar os estudos, se se sente miserável e desamparada - ela é obrigada a esperar enquanto o embrião vira feto e o feto vira bebê. Depois das dores do parto, pode dar o bebê para adoção.
As religiões dominantes e não-dominantes não só concordam com a situação, como fazem propaganda constante para que não mude. Podemos citar católicos e evangélicos, espíritas e até budistas. Para todos ou a maioria desses, considerações metafísicas - logo individuais e não demonstráveis - são suficientes para derrubar todas as demais considerações (psicológicas, sociais, ecológicas), mantendo uma lei nacional que tira das mulheres (e dos homens) um direito ancestral - o de planejar a própria família e comunidade.
Confrontar Ocidente e Oriente na origem de suas respectivas moralidades pode ser enriquecedor. Há muito se fala do declínio do Ocidente. A edição dos Analectos confucianos pela editora L&PM traz no verso: "Os Analectos tornam-se um contraponto essencial no mundo de hoje, de decadência de valores morais." Por que decadência?
Todos sabemos, ou deveríamos saber, que as doutrinas cristãs - o núcleo do "Ocidente" - estão em geral muito longe das palavras de Cristo. Os mesmos edifícios públicos que exibem crucifixos nas paredes proíbem a entrada conforme a roupa. Os bispos que ensinam a humildade não têm alergia a ouro, etc. Incontáveis "santos" da Igreja aos poucos inseriram um ódio ao sexo, uma condenação ao prazer, que faz os moralistas de hoje enxergarem a gravidez indesejada como uma espécie de castigo pelo prazer - descuidado ou não. "Ah! Mas na hora de transar ela quis, né? (Devassa!) Agora tem que arcar com as consequências!" O detalhe é que, se já não fosse injusto forçar a família a criar um ser humano, força-se também este ser humano a existir, e toda a sociedade a conviver com um contigente interminável de miseráveis indesejados (até pela própria mãe!). Depois se perguntam de onde vem tanta violência. Forçar alguém a nascer contra a vontade da mãe já é uma bruta violência - e todos sabemos que violência gera violência.
É impressionante que os clássicos taoístas e confucionistas, por diferentes que sejam entre si, mantêm-se hoje tão corretos quanto à época em que foram escritos (alguns séculos antes de Cristo). Os avanços da ciência não os tornaram obsoletos - o mesmo não se pode dizer da moral religiosa ocidental. O fato de os caracteres chineses terem permanecido praticamente os mesmos também conta (já a Bíblia sofreu inúmeras traduções, cada uma com suas próprias interpretações enviesadas).
Que católicos e evangélicos proíbam o aborto é compreensível - basta ver o palácio onde seus líderes vivem. Já o budismo exige uma interpretação à parte. Existe mais de um tipo de budismo, e nem todos são "encarnacionistas". No Brasil, o budismo mais disseminado inclui o encarnacionismo e parece concentrado numa classe social média-alta, assim como o espiritismo. Trata-se da classe social que mais reclamou ao ver suas riquezas compartilhadas com os mais pobres durante o governo Lula - por mais que suas religiões preguem o desapego, a compaixão e principalmente a caridade. É uma classe que, ainda que inconscientemente, defende o status que já alcançou, ainda que às custas da miséria alheia. Sim, pois proibir o aborto é manter a miséria alheia. Exigir "recato" de pessoas pobres e sem opções de lazer só podia vir de uma moralidade deturpada como se tornou a cristã ao longo dos milênios.
Essas mesmas pessoas de classe social beneficiada, quando suas filhas decidem abortar, não raro pagam um médico competente para fazer a cirurgia proibida com segurança. (Estatísticas - http://www.nytimes.com/2007/10/12/world/12abortion.html - mostram que a proibição não reduz a prática do aborto - o que mostra tratar-se, afinal, de um direito que as mães perseguirão mesmo contra a lei.) Somente os pobres recorrem a "açougueiros", colocando a própria vida em risco (muitos ricos querem mais que os pobres morram, mas claro que só admitem isso em círculos reservados) e gastando - as que sobrevivem - recursos públicos para procedimentos de emergência necessários devido a cirurgias mal feitas.
