Ligação cotidiana
Oi mãe, como vai? Estou ligando para dizer que estou fingindo que está tudo bem. Todos os dias eu finjo que não há problema algum, mentir para mim mesmo e para os outros deve nos tornar mais fortes. Finjo que as pessoas sabem a diversidade que há na natureza e em nós, que não confundem dogma com moral, ou tradição com bom senso. É preciso fingir. Ontem não fingi, e discuti com uma dona que segue o Levítico, da Bíblia, afirmando que o homossexualismo é errado, monstruoso, um desvio da palavra divina. Já ela finge não ter lido as outras palavras desse mesmo livro, que nos mandariam matar a pedradas aqueles que se comunicam com espíritos, isso se não fingíssemos que somos coerentes. Todos os dias é preciso fingir. Finjo que os chineses não são melhores do que nós, com sua filosofia de vida centrada na própria vida (e não na morte); também finjo que os indianos não são melhores do que nós, com sua assembléia democrática de múltiplas divindades, mais difícil de ser manipulada por qualquer igreja. Outro dia fingia que não aprendi nada com nossos aborígenes amazônidas, que tratam todo seu conhecimento como mitologia, e são assim mais ávidos por aprender. É preciso fingir. Finjo a todo momento que as pessoas à minha volta se maravilham com o próprio mundo onde vivem, e por isso não precisam inventar deuses e espíritos para terem com o que se maravilhar. Finjo que está tudo bem, e que os únicos fatos dignos de nota são o que eu comi hoje, com quem conversei, o que fiz no trabalho. Finjo que a rádio da padaria não disse que o homem foi feito para a mulher e vice-versa, finjo que não está escrito no livro mais vendido do mundo que um deus qualquer criou primeiro o homem e todos os animais, e só então fez a mulher. Finjo que as pessoas conhecem o mínimo de ciência para se satisfazerem com a explicação natural das coisas, que envolve populações, fenômenos genéticos e ecológicos, evolução. Finjo que meus contemporâneos são sábios e curiosos, que trazem consigo coragem e lucidez. Finjo que os homossexuais todos são livres e orgulhosos de serem como são, e que jamais faltariam com a verdade ou perderiam a oportunidade de conhecerem alguém apenas por terem que provar aos demais algo que nunca foram nem serão. Mas é preciso fingir. Fingi também, e com uma freqüência aterradora, que às crianças está sendo ensinado o melhor que temos, e que ninguém conta mentiras a uma mente em formação apenas por diversão e graça. Finjo que as pessoas têm interesse em aprender algo novo a cada dia, e que sabem analisar com isenção quando um pensamento completamente novo é apresentado a elas. Finjo que as pessoas não são covardes e tradicionalistas, que não levam uma vida inteira se baseando em falsas esperanças, que exigem o mínimo de provas ou de sensatez antes de acreditarem em algo. Finjo, fingi, fingirei. Então, finjo que estou bem, finjo que a vida vai bem, apesar de tudo. Só liguei para isso, para você fingir que acredita em tanto fingimento.