Solidão e despedida
A vida não faz sentido algum, e eu ando perdendo o dom das palavras, se é que um dia já o tive. De outra forma, creio que me entenderiam. Mas as pessoas não estão interessadas em entender coisa alguma. Acreditam que devem se especializar, um construtor deve construir, um vendedor deve vender, um professor deve professar. Só aos entendedores seria cabido entender. Aos demais, o consolo do auto-engano, a felicidade da hipocrisia, a conveniência do silêncio.Numa nação abençoada por deus, nada se entende. O ser humano é concebido como fórmula matemática, deus nos faz à sua imagem e semelhança, logo somos imagem e semelhança de outrém, não de nós mesmos. A diversidade é anulada pela ambição da perfeição, e assim a própria perfeição é perdida. A natureza humana é incendiada pelo dogma religioso, os prazeres são convertidos em pecado, a descoberta do corpo é transformada em constrangimento, a verdade dos fatos da vida convertida em máscara.
Um amigo escreveu à turma que iria se casar. Perguntei-lhe, de gozação, quem seria o felizardo ou felizarda. Ignorou-me. Isso uma década depois que eu contei a esse mesmo grupo sobre a minha homossexualidade. A primeira reação na época me causou espanto: todos se alegraram, me abraçaram e festejaram. Anos depois, descobri que vários desse mesmo grupo também eram homossexuais, e nenhum deles achou conveniente se revelar da mesma maneira. Minas Gerais é um celeiro de preconceitos. Vive-se a vida de forma a acreditar que não existem males, que não há homossexuais nem nada que fuja ao padrão. Nas ruas e histórias da minha infância, os únicos homossexuais eram as bichas ridículas e caricatas dos programas de TV, na rua ninguém. Durante toda a juventude me senti um peixe fora d'água, um pária, um monstro, uma degeneração. Os pais sempre sabem, é o que dizem, e os meus mantiveram o mais profundo silêncio. Sofri sozinho, temeroso da conseqüência caso me descobrissem. E o homossexualismo é inevitável, não é uma escolha, nem sem-vergonhice, nem provocação - é um instinto, como gostar de mulher, só que gosta-se de homem. E não há explicação para o gostar. Gosta-se, ponto. Só perto dos dezoito anos comecei a enxergar que não era o único, mas a única maneira de se conhecer alguém era dentro dos guetos. Hoje a situação está um pouco melhor, tolera-se um pouco a diversidade, o que não significa ainda que a entendam, ou que gostem. Lembre-se, ninguém quer entender coisa alguma.
Ia sozinho às boates gays, atrás de caras que me entendessem, atrás de alguém que eu pudesse amar, e que pudesse me retribuir minha humanidade. Ia só, pois meus amigos se consideravam muito machos para me fazer companhia em tais lugares. Eu mesmo nunca gostei de nada ali dentro, a música ruim e barulhenta dificulta a conversação, o ambiente escuro onde não se distingue bem beleza, simpatia ou os olhares certos; a fumaça, o cheiro de cigarro; pessoas vazias. Mas eu ia a cada dois meses, em média, por uma necessidade fisiológica, até, mas nem sempre ficava com alguém. Os melhores exemplares gays da espécie estão muito ocupados satisfazendo a máscara que suas famílias exigem.
Um dia tirei o maior peso dos meus ombros contando à minha família. A maioria dos gays dizem que trata-se de um detalhe muito particular da sua vida, que sua família não precisa saber, etc. Mas os pais sempre sabem, é o que se diz por aí, e se fosse mesmo um detalhe ninguém faria um alarde muito grande no casamento, é o que penso. Logo, não é detalhe algum, e acaso todos soubessem e tivessem liberdade para lidar com a situação, os gays não precisariam se esconder em armários e hospícios, nem eu precisaria ter vivido a vida como se tivesse matado alguém, nem teria tanta dificuldade em conhecer uma pessoa realmente interessante. Meus pais me disseram que não havia problema algum, como se fosse do ombro deles que houvesse sido retirado um grande peso. Sabiam, mas não falavam nada. Esperavam para ver no que ia dar. Nenhum apoio por anos, apenas o medo de que fosse verdade, como se o homossexualismo fosse como uma lepra incurável, uma desgraça moral, assassinato; pior, genocídio. Já ouvi muito pai dizer que prefere filho ladrão a viado; bom, este é o nosso país, abençoado por deus, racista e homofóbico por razões que ainda desconheço. (Pensando bem, é difícil imaginar que a homofobia não tenha raízes religiosas, mas essa discussão está muito além do que a maioria das pessoas tolera.)
