Infinito circular
(uma digressão comprida sobre religião, misticismo e o papel genuíno da violência no mundo)"Toda religião é um vírus de difícil cura"
Ontem à noite eu estava deitado na rede, lendo uma revista, quando aquela sonolência me tocou e me transportou para um nível distinto de consciência. Foi quando tive uma visão mística, ou talvez apenas incompreensível, ou ainda, talvez apenas inacessível à razão desacompanhada dos demais aparatos sensórios.
Tratava-se de dois círculos concêntricos, preenchidos por setas que seguiam em sentido horário, uma atrás da outra, até que a última alcançava a primeira. Mais ou menos assim:
Sei que certos símbolos têm um poder especial para causar deslumbramentos místicos, como o infinito, o zero, o um, o pi, ou círculos, triângulos equiláteros, proporções áureas, etc. Coisas sobre as quais podemos nos debruçar e extrair uma infinidade de significados obscuros e improváveis, como a santíssima trindade, ou nem tanto, como harmonias musicais.
No meu devaneio semi-acordado, as setas pareciam degraus da consciência, que giravam e se transformavam uns nos outros. Houve uma vez certo filósofo que disse que "existem infinitos degraus entre a consciência e a morte." Eis que pensei, seriam esses degraus algo circular? Poderia fazer sentido que a consciência acordada e o sonho não fossem hierarquicamente dispostos, como "acima" e "abaixo" numa suposta distância da realidade, mas apenas posições diferentes num círculo, onde até mesmo a "ausência" de consciência duma pedra, por exemplo, faria parte da ordem natural das coisas, duma ordem circular, mutável, em eterna transição, muito além do que a razão acadêmica tradicional supõe?
A história é cíclica, a órbita da Terra é elíptica, talvez o universo se repita entre os intervalos de cada big bang e big crunch. Ou talvez tome formas completamente diferentes.
Quem pensa sobre buracos negros costuma achar que a matéria ali é tão densa, tão fortemente reunida sobre ação da própria gravidade, que trata-se de um ínfimo ponto no espaço. No entanto, quanto maior a massa do buraco negro, maior é a distância a partir da qual não há retorno possível para um corpo dotado de massa. Não é tão complicado: se você jogar uma pedra para o alto com uma força X ela alcançará uma certa altura e cairá novamente, sob ação da gravidade da Terra. Se você usar uma força 2X, a altura será maior, e assim por diante. Há uma força específica Z, na qual a pedra se libertará da atração da Terra e vagará solta pelo espaço sideral. Essa força específica Z é necessária para aplicar na pedra a chamada "velocidade de escape". Uma vez que a velocidade do corpo que sobe diminui aos poucos, até que ele retorne (ou não), basta uma determinada velocidade inicial para que ela não diminua até o zero, e siga seu caminho para a liberdade estelar. A velocidade de escape depende, é claro, da força da atração gravitacional do planeta. Essa força depende de duas coisas, da massa do planeta e da distância a partir de onde a pedra foi atirada. Nenhum humano conseguiria mandar uma pedra ao espaço só no muque, mas um astronauta, com um leve impulso, já pode enviá-la para o beleléu.
No buraco negro acontece exatamente isso: a velocidade de escape, até uma certa distância de seu centro, é maior que a velocidade da luz - por isso nenhum corpo pode escapar-lhe, nem mesmo a própria luz. A partir daí, quanto mais distante, menor a velocidade necessária para escapar. No entanto, essa distância ao centro é proporcional à sua massa. Isso significa que, quanto mais matéria um buraco negro tiver, maior será o raio de sua ação anti-escape. Que astrônomos de plantão me corrijam, mas se um buraco negro engolisse toda a matéria do universo (tanto a visível quanto a chamada matéria escura, e talvez a chamada anti-matéria, não sei), podemos calcular que seu raio se tornaria, aproximadamente, o raio que conhecemos para o nosso universo, algo em torno de 15 a 20 bilhões de anos-luz.
Resumindo: quanto maior a massa de um buraco negro, maior o seu tamanho. Um buraco negro com a massa do universo teria, segundo cálculos elementares, o tamanho do universo. Isso não sugere que nosso universo nada mais é do que um imenso buraco negro, do qual nós mesmos não podemos escapar?
Os buracos negros tomaram a imaginação de vários escritores de ficção científica. Devo admitir, a minha também, desde a infância. Imagino que quem ousasse entrar num buraco negro não resistiria à passagem. Teria, muito provavelmente, seus ossos esmagados pela abruta mudança gravitacional em sua fronteira. Se isso não acontecesse, ou caso se pudesse "pular" essa fronteira, indo do seu exterior direto lá pra dentro, poderia ser que houvesse lá estrelas brilhando, ou quem sabe leis físicas novas, independentes. Ou mesmo uma passagem para algo completamente desconhecido e ainda não imaginado.
