Do heterossexual
Os pacifistas de plantão dizem que a religião e a ciência tratam de assuntos diferentes, ou assim deveriam. Mas a prática é bem outra. Um cristão certamente definirá o heterossexual como a norma, regra, conduta exemplar e a única moralmente aceitável; mas um cientista não pode definir o heterossexual senão como uma circunstância peculiar, uma aleatoriedade histórica, uma exceção à regra natural e, por que não dizer, um acaso bizarro.O que é um heterossexual? O dicionário explica que são pessoas que têm atração sexual e amorosa por pessoas do sexo oposto. Mas e os bissexuais, o que são? Não sentem, como os heterossexuais, amor, paixão e tesão por pessoas do sexo oposto? Como o sentem também por pessoas do mesmo sexo? O que a existência e os hábitos dos bissexuais nos dizem sobre os heterossexuais?
Em primeiro lugar, o entendimento de que o homem evoluiu de outros primatas - e que podemos, sim, chamar nossos ancestrais de macacos, pois também nós ainda o somos - é coisa bem rara. Mais do que isso, apenas em pouquíssimos casos essa maneira de pensar saiu das arenas biológicas para fazer avançar conceitos usados em outras áreas do pensamento. As ciências humanas, por exemplo, ainda debatem conceitos há muito tornados obsoletos, e que seriam imediatamente esclarecidos se nossa herança biológica fosse levada em consideração. Mesmo a medicina, essa ciência que se julga superior à biologia, como também o direito, ganhariam muito se devolvessem o ser humano à sua humilde posição dentro da Árvore da Vida.
Se remontarmos à Antigüidade, encontraremos em Platão, e sua idéia das "essências", a possível causa destes dois erros superficiais e lamentáveis: o heterossexualismo e a incompreensão generalizada do pensamento evolutivo. O que afirmava Platão? Que o mundo real era uma formulação, uma tentativa a partir de um mundo perfeito e ideal, um mundo de idéias. Assim, a diversidade encontrada entre os organismos de qualquer espécie seria apenas o erro de tradução a partir de um "ideal" perfeito. Todos os canários são diferentes porque se afastam em igual medida do "canário ideal". Todos os cavalos são diferentes porque se afastam da essência do "cavalo ideal". Tudo leva a crer que esse mundo de seres ideais seria a mente de Deus - Ele mesmo, como sabemos, o representante do "humano ideal". (Ou do homem ideal? Qual seria então a representante da mulher ideal?)
Ora, a ciência mostrou a diversidade como a regra da Natureza. A variabilidade entre os organismos é o motor da evolução, a única lógica que torna a vida viva. Sem diversidade, apenas os minerais se reproduzem. De fato, parece não haver uma única caracteristica biológica que não apresente uma diversidade considerável.
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Então, o que seria o heterossexual? Arrisco-me a tentar definições para uma categoria tão ampla. Pode ser a pessoa que faz amor com o cérebro (ou sem uma parte deste), uma vez que nega a possibilidade de se envolver sentimental ou sexualmente com indivíduos do mesmo sexo.
É claro que sua primeira defesa será de que o sexo, naturalmente, evoluiu como comportamento heterossexual. Mas quem não vê o bissexualismo na natureza? Basta procurar, e será encontrado entre vertebrados e invertebrados, em milhares de espécies.
Argumentarão então que, embora o bissexualismo, e até o homossexualismo, existam na humanidade e no restante da natureza, o heterossexualismo parece ser a norma. Sim, o comportamento heterossexual parece ser mais abundante que o comportamento homossexual, mas em número de indivíduos ou de coitos? (E de qualquer forma, quem os contou?) Será que indivíduos que fazem exclusivamente sexo heterossexual são mais comuns do que aqueles que fazem sexo de todas as formas? Vou mais além: será que existem, na Natureza, indivíduos que excitem seus órgãos reprodutivos apenas com indivíduos do sexo oposto, durante toda a vida? (E é bem verdade que a vida sexual vai muito além da simples excitação dos órgãos genitais, mas mesmo essa base simples o heterossexualismo já nega e repudia, tornando insuportável a vida de muitos que não se encaixam no padrão desejado.)
E o que dizer da inteligência? Comparem o comportamento animal em relação à inteligência de cada espécie (que pode ser estimada dividindo-se o peso do cérebro pelo peso corporal). Chega a ser surpreendente que os animais mais inteligentes são justamente os que extraem mais prazer (e relativamente menos reprodução) de seus órgãos sexuais? E que o façam nas formas mais variadas possíveis (sozinhos, a dois ou em grupos; entre indivíduos de sexos diferentes ou iguais; com indivíduos da mesma espécie, de espécies próximas ou distantes evolutivamente)?
Talvez o cidadão urbano se surpreenda com esses fatos, mas quem vive próximo à Natureza não os estranha. Apenas a destruição da Natureza e o processo de urbanização crescente poderiam ter criado esta nova espécie de pessoas, ignorantes dos fatos naturais, a ponto de ser enganada em escala crescente pelos derivados mais aleijados do pensamento essencialista.