Então meus pais descobriram no mesmo dia em que contei a primos, primas, tios e tias. Várias pessoas disseram-me que não deveria ter agido assim, coitado do meu pai, passar uma vergonha dessas perante toda a família. Ele, que sempre fora tão machão, tão mulherengo quando jovem. Quer saber, pai? Eu também arregacei muitos cus por aí, mas não espero que isso chegue a te orgulhar. Também dei o meu cu, mas dói, não gostei. Um cara precisa ser muito macho para dar o cu. Fossem respeitados por essa virilidade extra, não precisariam ter apenas amigas, e talvez não se tornassem essas bichas afeminadas que fecham um círculo vicioso, causando com sua feminilidade o preconceito que isola as novas gerações de gays do contato masculino, tornando-as novamente afeminadas, retroalimentando o preconceito. Mas a quem isso interessa? Somos, novamente, uma nação cristã, e apesar de Cristo aparentemente ter dito todas aquelas coisas sobre a primeira pedra, não disse explicitamente que devemos saber desde cedo a orientação sexual de nossas crianças, para ajudá-las a desenvolverem-se num caminho seguro e sensato, ao invés de terem que descobrir a vida dentro dos piores e mais fétidos antros que já se criou.
Quando fiz a piadinha ao meu ex-amigo, perguntando com qual gênero viria a se casar, seu silêncio me constrangeu como nada antes, acredito. Ora, ele era desses que festejaram quando saí do armário, me cumprimentou com um caloroso abraço, feliz com minha honestidade, minha segurança, meu desprendimento, minha coragem em enfrentar a vida. Acreditei que não havia aí mais nenhum preconceito. Mas como quase tudo na vida, enganei-me outra vez. É assim: os heterossexuais podem fazer piadas de viado, mas quando um viado faz essa mesma piada com alguém supostamente heterossexual, a festa acaba. Bem, vivo e aprendo a cada dia. Aprendi que a religião impede as pessoas de pensar, as proíbe de terem pensamentos próprios, como se o próprio deus estivesse em cada fresta dos neurônios vigiando tudo. Ou apenas perde-se um tempo tão considerável com novelas, jornais mentirosos, trânsito, um trabalho enfadonho e sem sentido, livros de auto-ajuda atrás de livros de auto-ajuda, que não se aprende nada. Gosto da minha família, mas é preciso dizer: trata-se de um bando de ignorantes. Aprenderam algumas coisas na vida, várias coisas, mas toque o nervo exposto, o fio solto em seu raciocínio obtuso, e verá como fogem. Tenho muitos homossexuais na minha família, mas todos fingem que não, chamam o homossexualismo de imoral nas minhas costas, e depois vêm me cumprimentar com um sorriso no rosto. Imagino se não lavam as mãos em seguida, às escondidas.
