Tuesday, August 12, 2008

O politeísmo e a origem do tudo ou nada

Desde a aurora dos tempos, quando os homens-bichos começaram a descrever o mundo, a noite era a noite e o dia era o dia. Independente dos nomes que levassem, contudo, o crepúsculo nunca foi algo que passou despercebido. O homem primitivo, antes mesmo de inventar nomes para as coisas, sabia que as coisas se apresentavam na natureza em diferentes gradações. Um fruto podia estar verde ou maduro, mas podia estar mais ou menos maduro, muito verde ou nem tão verde assim. Tudo tinha seus tamanhos e graus diferenciados.

Quando surgiram as primeiras divindades não foi diferente. Cada deus tinha o seu papel, cada um tinha uma história, e ensinava uma moral diferente. Se alguém não concordasse com a moral de alguma divindade, se houvesse alguma crítica a ser feita, algo a ser discutido, sempre haveriam outros deuses, outras versões da mesma história, ou de outras histórias, outros pontos de vista para enriquecer a discussão. Ainda nessa época, é pouco provável que houvesse a questão de se acreditar ou não nas divindades, da maneira como usamos a palavra 'crença' hoje. Essa idéia simplesmente não devia existir, visto que dicotomias absolutas ainda não existiam. O mundo era feito, como já disse, de gradações. Cada divindade defendia um ponto de vista, cada uma contava uma lição, e os tolos eram aqueles indispostos a aprender com tudo isso.

Muito tempo depois surgiu um fenômeno que ainda hoje exige explicação: o monoteísmo. De alguma maneira, toda a riqueza moral da humanidade foi sendo resumida a uma única idéia, e o mundo se tornou menos colorido: não mais muito verde - verde - médio - maduro - muito maduro. Agora era uma questão de sim ou não, bem e mal, certo e errado, tudo ou nada. Ou se está com Deus ou se está contra Deus. O meu Deus é diferente do seu, mas ele anseia por ser único. O que antes era uma medida de conhecimento, agora era uma medida de imposição. Os deuses cultura se transformaram no Deus política. No Deus força. No Deus dominação.

Hoje ainda existem culturas politeístas e ateístas mundo afora. Podemos dizer que o Taoísmo é uma religião sem deuses, e podemos dizer o mesmo de outras religiões orientais, como o Confucianismo e o Budismo. Ao mesmo tempo temos sociedades nativas das Américas, África e Pacífico que cultuam várias divindades, imagino que mais ou menos da mesma forma que os antigos. Se podemos falar em vantagem - e eu acredito que podemos - está claro que os diversos politeísmos são, enquanto religião, mais tolerantes e curiosos, pois se interessam pelo conhecimento de outros deuses, no lugar de tentar exterminá-los.

Além da curiosidade - a própria origem do "pecado", ao menos para os monoteístas cristãos - os monoteísmos introduziram no mundo o grande mal da dicotomia forçada. Ou seja, enquanto antes os extremos das dicotomias reais eram acompanhadas de toda uma gradação de valores intermediários, hoje estamos acostumados às dicotomias completas. Ou o personagem da história é bom ou é mau; ou se vai para o céu ou para o inferno; ou se evolui para o bem ou não se evolui de todo; ou a Amazônia será destruída ou salva; ou presídio ou liberdade; ligado ou desligado; oito ou oitenta. Sabemos que não precisa ser assim, como aliás sabemos que NÃO É assim. Vejamos o caso do bem e do mal: se todas as pessoas forem boas numa dada sociedade, não tardará a aparecer um oportunista aproveitador da bondade alheia. Esse primeiro indivíduo mau deverá ser punido pelos outros. Mas como a punição é, por si só, algo necessariamente mau, então devemos concluir que o bem e o mal existirão necessariamente em toda sociedade. São inescapáveis e sempre existiram. Talvez se soubéssemos, cada um de nós, como ser bom e mau nas ocasiões corretas, a harmonia social seria mantida muito melhor do que é hoje.

Quando alguém pergunta se fulano é honesto, ou quando se tenta definir o que é o bem, cada uma dessas questões merece uma profunda reflexão. Ninguém é completamente honesto, nem completamente falso. Sabemos o que é o bem quando o vemos, mas será tão fácil defini-lo? Chego à conclusão que apenas o conhecimento pode nos esclarecer sobre essas e outras questões - mas os monoteísmos são, cada qual à sua maneira, inimigos naturais do conhecimento. Se não fossem, teriam toda a curiosidade do mundo em conhecer outras religiões, em partilhar idéias e discutir valores, em filosofar sobre o mundo, buscar entender a realidade e aplicar nosso conhecimento na construção de uma sociedade mais justa. Mas sabemos bem como as pessoas religiosas em geral temem a filosofia. Esse estado de coisas, essa ignorância coberta e recheada de preconceitos, essa intolerância e preguiça em relação à verdade, não é algo que merece ser enfrentado?

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