Wednesday, December 19, 2007

A Esperança da Civilização na Arte

Por muito tempo acreditei que a solução para os nossos maiores problemas estivesse na educação. Educação de qualidade para todos, é o sonho de todos os idealistas. Mas é muito difícil definir o que seja "educação de qualidade", por vários motivos. Um deles é que uma nação industrializada deve ter uma educação bem diversa de uma nação agrícola, como uma nação capitalista - onde cada um deve ter o potencial para competir - de uma socialista - onde o trabalho de um não deve superar, mas complementar o dos demais.

Parece-me que uma educação de qualidade deveria, em linhas gerais, dotar o indivíduo de um senso crítico, onde ele pudesse distinguir a verdade do mito, o bom-senso do exagero, e acima de tudo pudesse continuar sua educação por si próprio. Tudo isso, contudo, não é apenas uma utopia, mas uma utopia que apenas funcionaria num mundo utópico. Permita-me explicar. Se vivêssemos em um mundo em que a boa-fé predominasse, poderíamos esperar que as pessoas divulgassem a verdade e extinguissem, aos poucos, as mentiras. Muitos cientistas inclusive pensam ser esse o papel da ciência, mas não é. Seria, no nosso mundo utópico. Neste mundo, o mundo animal e amoral em que vivemos, o papel da ciência é desenvolver a técnica, e o da técnica, desenvolver e concentrar o poder.

Mesmo as pessoas educadas nas melhores escolas são treinadas apenas para servir e perpetuar o poder. Vivemos num mundo onde a distância entre ricos e pobres cresce continuamente, creio que exponencialmente seria até mais adequado - seja dentro de cada cidade, dentro de cada país ou entre os países.

A "educação de qualidade" como a conhecemos não nos liberta disso. É, na verdade, uma educação tecnológica e competitiva, que eleva aqueles cujos instintos - por mero acaso - correspondem ao que o sistema espera deles: calcular planilhas, estudar leis, bolar projetos, analisar e resolver problemas complexos. Os melhores alunos, assim, recebem os melhores salários, afastam-se do povo e dos problemas do povo, abaixam a cabeça perante seus superiores e acostumam-se a uma variedade de mordomias, de tal forma que não poderiam mais modificar o sistema, mesmo se quisessem. Já estão tão afastados do povo que não sabem mais o que este precisa; e se soubessem, não arriscariam perder suas mordomias propondo mudanças que não agradariam aos poderosos.

Por outro lado, a "educação de qualidade" é tão espessa, extensa e complexa que afasta amedrontados todos aqueles cujos instintos não correspondem a ela. Ainda pior, convence-os de que a educação é um processo difícil e doloroso, e que a aquisição de conhecimento, a leitura e os estudos de qualquer natureza estão reservados para uma qualidade "superior" de pessoas. Aceitam, por isso, que seu trabalho seja mal-remunerado, e não têm a quem recorrer, por mais que seus direitos sejam desrespeitados.

Muitos dos que se formam nas "escolas de qualidade", depois de alguns anos servindo o sistema em posições confortáveis, seguras e bem-remuneradas, não têm mais um tipo de inteligência ágil e versátil, comum entre pessoas sem estudo algum, mas que precisam sobreviver num mundo imprevisível e inóspito. Este tipo de inteligência, capaz de resolver problemas inusitados e variados (não apenas lógicos ou matemáticos, por exemplo), parece ser a inteligência original da espécie, livre de categorias rígidas e modernas de pensamento (como o cartesianismo e o atomismo), que causaram grandes avanços em certas áreas do saber, mas que talvez não devessem ser a forma predominante de pensamento de toda a humanidade. Me vem à mente a figura do médico ou engenheiro inteligentíssimo que não entende uma piada trivial, devido talvez à forma praticamente adestrada como sua mente categoriza e processa informação recebida; diferente do espírito da piada em questão, acessível a uma percepção mais livre.

Recapitulando, a "educação de qualidade" não produz inteligência, mas especialização. E ainda que a especialização seja útil e desejável, sua universalidade não o é.

Quando refletimos sobre os problemas sociais, deve nos vir à mente a figura da motivação. O que motiva alguém à ganância ou ao roubo? O que motiva a corrupção, a violência, o descaso, a inveja? Resumidamente (e por isso mesmo provisoriamente), penso ser a passagem do tempo e a fuga do tédio. O ser humano é um animal que precisa de novidades. Não podemos fazer a mesma coisa durante um ano inteiro, ou mesmo por um dia inteiro, a não ser que se trate de algo que gostamos muito. Também sabemos que apenas uns poucos felizardos trabalham com o que gostam. Como resultado, temos uma população gigantesca procurando o que fazer com o seu tempo livre, ricos procurando novas formas de gastar, pobres procurando um dinheiro extra e diversão barata. Todos os problemas que daí advêm, a desigualdade social, o consumo de drogas, a criminalidade, etc., têm sua origem neste fato comum: a passagem das horas é intolerável para o ser humano médio, que precisa então criar as mais diversas ocupações.

Se a intolerância ao tédio é uma constante humana, o problema deve ser outro, e parece ser, de fato, as limitadas opções disponíveis em nossa sociedade. Para os pobres: o entretenimento perverso da televisão, suas novelas medíocres, filmes violentos e estúpidos, humor apelativo, jornalismo omisso, etc.; a cerveja e a cachaça que anestesiam momentaneamente os problemas; o cigarro que tranqüiliza e debilita a saúde; o sexo sem proteção nem consciência que multiplica a pobreza e dissemina doenças; a religião que tenta evitar todos esses problemas com um véu de alienação e hipocrisia. Para os ricos, todas essas soluções também estão à disposição, e ainda tudo o que o dinheiro pode comprar, incluídos aí a inveja dos pobres e a impunidade à lei. Portanto, a "educação de qualidade", até hoje, só tem replicado o sistema, permitindo a passagem de uma minoria irrisória pelo funil de ascenção social, e mantendo a maioria alheia a soluções criativas para a necessária fuga do tédio.

A salvação da arte

A classe que me parece mais imune ao tédio, e principalmente, que menos depende da classe social e do poder aquisitivo, são os artistas. Pobres ou ricos, os artistas sempre têm em sua arte uma válvula de escape ao tédio, que é, ao mesmo tempo, uma forma de representação da sua realidade e de educação múltipla e não-alienante para os demais.

É muito comum vermos os jovens sendo desestimulados à arte. "Os estudos são mais importantes!" repetem as mães, mas todos os anos milhares de formandos alistam-se em empregos sem futuro e sem prazer, cujo salário não pagará seus escapes ao tédio - coisa que sua arte agora morta faria de graça.

O mundo corre tão desenfreado rumo a coisa alguma que não percebemos que todas as crianças são artistas. Apenas se não retraíssemos suas ambições artísticas, nem forçássemos seu aproveitamento nas escolas, ainda mais de forma competitiva; e veríamos a arte se multiplicar e ocupar o espaço que é seu desde os primeiros desenhos nas cavernas; veríamos a arte conquistar o espaço que a TV monopolizou, homogeneizou e imbecilizou, tudo em favor do sistema que buscamos reformar.

A questão da "boa" e da "má" arte deve ser deixada para os futuros críticos. Desde que, evidentemente, eles tenham em seu currículo alguma obra que também possamos criticar. Afinal, o objetivo de tudo isso não é outro senão passarmos o tempo.

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