Caminhadas noturnas
O negro tinha os braços de um Hércules. No meio da multidão eu caminhava sozinho, procurando por distração. De longe seu porte sobressaiu entre os demais, na porta da boate de brega onde todos entravam e saíam e conversavam e bebiam, enchiam a cara mesmo, e já era de madrugada. Ele tinha muita consideração por todos, e todos com ele, percebi logo que se tratava de um sujeito decente. Daí entrei, fui revistado, bebi, saí, entrei de novo, já sem ser revistado, mas com o olhar dele, ainda difuso. Depois é que puxei papo. Sabe como é, o que vier na hora. Mas o que geralmente funciona melhor nessas ocasiões é começar com "E aí, beleza?", senha que já me serviu a muitos propósitos diferentes. Com esse cara eu já não lembro como foi, mas em pouco tempo era eu quem mais conversava com ele (realmente ele era popular, antes de eu chegar havia mais de três pessoas ao seu redor, fazendo comentários esparsos numa conversa lenta, cheia de capítulos). Mas dali eu ainda dei mais uma volta, perguntei antes o horário que ele saía e voltei só depois.Antes do brega fechar ainda ficamos por ali sentado numa mesa, bebendo, aliás, enchendo a cara, e conhecendo outras personagens crípticas da noite interiorana. Uma delas era uma bicha gorda, boa pessoa, pacífica e risonha. Outra uma mulher dessas que fala pelos cotovelos, pinta os cabelos de louro, usa uma roupa provocante mas gosta de andar de mãos dadas com o marido, um sujeito taciturno, feio e calado. Outra figura era o Jacaré, o segurança do brega que agora era todo piadas, e contava as mais diversas histórias dos seus conhecidos, como a de um menino que, para entrar num barco na beira do rio, passou por cima de uma tábua daquelas pra lavar roupa, mas a tábua quebrou e o menino perdeu o saco, preso no que restou de pé da tábua. Essa não era engraçada, mas as outras eram. Por fim, saímos dali ainda tarde, muito bêbados, e deixamos os demais (principalmente a bicha gorda que estava dando em cima de mim e do Jacaré fazia horas, e que eu, na dúvida se rolaria ou não com o segurança, ainda cogitava, digamos, acompanhar).
Mas deu tudo certo e fomos eu e o negão descendo por ruas desertas, escuras, de terra e pequenas casas de madeira, com quintais visíveis da rua pelas cercas finas, cheios de árvores frutíferas e palmeiras. Nos sentamos numa varanda alheia, espaçosa e limpa. Ele tirou um pacotinho do bolso e me passou. Fui dichavando a erva enquanto ele pegou outro pacotinho e foi misturando o seu conteúdo. Logo já tínhamos um cigarro perfumado nas mãos, e conversávamos alegremente, ainda que em voz baixa. Às vezes olhávamos para os lados, pois não queríamos companhia, e ele tinha lá seus medos da polícia. Eu ouvia suas histórias e contava algumas minhas, mas o pescoço suado e grosso dele de vez em quando tomava minha imaginação, e eu esquecia o que queria dizer. Depois andamos mais, e ainda fumamos outro cigarrinho, até chegar na casa dele. Eu estava na cidade sem pouso, chegara de ônibus e não me alojara em lugar algum. Tinha deixado minha mochila escondida num prédio público, era feriado e ninguém ia encontrá-la, então fui direto para a casa dele, para voltar lá só no outro dia e recuperar as minhas coisas, que eram bem poucas mesmo.
A casa dele era longe, e demoramos a chegar. Uma grade de madeira separava a casa da rua de terra. Lá dentro o lugar-comum da cidade: casa de madeira, ampla e ventilada, quintal generoso. A mãe dele ainda se incomodou de levantar, mudar várias crianças de lugar para abrir espaço para o filhão dela com o seu amigo de fora, eu. Num instante estávamos deitados num colchão de casal, no meio da sala, e todas as luzes estavam apagadas. Comecei a pensar como começaria minha incursão sobre o corpo dele, mas ele foi mais rápido. Já me puxava pela cintura, de leve, quando a mãe dele voltou, mas antes que ela acendesse a luz ele já estava imóvel de novo em seu lugar, qual jacaré mesmo que era seu apelido, e a mãe mandou ele dormir noutro lugar, para "me dar espaço". Ainda tentamos argumentar que o colchão era grande, e que não precisava se incomodar, mas foi em vão. A mulher parece que conhecia bem os hábitos do filho e não queria ouvir gemidos aquela noite. Então dormi só, acordei com uma ressaca terrível mas ainda brinquei com as crianças, umas doze, não sei quantas da casa e quantos vizinhos. Foi muito bom, jogamos bola, comemos caldeirada de peixe e depois saímos para que eu pegasse minha mochila. Ela estava lá, intacta. Ainda voltei pra casa dele e fiquei outro dia, outra vez sem chance das interações que eu queria. No outro dia fui embora e nunca mais o vi. Mas nessas caminhadas desses dois dias e meio nos divertimos bastante. Como o mundo é pequeno, um dia ainda haveremos de nos encontrar e aí, sim, a mãe dele não vai estar por perto para moralizar noitada nenhuma, eu espero.
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