Não é disso que trata as religiões? De suposições espiclondríficas e divindades desconhecidas, incognoscíveis? A própria astrologia não faz referência constante ao papel misterioso dos astros? O inconcebível, seja a eternidade, o brilho distante de estrelas mortas, o infinito, a consciência aniquilada pela morte num processo em que os últimos segundos podem recapitular toda a existência - tudo isso sempre assombrou e deslumbrou a humanidade. Cada povo estabeleceu uma linguagem para descrever esse deslumbramento na forma de mitos e lendas associadas a atos nobres de heróis, misturados em sonhos de velhos anciões em delírio provocado pelas drogas psicodélicas de cada época e lugar. Pense nas leis de nossa sociedade, em como certas drogas são proibidas, e como tantos policiais adoram se drogar com essas mesmas drogas que são proibidas. Pense nos pajés e nos tuxauas de tribos distantes, que consomem drogas para alcançar algum tipo de iluminação e contato com o mundo dos espíritos, dos quais adquirem conselhos e sabedoria. Pense em médiums que alcançam um patamar diferenciado, flutuante, de consciência, ou nos pastores e babalorixás que conseguem induzir ao estupor a platéia deliciada. Tudo isso é tão humano quanto a racionalidade, que em nossa era científica recebeu a coroa do iluminismo filosófico. Melhor assim, pensam alguns, eu mesmo já pensei. Mas...
As religiões de hoje se fiam em documentos históricos, textos escritos milênios atrás por pessoas que tentaram traduzir em discurso suas transcendências particulares e secretas. Conseguiram com isso arrastar milhões de fiéis, às vezes mais de um bilhão. Por outro lado, a cristalização do sublime através da escrita faz perder o brilho do instante, faz perder todo o rigor lógico, e também supra-lógico, que acompanha o sublime em sua ocorrência pontual, na sociedade que o gerou através de uma lógica particular, num determinado clima e região, pela mente de uma determinada pessoa, com certa formação, humor, situação política e financeira, enfim, num contexto.
Hoje, observando alguns dos poucos povos ágrafos que subsistem, podemos ver neles esse deslumbramento original, que foi transmitido oralmente, necessitando, imprescindivelmente, ser sentido novamente a cada geração, sob o risco de perder-se. Neles, o mistério original permanece. Cada um deles tem acesso direto ao transcendente, numa escala que nós, que precisamos de intérpretes falecidos há séculos, ou milênios, jamais compreenderemos.
Há um muro de farsa que isola, de um lado, a natureza humana, ao mesmo tempo bondosa e violenta, e de outro, um mistério religioso no qual apenas uma bondade fabricada deveria existir. Quando a religião é apenas o estudo culto das impressões de um indivíduo deslocado no tempo, essa religião perdeu a autenticidade de ser parte do mundo, do contexto brutal e avassalador do mundo, violento às vezes, indiferente também, mas que abre espaço às manifestações das pessoas como entidades livres e radiantes, sujeitas a tudo o que sempre foi a natureza humana, por incongruente e absurdo que pareça à vista "virgem".
Nosso tempo assiste ao que sempre houve, tribos diferentes se matando, violência e incompreensão. Mas a idéia que se faz disso é errada. A opinião pública a esse respeito ignora uma visão histórica, digo, uma visão supra-histórica, que é muito mais importante que a visão histórica da sociedade.
A violência que é retratada todos os dias nos jornais serve para dar audiência, todos sabemos, mas deve servir para algo além disso. Nunca houve, na história do mundo, criaturas não violentas. A própria palavra violência distorce o sentido do que seja a natureza da violência, pois já estamos contaminados com seu significado acoplado de indesejável, injusto, gratuito, trivial e boçal. Pensamos em violência e automaticamente nos vem à mente a história da sociedade moderna, sua gênese na fuga dos caprichos de monarcas tiranos, na busca de uma democracia representativa, no direito de todos (sic) à posse, à ordem, à justiça.
Claro que essas coisas existem muito mais no discurso que na prática, mas o que eu quero dizer é que a modernidade, essa fuga da história medieval, foi responsável pela criação de uma raça de homens e mulheres débeis, que dependem do Estado para se defenderem, um Estado contra o qual eles próprios não podem lutar. Antigamente cada qual tinha suas armas, e o inimigo era o inimigo declarado, inimigo de uma comunidade e da ordem local, ou eram comunidades inimigas, ou reinos. Nessa época não havia o duplipensar que George Orwell nos explicou tão bem em sua obra-prima, 1984. Inimigos eram inimigos, amigos eram amigos, ainda que qualquer um tivesse liberdade de mudar de lado. Hoje o Estado é ao mesmo tempo quem protege e quem rouba. Pensando bem, o mesmo sucedia com os reis, é verdade, então voltemos à violência e sua relação com a mídia.
