Friday, August 31, 2007

Detalhe

tô escrevendo aqui e comendo uma macarronada deliciosa :)

expresso bruto

músicas:

Expectations - Belle & Sebastian
I Talk To The Wind - King Crimson
Epitaph - King Crimson
Led Zeppelin IV inteiro


"Isaltino viu o gavião apanhar o pinto na porta da cozinha. A meninada toda saiu correndo atrás de Garcilásio, que levou a espingarda, até verem o gavião dilacerando sua presa do outro lado da maniwa."


Um certo filósofo disse certa vez que há dois tipos de pessoas: aqueles que classificam as pessoas em dois tipos e aqueles que não o fazem. Talvez algum dia essa verdade tenho sido apenas uma curiosidade, quero dizer, essa diferença talvez já tenha existido como mera contingência, como algo não necessário e talvez até sem conseqüências para o modo como vivemos.

Hoje, contudo, existe uma divisão clara que antes não havia. Há, de fato, dois tipos de pessoas: aqueles que querem o futuro e aqueles que querem o passado. De certa forma, todos ansiamos e tememos um pouco pelo futuro, enquanto guardamos com carinho momentos felizes que se foram. A divisão atual diz respeito ao que se deseja como futuro - que ele seja inovador, moderno, tecnológico - ou que mantenha os atrativos do passado que hoje destruímos em nossa sanha de lucro e mercados.

A dicotomia se torna explícita na visão que as pessoas têm da natureza: algumas simplesmente desdenham a natureza como um luxo agradável somente para alguns, sendo assim dispensável para todos que assim desejam. Este raciocínio sustenta que as pessoas não precisam da natureza, que é uma escolha filosoficamente sustentável adulterarmos a natureza a nosso bel prazer em troca do que quisermos, haja visto que somos a única espécie consciente sobre o planeta - e fossem os leões os donos de tal incumbência, fariam o mesmo, como também alienígenas, e como de fato os dinossauros parecem ter feito por longas eras.

Entretanto, há a visão oposta: não de que a natureza seja um bem comum da humanidade - nada tão abstrato. Nem que seja do interesse de todos, ou uma companheira agradável a algum instinto primitivo da "natureza humana". A visão oposta é a de quem vive _na_ natureza, _com_ a natureza e _da_ natureza. Para essas pessoas, a natureza é seu único bem, sua maior riqueza. Destrua-se a natureza, e restará apenas a riqueza criada para os que podem, e um mar insalubre de restos para os demais.

A questão que se coloca: quais fatores determinam de que lado alguém vive?

A idéia do berço parece tentadora. Quem nasce com todos os confortos da vida moderna não costuma abandonar seu carro apenas para evitar o aquecimento global. Afinal, para esses, o sistema público de transporte é "intolerável". Da mesma forma, quem nasce próximo da natureza pode até procurar conforto onde não há, mas vários são os que cedo ou tarde se arrependem e retornam em busca do bucolismo que se extingue muito a muito.

Outra idéia é que a carreira determine a maneira como alguém vê sua relação com o mundo - se como dependência ou parasitismo. Há cursos universitários que abrem a cabeça para esta questão e para a seriedade com que deveríamos hoje estar atrás de sua resposta. Biologia, talvez música, história e filosofia. Há cursos que têm o referencial oposto, de que o homem deve usar sua lógica como ferramenta suprema, e de preferência não olhar para os estragos que essa abordagem causa. Economia, direito e publicidade me vêm à mente. Desnecessário dizer que também há biólogos reacionários e advogados altruístas, mas parecem mesmo a minoria.

Na prática, nenhuma das idéias talvez funcione, apenas porque somos muito mais um acúmulo de vícios e hábitos arraigados do que um projeto logicamente elaborado conforme um status social e uma educação específica.