Argumentarão, esses mesmos cidadãos urbanos e ignorantes dos fatos naturais, que o ser humano não pode ser comparado aos animais, por inúmeras razões. Mas eu prefiro nos comparar aos animais, que são as únicas criaturas que conhecemos. E somos, de fato, bastante parecidos.
Vejamos outra perspectiva do heterossexual. A inteligência humana nos permite a comunicação num nível sem precedentes. Uma dessas formas elaboradas de comunicação chama-se empatia, e consiste em podermos nos colocar mentalmente no lugar de outra pessoa e imaginar quais seriam as nossas reações frente a alguma situação enfrentada por essa pessoa.
A maioria dos heterossexuais não podem ter empatia em relação aos homossexuais, pois o simples pensamento de uma perna cabeluda, digamos, num momento de intimidade, desencadeia reações fisiológicas de agitação, ansiedade, desconforto, podendo chegar a ânsias de vômito e agressividade. Pesquisas sobre sexualidade desenvolvidas na China relataram que muitas mulheres ameaçavam vomitar à simples menção de temas como prazer sexual ou relações sexuais. Aparentemente essas mulheres foram reprovadas na infância por se tocarem ou examinarem o próprio corpo. Para um brasileiro, a situação dessas mulheres parece irreal, podendo ser vista como cômica, e até incrível, mas não difere muito do que os heterossexuais brasileiros sentem quando examinam a bissexualidade.
A libido pode tomar e toma múltiplas formas, mas apenas a forma ortodoxa recebe aprovação social. A libido não escolhe sexo (e isso é mais evidente nas espécies mais inteligentes), quem o escolhe é nossa racionalidade platônica e cristã. Na Natureza, heterossexuais estritos são minoria, mas se passam por maioria no palco da sociedade. Basta observar o comportamento sexual declarado dos homens amazonenses e mineiros, para vermos até onde a influência essencialista (e cristã) levou os respeitáveis cidadãos do estado onde as maiores atrações turísticas são igrejas barrocas.
Os heterossexuais ensinam a humildade como uma virtude que não põem em prática. Sentem-se superiores a outras formas de vivência sexual, e não escondem esse fato. Confiam na tradição e temem fugir dela, seja por ignorância ou vaidade. Preferem o sofrimento de muitos do que a simplificação dos seus preconceitos. E acima de tudo, sentem-se protegidos por pertencerem à maioria.
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Quem é mais forte, o animal que vive sozinho ou aquele que só sobrevive em bando? A influência do essencialismo platônico, que ganhou força ao se unir a todas as idéias errôneas do cristianismo, acabou dividindo a humanidade em duas partes: por um lado, um único grande e uniforme bando, que se sente "honrado" com sua mediocridade de rebanho, com suas evidências de "normalidade" estatística; do outro lado, pequenos grupos-satélite que buscam a própria verdade num mundo que sobrevive de aparências, e assim têm que aprender a resistir por si próprios.
O heterossexual não é nada natural, mas apenas um rótulo. É para onde corre a maioria dos bissexuais, incompreendidos por aqueles que não se arriscam a pensar com a própria cabeça, preferindo se esconder sob o manto da maioria. O heterossexual se sente elevado por bloquear o que a Natureza distribuiu em maior quantidade para os animais mais inteligentes, e não apenas se sente elevado, como constantemente busca rebaixar tudo o que tem essa liberdade, tudo o que expressa coragem na busca das próprias respostas, e que necessariamente há de fugir das normas, do normal, das referências mundanas, cada vez mais globais, mais globalizadas, mais falsificadas em nome de uma suposta "aceitação", que na verdade está muito longe de genuína.
A aceitação que hoje se diz acerca de bissexuais e homossexuais é ainda mais afetada que os mais afetados dentre esses excluídos. Trata-se de uma aceitação mentirosa, superficial e excludente, que faz um esforço cada vez que deve surgir, que nunca é natural, porque nunca é inconsciente. Porque, no fundo do inconsciente, está a figura da empatia e o bloqueio a que ela remete a sociedade. Uma aceitação genuína obrigaria a sociedade a encarar os seus tabus e paradoxos, obrigaria a sociedade a reexaminar seus mitos e jogar na lata de lixo toda essa ideologia metafísica que nos separa dos animais e dissocia a inteligência dos instintos, dando maior valor à primeira. Porém, não nos enganemos: a razão pode ter certas habilidades, mas os instintos guardam a maior sabedoria.
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O bissexual é uma espécie em extinção, pois a sua maioria se esconde sob o véu do heterossexual, em casamentos de fachada, e a minoria restante esconde-se nos mesmos guetos onde sobrevivem minorias homossexuais; quando este mesmo gueto é ocupado por indivíduos que usam maneiras afetadas de falar, de andar, de se vestir, e até de consumir; quando cidades turísticas exibem uma "faixa livre" no litoral, onde gays passeiam de mãos dadas e namoram nas praias, ao lado de uma "zona de conflito" onde as mesmas ações seriam recebidas com tiros e pedradas; tudo isso indica que a aceitação é apenas mais um artigo de mercado - uma estratégia de marketing para abrir mercados de consumo específicos para uma clientela fiel e até endinheirada, principalmente por não terem filhos. Não fosse o mercado, talvez o não-heterossexual fosse ainda considerado um criminoso em nosso país, como foi até o passado recente, e ainda é em muitos lugares do mundo.