A vida após a morte é o pior de todos os mitos. Cria a convicção de que teremos inúmeras tentativas, chances para sermos diferentes, já que esta vida tem horas que é uma merda. Mas o pior é que, confiando em outra vida, fazemos tudo de errado nesta, e ainda criamos crianças covardes, ingênuas e crentes, fracas frente à verdade, incapazes de questionar as coisas de frente, incapazes de ousar desafiar o que está posto. Ou seja, a preguiça mental dos adultos torna as crianças preguiçosas. Outro círculo vicioso. E as pessoas querem ter o seu direito de acreditar, e exigem que sua crença não seja desafiada, questionada ou criticada. Temos direito à liberdade de expressão, mas não espero que esse direito se estenda ao racismo, à intolerância, à opressão. Porém, enquanto a religião é respeitada, jamais sairemos dessa trilha. Acreditava que minha irmã tivesse um senso moral um pouco mais claro; afinal, foi ela quem primeiro me incutiu dúvidas a respeito da existência desse deus que aí está. Casou-se agora na igreja. Meu irmão, para mim, foi surpresa ainda mais desagradável. Sempre teve as idéias emparelhadas às minhas, sempre foi ciente de todos os meus questionamentos, de toda injustiça e falta de senso desse sistema, e agora que teve um filho, correu a batizá-lo na igreja mais próxima. Não percebem o que estão fazendo? Não enxergam que dão munição ao mesmo sistema que nos transforma em bife? Bife, sim, pois ao homossexual não é permitido amar; quem já era diferente desde o início descobre-se ainda exposto e vigiado, odiado e temido, solitário e em débito. Como se tivesse matado alguém. Como se tivesse estripado gerações dos mais nobres e honoráveis sábios. Neste reino do terror, meu pecado é seguir o que amo e não desejar mal a ninguém. Mas não consigo mais. Desejaram-me, com seu silêncio, com sua ausência, com seu desinteresse, todo o mal que pude suportar. Agora não quero mais. Não quero mais nem seu bem nem seu mal. Não quero mais nem seu silêncio nem suas palavras. Não quero mais seu desinteresse ou interesse, seu consolo ou desconsolo. Nada. Que se fodam.
Agora com o cursor piscando no fundo branco da tela, não sei mais o que dizer. Sei que voltarei a Belo Horizonte um dia, e terei o mesmo silêncio constrangido, o não saber falar da parte deles, ou não querer falar sobre o que sou, sobre como sou, sobre mim, sobre minha vida. Eu tomei o primeiro passo, o segundo e o terceiro. Não quero mais andar sozinho. Engraçado que as pessoas adoram falar sobre a vida umas das outras, mas no meu caso o melhor caminho sempre foi o silêncio. Nasci e cresci assim, e agora que aprendi a ser só, acabei gostando. Tem hora que dói, hora que cansa, mas estou bem treinado. Vou passar uns anos sem ir ver minha família, acho que é a melhor maneira de mostrar que certas coisas, ou não as aceitamos, ou as aceitamos incondicionalmente. Não tem sido seu caso, embora rezem todos os dias aos seus deuses. Não sei o que pedem. O que sei é que, se dissessem o que pensam, se falassem a verdade uns com os outros, ao invés de guardar a verdade mais profunda para as divindades, teriam chances muito melhores de conseguirem o que querem. Mas, quem sou eu para dar conselhos? Já sabem toda a verdade, ou acham ou fingem que sabem. E não aceitam argumentos de alguém mais novo, nunca aceitaram, creio que nunca aceitarão. Não comentam, não discutem, as idéias para eles são ídolos pétreos que se deve cultuar, não argila moldável que fazemos crescer e damos forma em sociedade. Pois bem, que assim seja. Sem mais idéias, pois.
9 Comments:
Bom texto! Denso e claro, doloroso e sincero.
As vezes penso que vc faz tempestade em copo d'água, como no caso do cabra lá que tá pra casar. Ele só não respondeu e as pessoas as vezes simplesmente não respondem por motivos mil... talvez ele nem tenha se sentido ofendido e não tenha respondido por não saber o que falar ou por estar ocupado, sei lá. Mas talvez ele tenha se ofendido sim e talvez vc tenha uma certa razão.
Mas acho que precisamos tentar viver-bem! apesar dos preconceitos dos outros e desta sociedade escrota e falida em que vivemos. Não acho que é a revolta a saída, acho que a saída é o diálogo lento e constante. Acredito que os preconceitos e certas das mais estúpidas tradições cozinham até se esfarelar quando deixadas em fogo brando. Mas a espada não lhes causa qualquer ferimento. É preciso muita paciência... toda mudança consiste num processo lento e é preciso andar um passo depois do outro.
Enfim, posso estar errado.