O que se deseja, a "conspiração" por trás da mídia e do Estado, é apenas deixar os indivíduos num estado de alerta impotente, no qual se teme o perigo, mas se tem a consciência de nada poder fazer. Esses são os cidadãos que todo tirano pediu a Deus. Que alegremente aceitam a fantasia democrática, mesmo sabendo ser falsa, e jamais reúnem forças para exigir algo novo. Criamos um apego tão grande à vida, embora nunca a tenhamos vivido como aqueles povos que lutaram por ela. Só alguém que realmente viveu poderia dar sua vida em troca da defesa daquilo que tanto apreciou, que fosse a vida de seu povo, de sua tribo, sua tradição e ideais. Nós, os homens e mulheres cinzentos e semi-vivos das metrópoles, e também do campo e das cidades pequenas e médias, nada fazemos a não ser alimentar a máquina, girar as engrenagens que permitem o lento e magoado arrastar do mundo, enquanto dormimos mal com medo da violência, porque não acreditamos mais que se trate de algo normal, corriqueiro sob a perspectiva maior da história evolutiva, do mundo animal. Estrelas engolem planetas, plantas engolem insetos, tribos orgulhosamente se engolem entre si. Temos horror a sermos engolidos, então preferimos deixar que nos suguem aos poucos, suavemente, com anestésicos cientificamente projetados, primeiro a consciência, depois a paixão e a fé, por último a dignidade, a honra, o caráter. Nada disso hoje vale nada. A honra não forma um cidadão; quem o forma é sua TV, seu carro, a casa própria. Ou mesmo um salário fixo que lhe permita pagar o aluguel. Caso contrário, será um pária, e por mais honra que traga em seu espírito, quem sabe herdado de gerações de guerreiros antepassados, hoje todos mortos, por mais sangue vivo, selvagem e nobre que corra por suas veias, nada será aos olhos da sociedade, e terá como único recurso, para mostrar que ainda vive, e que é digno de viver, apelar à violência contra os que não lhe permitem viver como deseja, da única forma que saberia e lhe agradaria viver.
Não se trata, portanto, de sobrevivência apenas. Trata-se de honra. A violência exige a honra de existir independente, forte e digna, e não apenas se filiar às barbas de um Estado corrupto e decadente. Não se trata de sobrevivência, pois mesmo o cidadão amedrontado, atrás de suas grades e currículos, valoriza em si apenas esse status de cidadão aceito, idôneo e livre, ainda que acorrentado ao sistema e enclausurado em sua liberdade restrita e miserável de rato citadino. Em outras palavras, valoriza a mesma honra dos que estão lá fora, defendendo a honra deles.
Se você vier a ser assaltado, ou da próxima vez que isso acontecer, tente olhar nos olhos do assaltante, tente ver ali a honra que você não duvida possuir. Se conseguir, se esse contato for estabelecido e o denominador comum entre ambos, a que chamo proto-homem, ou o instinto animal que é comum a todos nós, falar mais alto, é possível que vocês se admirem mutuamente. Pois há na honra um mistério muito mais sublime que os grandes mistérios cósmicos, que é a possibilidade de sermos humanos, independentes, e de nos comunicarmos como um cometa que diria alô ao sol ainda que passasse aqui apenas a cada século.
Podemos viver como formigas, idolatrando o deus-formigueiro, colocando-o acima de nós mesmos, como indivíduos, estranhos, únicos, diferentes, exóticos e por isso mesmo maravilhosos. Ou podemos ser tudo isso, e encontrar nos outros mais disso, se estivermos dispostos a abrir mão de tudo o que nos ensinaram ser mais importante - conforto, status, hierarquia, escolaridade, sociedade, classe. Cabe a nós escolher.
3 Comments:
Fiquei triste quando li a frase "este blog recebe seu último ponto final." Mas fiquei ainda mais feliz por perceber que foi por pouco tempo.
Me dá prazer ler dentro da sua cabeça as suas idéias e a forma como você as transmite. E me dá prazer também ver que você continua fazendo isso muito bem.
Se parar com o blog, mande cartas.
Abração.
Fico feliz em encontrar o que penso na mente de outra pessoa, gostei muito de seu trabalho e da maneira como se expressa. Meus parabéns!! Hidalgo Amorim Pereira - Brasil.
acho que o problema das religiões, bem como de outras instituições que há tempos não deveriam mais existir é o dogma. liberdade é como oxigênio! como ainda não se percebeu isto???
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