Os heterossexuais modernos, de forma geral, apreciam a diversidade com o mesmo sentimento com que apreciam mercadorias expostas nas vitrines. Desejam uma diversidade agradável, não querem nem ver a diversidade desagradável. Desejam uma diversidade moderna, fogem da diversidade antiquada. Desejam uma diversidade móvel, consumível, comparável, classificável; não desejam a diversidade em si. Sequer sabem o que é isso.
Para o heterossexual moderno, faz bem ter um amigo ou amiga homossexual, é moderno, é chique. Mostra que você é tolerante, é cosmopolita e tem um pensamento "independente". Mas isso significa que seus filhos terão maior liberdade para viver a própria sexualidade? Nem sempre. Por outro lado, é inegável que há uma abertura cada vez maior, e que os "dissidentes da tradição" podem viver suas vidas com um medo cada vez menor (embora nunca ausente) de serem assassinados por serem reconhecidamente homossexuais. Ainda estamos longe da verdadeira aceitação.
Para onde vamos? Talvez continuemos andando em círculos. É o mais provável. Qualquer avanço conseguido durante séculos de lutas pode ser eliminado em uma década de repressão. Ou talvez a diversidade seja cada vez mais aceita e finalmente compreendida e absorvida como motivo, como modelo, como um fim em si mesma. Não quero ser pessimista nem otimista. Quero acordar os heterossexuais para as mentiras que ainda ocupam seus sótãos, e para as idéias que andam apenas na noite de seu inconsciente, com passos retraídos e indecisos - isso se não foram tornadas paraplégicas, o que acontece quase sempre. E quero pedir-lhes que conversem com seus filhos, deixando claro que todos somos diferentes, e ao mesmo tempo tão parecidos.
2 Comments:
Bem interessante, embora algumas vezes absurdo. O homossexual jamais seria mais comum em qualquer espécie biológica posto que ele não deixa descendentes. Ele é evolutivamente mal adaptado se vc estende suficientemente a flecha do tempo.
O bissexualismo realmente pode ser algo mais adequado. Algum tipo de bissexualismo onde a maioria dos coitos fossem heterossexuais faria uma espécie evolutivamente apta. Entretanto, há de se prever que uma espécie de maioria heterossexual (ou seja, onde toda a energia sexual seja gasta para reprodução) seja mais adaptada evolutivamente. Isso explica pq os comportamentos homossexuais, em todas as espécies, são exceções -- e não regras.
Enfim, parece também que o problema também é que nossa espécie parece ter uma tendência ao relacionamento monogâmico. Principalmente no caso das mulheres, sem querer ser machista e considerando a teoria do investimento parental. As mulheres parecem tender fortemente à monogamia na forma da busca pelo bom-provedor. Enfim, particularmente eu também tendo à monogamia, mesmo como homem -- embora creia que isso tenha vindo mais como herança cultural. Se fosse só bicho ia querer fazer sexo à toda hora, mas como ser-social sexo não basta pra uma relação que eu participe.
Como heterossexual, diria que não faço sexo com homens simplesmente porque não tenho vontade (entenda como falta de tesão). Vc também não faz sexo com mulheres, talvez pelo mesmo motivo. Entretanto eu poderia sim ter tido algum tipo de relação homossexual e confesso que não tive por algum tipo de condicionamento social que de certa forma ainda me reprime de alguma forma como a hipnopedia de Huxley.
Só pra terminar enfatizando meu ponto: o comportamento sexual será sim exceção em qualquer espécie devido ao fato simples de que a relação sexual não leva à reprodução. Assim, uma espécie ocupando o mesmo nicho onde os organismos gastem seu furor reprodutivo de forma heterossexual, muito provavelmente vai deixar mais descendentes. E isso é um tanto quanto óbvio. Discorda?
Acho que o maior diferencial da nossa espécie é a inteligência. Animais inteligentes não fazem sexo só para se reproduzir. O comportamento de brincadeira também gasta muita energia, mas ensina ao organismo como usar suas habilidades. O homossexualismo deve ter surgido com o mesmo papel na natureza, imagino, um tipo de treino.
A questão central não é qual tipo é mais comum na natureza, e sim se existem animais só heterossexuais. Acho que a maioria dos animais é bissexual, mesmo que faça 90% dos coitos com um dos sexos. Creio que a exclusividade homo/hetero é que é um desequilíbrio forjado pelas hipnopedias a que somos submetidos.
Sua abordagem é determinista demais. Não somos bolas de sinuca. As mulheres não são mais fiéis por serem "mais monogâmicas". Aqui no norte as pessoas têm muitos filhos, mas fazem muito mais sexo do que o reprodutivo, inclusive desde criança, e para os padrões do sul/sudeste, quase todos os homens aqui são bissexuais.
[]s!
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