Uma visão comum entre biólogos contemporâneos parece ser uma terceira opção em minha dicotomia original: "eu sei que há um problema com o planeta, que nossas ações são as únicas responsáveis pelo mal que faremos com nosso futuro e o de nossos filhos, mas ainda assim viverei exatamente como tenho vivido, perseguirei os mesmos ideais, mesmo que não seja hoje tão claro que eles contribuirão com a humanidade (ou com o ambiente) como cheguei a acreditar que eles contribuiriam." Em outras palavras, da boca para fora admite-se que devemos cuidar melhor do planeta, mas na prática não se diminui o consumo de energia elétrica ou combustíveis, ainda se almeja ao mesmo nível de distinção social. Há algo de errado nisso? Talvez, quando metade do mundo está vendendo o almoço para comprar a janta (reparem o eufemismo, pois de fato sequer estão comprando alguma coisa), quando essa desigualdade beira o caos e incendeia a violência urbana, quando sequer as pessoas ricas têm discernimento do que seja a realidade, então tudo o que acreditávamos perde o sentido. Não preciso de um sofá em minha sala, ou de uma cortina decorativa em minha janela. Não preciso de um espelho elegante na copa, ou uma mesa decorada na sala de estar. Não preciso, de fato, de uma copa E uma sala de estar. Talvez não precise de nenhum dos dois. Não preciso ter a roupa passada, como dificilmente precisarei de uma roupa "melhor" que a sua. Não preciso levar duas malas para passar uma semana fora, ou um mês. Não preciso de mais que dois pares de tênis, talvez um par só me baste. Não preciso honrar minha aparência mais que minhas ações, nem preciso do que é melhor, se posso ter quantidade do que é suficiente, e até dividi-lo com meus semelhantes. Tudo isso considerado, todo o mundo continua sendo uma grande farsa.

O dia das crianças é uma farsa, como o dia dos pais e o das mães. O Natal é uma farsa ainda maior, pois comemoramos o nascimento daquele cujas palavras não seguimos. O imposto pago constitui uma farsa, pois é usado para manter o sistema que não mais corroboramos, e se retorna aos mais necessitados é apenas por exceção.

Tudo bem, precisamos estar de algum lado da equação. Muitos até acreditam estar do lado de cá, quando descobrem que há inúmeros quilômetros ainda mais para "cá", e que de fato se encontravam confortavelmente instalados entre os que se assumem, sem mesmo corar, como alguém do lado de "lá".

Pensando bem, é justamente aqui que recai boa parte das pessoas que conheço.

O ser humano politicamente correto de hoje é assim:

1) já sabe que o homem é um câncer sobre o planeta;
2) tomou algumas atitudes quanto a isso - recicla seu lixo ou é vegetariano ou usa canecas plásticas para evitar o desperdício de recicláveis. Ou tudo isso e algo mais;
3) tem um carro - e se não tem, está batalhando duro para tê-lo. Afinal, numa cidade grande não há outra escolha para quem quer ter uma vida social ativa;
4) sequer cogita em mudar de cidade e comprar uma bicicleta;
5) acha, ainda, absurdo que as pessoas pobres sejam tão pobres. Acredita que deveriam ter um nível de vida mais elevado, e apenas a isso chamaria de justiça;
6) acha, também, que se a média de qualidade de vida (sic) dos pobres subisse, isso não se refletiria em uma metástase sobre o planeta (algo como todos nós 6 bilhões de humanos, ou talvez metade, termos um padrão americanóide ou europeóide de vida).

Agora vem o osso:

as pessoas que têm cultura o bastante para pensar sobre isso já devem estar entre os 5% mais abastados do planeta (sendo muito otimista; quem sabe 1% ou menos?)

Essas pessoas que pensam sobre isso são ainda menos abastadas que as pessoas que criam as leis, as pessoas que as executam e as que julgam. Considerando que todas as leis são criadas para estas pessoas, o mundo continuará insustentável por muito tempo ainda. Considerando que essas pessoas conscientes esperam do fundo do coração que os pobres, algum dia, os alcancem em sua qualidade de vida consumista e material, e considerando também que mesmo os pobres não são educados para buscarem outra coisa -- creio que somos mesmo bem poucos do lado de "cá".


