A escolha (da Sofia que há em você)
"Ao passo que a aquisição da menor verdade científica exige enorme labor, a posse de uma certeza baseada unicamente na fé não pede nenhum trabalho. Todos os homens possuem crenças; muito poucos se elevam até ao conhecimento." - Gustave Le Bon, As Opiniões e as Crenças.
O vândalo é um retrato de sua época, assim como o artista o foi da sua. A distância artística entre os dois, que os contemporâneos do vândalo querem apreciar apenas pela obra do artista, seja ele contemporâneo ou não, deve pagar o preço pelas contrariedades vividas por outros, os que consideram a obra do "artista" um luxo desprezível.
Mas existe a grande arte apreciada pelo grande público, e tudo que não alcança um grande público não pode ser grande arte. O vandalismo é a diminuição do público vísivel ou apreciador de uma arte qualquer? Ou da grande arte? Mas e se a arte é apenas a apreciação por uma sensibilidade treinada sob uma cultura com valores próprios? Sendo os valores das outras culturas muito diferentes dos nossos, a sensibilidade à arte assim varia, e assim a apreciação pela arte e seus artistas. Tanto que o público que lê não é o mesmo que gosta de cinema, novelas, futebol ou qualquer entretenimento que possa ser chamado arte.
Mas hoje a sociedade é a própria vândala. As novelas não têm mais os personagens fantásticos que já tiveram, o futebol não tem os belos lances, o cinema ainda produz ótimos trabalhos (embora haja controvérsias), mas certamente as grandes salas nas grandes avenidas das grandes cidades viraram bingo ou igreja universal.
Vêm me falar de pixadores, ou seria pichadores, enfim, qual é o sentido da correção lingüística da escrita numa língua falada por analfabetos funcionais, que despreza a equivalência entre grafia e fala? Para manter a perduração histórica dos grandes nomes da língua, preferem manter uma linguagem onde pajem não se escreve como garagem, taxa é diferente de acha; e sogra, baço e passo não parecem seguir normas muito seguras. Mudemos a ortografia para confirmar regras nítidas, e provavelmente não teremos mais leitores por causa disso.
Por que as pessoas não lêem? Temos provavelmente mais tempo livre que qualquer outra população da história, excetuados, talvez, naturalmente, as populações da pré-história e da história oral, que mantêm hábitos semelhantes de não gastar o seu tempo na construção de um sistema que os forçariam a trabalhar mais de seis horas por dia. Nos grandes centros urbanos o transporte já seria um atraso monumental na vida de qualquer ser vivo, e as capitais brasileiras não devem estar entre as mais caóticas do mundo.
O tempo livre aumentou desde o início da industrialização, mas antes era muito maior, ao menos nos solos produtivos dos trópicos. A industrialização levou aquecimento para os habitantes do frio, e talvez os tenha feito trabalhar menos, mas nos trópicos teve o efeito de expremer a qualidade de vida entre poucos. Nem todas as regiões da terra são férteis como uma floresta tropical, mas pessoas que cuidam da sua própria comida e sabem quase todas as técnicas de seu dia-a-dia parecem viver uma vida mais equilibrada e saudável. A industrialização foi a primeira substância de uma teia inovadora, que está demonstrando hoje ser um material tóxico, permanente e indestrutível. Trouxe coisas boas, e hoje a questão é o que manter e o que apagar do sistema? Chegamos ao "espaço indisponível no disco" terrestre.
Num mundo de indigentes, o espaço para a arte será mais levar a grande arte ao grande público, ou produzir artes pequenas e variadas pelos diferentes povos? Diversidade ou qualidade? Pode-se produzir mais do mesmo, mas nem mesmo a mais poderosa arte poderia jamais salvar um mundo sem diversidade.
Nossas sensibilidades seguem regras fisiológicas, como demonstra com maestria Gustave Le Bon em As Opiniões e As Crenças. Quando a diversidade deixar de existir, também a beleza terá morrido. Quando a história do planeta tiver morrido sob uma camada espessa de teias plásticas, tubos, conectores, fios, asfalto e plástico, nossa espécie terá perdido para sempre a beleza das pequenas coisas, das coisas infinitas, espontâneas, autênticas e maravilhosas da Natureza. A via é de mão única, e o mal já foi identificado. Cabe a nós ter a esperança de saber mudar as coisas na direção certa.
E por essa porta entramos na política.
O vandalismo é o quê na visão política? A perda da história causada pela inadimplência, incapacidadedeparar, de um cidadão, que deveria ser sinônimo de humano mas não é. O que é um cidadão? Uma pessoa que vive na cidade. E a floresta? A floresta também é habitada por humanos, logo faz parte da política.
Uma espécie não consegue enxergar o seu passado porque a história foi destruída pelo vândalo que danificou a obra de arte. Mas os maiores vândalos destróem a natureza, destróem as espécies - extinção, processo sem retorno - o que acontece em função das áreas naturais destruídas (Wilson & MacArthur 1969 - teoria de biografia de ilhas, uma das coisas mais bonitas da ecologia, que lamentavelmente não é ensinada no ensino médio). Destruir a natureza, destruir assim a zoologia e a botânica - a própria criação daquele Deus que o povo aqui assim o chama - é então um pecado maior que qualquer conduta individual, por diversa, inesperada, atípica, vergonhosa ou incompreensível que esta possa parecer, e que não passa no fundo de uma mudança em nossos costumes. Mas quando nossos costumes valem mais que a própria Natureza, e com ela a diversidade, a própria diversidade associada ao pecado, o que fazer? O que escolher? Será essa a divisão política primordial?
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