Pior é ouvir o argumento de "piedade" - "devemos poupar a vida do inocente" - hipocrisia que despreza a questão da qualidade de vida - inversamente proporcional à densidade humana, fato conhecido desde os primórdios - e que esconde o ciclo vicioso de maternidade precoce e baixa escolaridade, que se repete, inacreditavelmente, em pleno terceiro milênio.
Por falar em modernidade, o Ocidente está mesmo entre a cruz e a espada. De um lado, países como o Brasil e mais pobres, que proíbem o aborto com justificativas arcaicas, metafísicas e irresponsáveis. De outro, países mais industrializados e financeiramente ricos, cuja ciência e níveis educacionais permitiram que se vencesse essas religiões defasadas do bom senso. Porém, essa mesma ciência reducionista e arrogante, que garante o sucesso militar e industrial, vem causando prejuízos psicológicos e sociais (individualismo e consumismo, urbanização, xenofobia e perda do sentido da vida).
Ao negar mitologias e noções de sagrado por não serem "verificáveis" e "quantificáveis", o Ocidente não tem nada para preencher o vácuo deixado pelo recuo do cristianismo. Fala-se de uma geração que "não encontra ideais para defender", e o meio-ambiente destruído paulatinamente passa como um modismo, uma preferência exótica de tribos "verdes". Aqui aparece o posmodernismo, tendência vagamente ligada às artes, mas que se proliferou em quase todo o pensamento - ciência, literatura, filosofia. De forma um tanto grosseira, e desprezando a própria diversidade que o movimento pretende ter, podemos enquadrá-lo como uma suspensão temporária de conceitos. Como um novo Descartes eliminando tudo que não fosse certo, os posmodernos suspenderam todos os seus preconceitos para "olhar novamente para o mundo". Atitude louvável, caso tivessem encontrado algo em que acreditar. No entanto, o espírito da época posmoderna crê e divulga que "não existem verdades", ou que "a verdade é relativa" - simplificações grosseiras de filosofias mais sutis que, infelizmente, contaminaram as massas. Como num "fim da história" orwelliano, somos convidados a sorrir, consumir e parecer satisfeitos, a não perguntar e não problematizar. Aparência é tudo, e pouquíssimos têm paciência com quem busca a verdade. Como se diz: "buscar a verdade não está na moda". Isso porque alguns acadêmicos espalharam - com ajuda de uma mídia global nada desinteressada - que a ciência é apenas mais um discurso, não um método. Na verdade, a salada de ideias é tão variada que chega a ser inútil buscar a causa exata. Talvez seja mais produtivo observar seus efeitos: a maior parte da ciência hoje é feita por corporações para o desenvolvimento de produtos. Pesquisa-se para vender, não pelo saber em si. A Academia ficou algo isolada, com seus "especialistas" citando uns aos outros, como o cavalo de Aristóteles, que por milênios acreditou-se ter a quantidade errada de dentes apenas porque ninguém se lembrou de abrir a boca do animal e contá-los. (O caso descrito em Imposturas Intelectuais ilustra parte do drama.) A verdade está na boca do cavalo, não na minha cabeça ou na sua. Podemos e devemos, se soubermos contar, ir até lá conferir. Fora isso não há debate necessário.
Assim, voltando ao delicado tema do aborto, o debate é, sim, mais necessário que nunca. Mas requer honestidade intelectual e interesse pela coletividade. Duas coisas que andam em falta na nossa assim chamada "democracia" esmagada entre religiões arcaicas, imperialistas e anti-naturais e um movimento posmoderno hedonista, individualista e incoerente.
2 Comments:
Como já havia te falado, concordo em número, gênero e grau com vc... apesar de não compreender as reflexões sobre algumas filosofias que vc faz, pois não as conheço.
Outro aspecto que precisa ser levado em consideração é o fato de médicos se negarem a fazer ligação de trompas queé legal) em mães que não desejam ter mais filhos, ou por elas terem um ou poucos filhos ou ainda serem jovens.
Não entendeu? Qual parte ficou em dúvida? É sinal, no mínimo, que eu preciso explicar melhor. Mas acho estranho gente que não entende, mas também não pergunta. Estranho, crescente e assustador.
Assustador como esses médicos aí, e como a ignorância das mães que não sabem que podem exigir um direito (ou não têm coragem, ou acabam cedendo à opinião de gente de mais autoridade, embora não de maior sabedoria).
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