No Brasil, o eixo acima descrito está muito bem representado no eixo São Paulo---Amazonas. O primeiro, não satisfeito em ter de longe o maior parque industrial, se ofende com o projeto da Zona Franca de Manaus, cujo objetivo é desenvolver o maior estado do país sem vender sua madeira.


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A escolha de um curso na universidade pode ser o primeiro passo na definição da visão que alguém abraçará em sua vida.
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As pessoas não sabem relaxar. A questão é: o tempo passa e como o aproveitamos? O que outros pensarão a respeito do que pensamos sobre isso? Como nos encararão, conforme o modo como nós encaramos tudo isso? Devo buscar o que é confiável ou o que é belo? Devemos preferir o imediato ou o duradouro? No fim de alguns anos de dúvidas e angústias existenciais, decide-se viver sem pensar no assunto - mas ainda está lá. Como uma pulga, um micróbio que cochila e torna a acordar, a questão permanece. Tic - tac - tic - tac - e depois? Ou ainda, e agora, durante?

Reparo nos rostos na rua, nos pontos de ônibus. Há vários rostos e preocupações diferentes. Este senhor olha o ônibus que não vem, vira o rosto e contempla as pessoas do outro lado. Passa os olhos rapidamente sobre o ônibus em que me encontro, sem reparar que o observo. Olha novamente para um lado e depois para o outro. O que estará pensando? Rugas retorcem sua testa, mas depois afrouxam. Por um instante ele pensou no tempo. Depois focou a visão no ponto distante da rua de onde seu ônibus deveria surgir, e por uma fração de segundo o tempo não o incomodou. Uma senhora espera pacientemente sua lotação. Carrega uma sombrinha para proteger-se do sol, enquanto seu olhar impenetrável pensa milhares de idéias veladas. Não parece tão preocupada como o outro rapaz, não tem aqueles instantes de dúvida e hesitação. Talvez já os tenha tido em demasia, e agora talvez quase nada a perturbe. Do outro lado uma garota tenta se distrair enquanto espera na sombra. Rói as unhas como reflexo de que algo precisa acontecer - não faz sentido que o tempo passe enquanto nosso corpo apenas sinta, estático - é o que ela parece pensar. Se é que pensa. Talvez seu corpo seja ainda apenas um veículo das leis naturais de reprodução, prazer e dor - talvez ela viva como parecem viver as massas quando vistas de longe: sem essa dúvida que nos assola, a nós pensadores.

Quando essa questão vem como uma visagem - o sentido da vida, talvez seja esse o seu nome - há muito pouco a fazer. Talvez filosofar, talvez esquecer. A maioria toma o caminho intermediário - alguns compram, outros fumam, muitos bebem, vários vão à igreja e buscam satisfazer o incômodo da Questão. Ainda assim, no final, Ela estará lá nos aguardando. E nos receberá conforme tivermos feito de nós a nossa vida, sem nos punir, sem nos julgar, sem nos negar. E nós, quando enxergarmos isso, abriremos mão das regras e entraves que construímos na busca de nossas respostas.





E o inefável? Momento? Eternidade?




Pensar, verbo intransitivo

Quando o ser humano toma consciência de estar cercado por inúmeros outros seres pensantes, diz-se que adquiriu um status social. Faz parte da sociedade de pessoas, não é um autista nem um louco. Contudo, apenas depois de um certo tempo é que aprendemos a definir as perguntas mais universais, e depois que as formulamos, passamos a separar as pessoas entre as que já se depararam com as mesmas questões, e as que ainda não chegaram lá. Que questões são essas?

À que hoje ocupa o primeiro plano da minha mente eu chamaria "e daí?". Consiste em perceber que o mundo é injusto, que não existe um Deus ou Papai Noel para nos ajudar, que as pessoas são em geral egoístas, ainda que às vezes altruístas, que mesmo os amigos um dia se vão e que toda a política, a mídia e o sistema estão aí apenas para nos enganar e nos fazer viver no pior dos mundos possíveis (exceto, talvez, para quem manda, mas mesmo isso é discutível).