De mais a mais, nada a declarar.
Até sábado!
[]s!
Discordo que você esteja perdendo o dom da palavra. Parei hoje para dar uma olhada nos seus últimos textos e fiquei muito satisfeito por ter feito isto. Confesso que havia te dado um tempo depois da conversa sobre o Tao e os textos imediatamente anteriores e posteriores a ele. Nada contra, apenas falta de sintonia entre minha cabeça e eles. Também confesso que às vezes não te entendo, mas vá lá... não entendo a maioria das pessoas por completo e posso atestar, com um misto de orgulho adolescente e rabugice pré meia-idade, que a maior parte das pessoas também não me entende. Onisciência é coisa para pretensos deuses e sábios orientais caricatos.
Mas, de volta ao dom da palavra, não há dúvida que você sempre o teve, e ainda há de fazer muito bom uso dele.
P.S.: Putz, desculpa, mas não teve como não reparar nos anúncios no topo do blog. Não sei se você os vê, uma vez que deve fazer o log in como autor, mas transcrevo alguns abaixo, só para não perder a piada:
- Drogas e Álcool
Tratamento especializado para quem quer, e não quer se tratar.
www.clinicalvorada.com.br.
[a observação do "não quer" é excepcional...]
- Drogas e Alcoolismo
Voluntario e Involuntario(Não quer)[Ter que traduzir "involuntário" também não tem preço]. Remoção em todo país -11- 4661-9054.
- Clif Med Comportamento
Psiquiatria, psicologia, compulsão. O que faltava para voce mudar! www.clif.med.br
[Não notei nenhuma clínica se predispondo a tratar o caso do Rock'n Roll...]
Pelo menos ainda não estão tratando o sexo também... por enquanto... Mas essa do tratamento involuntário é de arrepiar hein?? Eu vejo as propagandas também, mas até onde sei não ganhei um tostão com elas ainda :) Não sei se coisas assim
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valem a pena, quem sabe um dia eu ganhe alguns centavos... mais pra ver qualé mesmo. Valeu aí os comentários, e sim, é bom ler o que se escreveu sobre o Tao antes de ler o próprio, ajuda bastante. E onisciente, realmente, talvez só o Google mesmo.
Acredito que você não se importe com isso, mas foi a primeira vez que li algo no seu blog e foi um tapa na cara. Obrigado por esfregar minhas mentiras na minha cara.
Espero mesmo que tenha mesmo apreciado. Se sim, não há de quê.
A propósito, se eu não me importasse eu não escreveria. Há quem diga: "a verdade deve ser dita, doa a quem doer", mas a maioria ainda prefere "a mentira deve ser dita, doa a quem doer." As mentiras arruinaram nossa sociedade, estou tentando remediar isso. De qualquer forma, um tapinha não dói. Abraços!
Um tempo atrás, eu o procurei sobre um jogo que você estava fazendo e queria ajuda. Pena que nunca recebi sua resposta.
Bem, li apenas este post, normalmente não consigo ler tantos textos. Chamou-me atenção, é claro, a situação em que você está(va). Opinião minha é de que tudas as suas dúvidas são legítimas, e que você, com certeza, não é o único a pensar exatamente assim.
Se quiser ajuda, procure, pois sei (e vi) que ela existe. Procure em todo lugar que puder. Porém, pode ser que você mesmo tenha que quebrar algumas crenças dentro de si.
Opinião dada, boa sorte.
Obrigado pela opinião, mas a quais crenças você se refere? Não tenho nada contra quebrar crenças, muito pelo contrário. Não acredito em crenças. Acredito na verdade. (Ou será que parecerei muito arrogante se ousar escrever Verdade?)
Deus é que não é a Verdade.
A Verdade é o Mundo, o Universo.
Não está em nós, mas sei que o método científico nos aproxima d'Ela. O que importa a Verdade? Ela afasta a mentira, e nossa sociedade está impregnada de mentira.
Não tenha medo de perguntar novamente, às vezes acontece. E também não tenha medo de dizer tudo o que pensa. A quais crenças se refere?
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