Friday, June 03, 2011

O Dao e a Ecologia Profunda

"A Arte da Guerra", o grande clássico militar chinês, é considerado por ocidentais, entre outras coisas, como o melhor livro já escrito sobre "etiqueta nos negócios". Ironias à parte (ou não), o fato é que os clássicos têm sempre uma abrangência muito maior do que enxergamos de imediato, ou mesmo depois de anos de releituras.

Diferentes clássicos têm sido admirados e estudados de formas variadas por diferentes culturas. Culturas militarizadas valorizam textos militares, culturas agrícolas valorizam textos agrícolas, etc. Isso talvez explique o "incômodo" e a incompreensão que um clássico como o Dao De Jing vem há alguns séculos despertando na nossa civilização industrial.

Ainda que a compreensão do lugar da nossa civilização no mundo não seja um fator suficiente para entendermos o Dao De Jing, é porém um fator necessário.

Existe hoje uma corrente de pensamento e ação conhecida como "Ecologia Profunda". Essa corrente reconhece que nossa civilização errou em aspectos fundamentais do desenvolvimento humano, e estaria por isso causando mais mal do que bem à medida que copia a si mesma, alastrando-se sobre o planeta e deixando para trás um rastro de destruição, poluição e miséria.

Não se pode falar sobre a verdade sem antes tirarmos de nossas vistas diversas camadas de mentiras, assim como não se pode escrever sem se ter em mente quem deverá ler. O leitor ocidental - que tenho em mente enquanto escrevo - é uma grande e absurda exceção histórica. Afastado de seu ambiente natural em um grau impensável para todo o restante da humanidade (no tempo E no espaço), o ser humano moderno vive cercado por uma gigantesca rede de mentiras.

Parte dessas mentiras se deve a políticos querendo ampliar seus eleitores, parte vem da propaganda querendo ampliar seus consumidores, parte das igrejas querendo ampliar seus fiéis.

Quanto menos um povo tem acesso a certos parâmetros fundamentais da realidade - tirados do convívio com a Natureza - mais se torna vítima de todos os tipos concebíveis de mentiras.

O quadro geral é simples: enquanto uma minoria abastada se diverte, viaja e faz compras, a maioria é afastada dos recursos naturais que pagam o luxo dos primeiros. Para cada Leblon, milhares de bairros sem atrativos, sem beleza. Para cada Avenida Paulista, milhões de ruas sem perspectivas nem conhecimento do bicho que lhes corrói por dentro e por fora.

Donas dos meios de produção e da grande mídia, aquela minoria alegre e simpática pinta um mundo cor-de-rosa e vai empurrando com a barriga enquanto pode. Mas o mundo está mudando, e só o tempo dirá se este nosso lento acordar foi lento demais ou não.

Quando finalmente acordarmos, perceberemos que a Natureza não é coadjuvante, que a cultura não é senhora, e que este pequeno livro, Dao De Jing, é um dos livros mais simples e lúcidos jamais escritos. Mas a rede de mentiras - que se estende até onde menos esperávamos - insiste em tratá-lo como "místico" e "esotérico", a começar pelas traduções disponíveis.

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Traduzir não é levar um texto de uma língua para outra - é levá-lo de uma cultura para outra. E aqui a cultura do tradutor é decisiva. Se ignorar o contexto cultural (e natural!) do texto original, só poderá fazer uma tradução superficial. Se ignorar o contexto cultural das massas atualmente excluídas e do ciclo vicioso da degradação ambiental (que tocam no cerne do tema proposto no Dao De Jing), só poderá fazer uma tradução alienada.

Assim, não é possível traduzir filosofia sem filosofar. Isso nos obriga a perguntar - mas o que é um filósofo? E principalmente, o que costumava ser um filósofo?

Há um dito, provavelmente recente, que diz "filosofia sem ciência é míope, ciência sem filosofia é cega". Devemos nos perguntar se há mesmo uma fronteira entre ciência e filosofia.

Os filósofos desde a Antiguidade até os séculos passados dominavam os avanços científicos do seu tempo. O mesmo pode ser dito dos filósofos atuais? Não me parece. Ouço argumentos que defendem a situação, dizendo que o conhecimento cresceu demais para que até mesmo os "amantes do conhecimento" possam comportá-lo. Se for assim e tivermos criado mais conhecimento do que podemos assimilar - então não criamos um monstro? Não virá daí o "sistema incorreto onde ninguém tem culpa"?

Quando o Dao De Jing toca neste ponto - e em muitos outros - tendemos a ficar perplexos com a atualidade da obra e a capacidade de "previsão" de seu autor. Mas uma vez derrubado o mito do progresso (com a ajuda da mesma obra), resta apenas a imagem clara e reta de que certas verdades vão muito além de nossa estreita viseira cultural.

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O Ocidente (como toda civilização que acredita demais em si mesma) enxerga o mundo e a história como alguém sentado no fundo de um poço. Um amazonense do fundo da floresta não precisa conhecer um indonésio do fundo da floresta para entender que a briga deste último contra madeireiros é legítima. O ocidental endinheirado viaja a ambos os lugares e ainda não entende como a vida poderia ser tão simples.

Depois do telescópio e do microscópio, começamos a nos esquecer de ver o que sempre esteve debaixo do nosso nariz. Mas como vê-lo, quando nossos canais de percepção estão já entupidos pelos brilhos e ruídos das máquinas de propaganda, pelas crenças irreais e nocivas de economistas, políticos, padres e pastores?

Parafraseando Nietzsche, compreender o Dao De Jing é compreendê-lo necessariamente, ou seja, por completo. Não apenas adicioná-lo ao carrinho de compras para enriquecer um cardápio cultural de vitrine.

A energia não é relativa.
Tudo é energia.
Logo, nada é relativo.

O que parece à primeira vista um contra-senso pode ser apenas a luz fora da caverna. A caverna de hoje tem muitos nomes, talvez o mais importante seja "especialização".

A maneira como eu vejo um fenômeno é relativa à minha posição, mas a maneira como expresso minha visão é feita absoluta na minha escolha de palavras. O registro de minhas palavras sofrerá erosão com o tempo, mas a erosão não é menos objetiva que a pedra que devora.

A verdade é o mundo.

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