Há certas questões que não devem ser postas, dizem - Um gay pensa: será que virei um viado? Como um político talvez pense: será que esse tanto já é demais?

Friday, August 24, 2007

Riquezas relativas

Quando alguém diz: tal coisa é boa, ou tal coisa é ótima, está aí inscrito um juízo de valor nem tanto sobre esta coisa em particular, mas principalmente sobre a pessoa que formula o juízo. Dizer que o sistema público de transporte é horrível depende em grande parte do quanto a pessoa tem obrigação de usá-lo para sobreviver.

Quando alguém diz: tal coisa é a melhor de sua categoria, pode-se interpretar esta frase e agir de acordo com ela de duas maneiras diferentes: ou as demais coisas estão irremediavelmente para trás, distantes demais da melhor em qualidade, que sequer vale a pena continuar a considerá-las (costuma acontecer com quem pode pagar mais pelo melhor); ou as demais coisas de sua categoria também são boas, e visto que são bem mais acessíveis, passam a ser quase tão boas quanto aquela coisa sob análise, que embora um pouco melhor, nem sempre pode ser alcançada. Acontece com quem precisa da quantidade para satisfazer-se. Embora saibamos que quantidade não é qualidade.

A questão é cabeluda.

Quero entender por que nossa nação é tão medíocre

As pessoas são alegres e extrovertidas, ou assim acreditam ser. A alegria do brasileiro não é uma paz harmoniosa como a dos orientais, nem uma alegria calma como a que já vi apenas raramente, mas uma alegria rápida, agitada e impaciente - é uma alegria que parece não existir sempre, mas ser forçada a existir em alguns estreitos intervalos. É um falar sempre, com extravagante e transbordante emoção, como que represada em alguma outra fonte e que jorra então "espontânea", incontrolada, sem rumo. A alegria do brasileiro é uma negação de outra coisa - talvez de uma tranqüilidade de espírito, de saber calar-se, de saber ouvir.

O silêncio vale ouro.

A vida adulta precisa ser, na aparência, apenas a negação dos sonhos da juventude.

Mas a vida adulta deve ser (assim é imposto), na prática, a execução tardia destes mesmos sonhos.

Isso deve ser o sinal de uma humanidade velha demais, cujos sábios usurpadores já tiveram tempo de desenvolver uma ciência da usurpação da vida - cuja base consiste em religião, esperança e circo. Pão, naturalmente, mas mesmo o pão pode ser negado a boa parte da massa humana (do todo, bruto, amorfo que é a soma de todas as diferenças, de todas as outrora abundantes individualidades) - o pão pode ser negado a tanta gente porque já está montada uma estrutura de controle densa, complexa e eficaz, que vem acontecendo há milênios, e se firmou nos últimos cinqüenta anos numa escala sem precedentes.

O que acontece ao mundo? Freud se perguntou isso provavelmente com muito mais propriedade que Sócrates, Platão ou Aristóteles. Porque viu um mundo já mais louco, no pior sentido da palavra. Não louco no sentido de original, ousado, autêntico, criativo, solto, disperso, mas louco no sentido inverso, de viciado, corroído, aplainado, empobrecido, burro. Talvez o mundo sempre tenha sido igualmente estúpido, pois os homens são naturalmente estúpidos, mas não são naturalmente burros. Podem ser brutos e violentos, querer o imediato e ignorar as conseqüências, mas existe uma sabedoria natural em todo organismo em harmonia com sua natureza, seu meio, seus genes, sua herança genética e comportamental. Existe uma sabedoria do corpo, da parte de nosso cérebro que ocupa 99% do volume, que resulta de 99,999% de nossa evolução biológica, mas que hoje os cientistas sociais são adestrados para repetir que significam apenas a menor parte de nossa vida mental e social.

O mundo hoje perdeu este vínculo entre criatura e origem, somos todos aleijados. Uma criança ribeirinha já nasce sabendo pescar. Uma criança numa cidade-estado grega aprendia a lutar e a pensar - as duas armas mais perigosas. Mas o ideal de futuro é "toda criança na escola". Quanto terror isso nos trará no futuro?

Não podemos hoje pensar, porque não há tempo. Precisamos correr para tudo: com o trabalho, com a produção, com os estudos, para o ônibus ou para tirar o carro da oficina ou tirar a carteira ou a senha para entrar na fila ou para pagar a prestação ou penhorar ou despenhorar o relógio de alguém que raramente temos tempo para sentar lado a lado, em silêncio, e pensar. Não sentar para conversar, ou beber, ou assistir TV. Sentar-se e compartilhar do silêncio de quem entende tudo sem precisar de palavras, de sons, apenas do semblante calmo e reto, das mágoas e feridas abertas e as cicatrizadas. Nosso tempo escasso não deixa essas feridas cicatrizarem. Quando não é o terror, a violência, o medo generalizado, ou o ódio de quem não tem sequer o essencial, é a diversão, o êxtase do carnaval ou do futebol - este toda semana, todo dia. Sempre estamos comemorando algo e lamentando algo mais. Alimentam nossos instintos mais extremos, o ódio e a paixão, sucessivamente, até que nos reste apenas a casca, o córtex cerebral, que é instado a produzir e desenvolver e crescer e multiplicar e armazenar e construir e aumentar e produzir mais, até... Não há tempo para o equilíbrio, para o Tao.

Não sei se o Tao requer tempo, mas o silêncio ajuda. Talvez a descobri-lo, talvez a mantê-lo. Chamem-me louco, mas deixem-me calar.

É isto então, a vida? Trabalhar para morrer? Divertir-se para tolerar? Mas tolerar o quê? Se apenas minha vida fosse por vezes um martírio, eu me calaria, mas meus olhos vêem, não posso negá-los. É a vida apenas correr a rua apressado para chegar do outro lado, com tanta pressa que sequer se olha a velocidade e a distância dos carros que se aproximam? Quantas vezes posso atravessar andando, ouvindo os pássaros, contando as estrelas... Até de olhos fechados, se quiser? Contanto que se olhe antes. Contanto que se olhe, e veja.

Podemos percorrer uma distância cada vez maior de olhos fechados, mas é preciso treino. E não temos tempo para treinar, porque estamos correndo atravessando a rua, com medo dos carros que deveríamos já ter olhado e visto, visto e compreendido.

Como são patéticas as pessoas que correm para atravessar a rua sem ver que não há carros. Aprenderam a atravessar assim, e não conseguem largar um hábito. Prendem-se aos hábitos, talvez porque já não tenham tanta fé em Deus, ou na polícia, ou na política, quem sabe mesmo na própria vida, nos próprios sentidos, na própria razão. Acham que devem confiar mais no que outros dizem do que naquilo que sentem com os próprios órgãos. Não agir assim para estes é loucura, desprezo ao estabelecido, às instituições, e acham mais importante fazer parte do que ser. Esperam que haja algo melhor do outro lado, como quem, definitivamente, desistiu daqui. Preferem desistir, por isso atravessam correndo.

Eu não. Eu quero parar e respirar o ar com todos os meus alvéolos, a cada passo, quando eu quiser. E que se foda quem for contrário a isso. Às vezes corremos, mas apenas por vontade própria. Por que Eu decidi que correrei, e pelos motivos que calmamente me expus e me convenci, racional e emotivamente, sen-sa-ta-men-te. Não correndo louco e esbaforido, com medo de errar e, por isso mesmo, sem tempo para aprender como acertar. Ou, quem sabe, dando uma corridinha apenas para dizer que se exercita.

Que nação de tolos! Ou nações! Quanta tolice! Todos querem prazer imediato, conforto máximo, esforço mínimo, tudo ou nada, superlativos! Poucos são os que sabem misturar conforto e esforço, prazer e utilidade, espontaneidade e planejamento, diversão e construção, felicidade e liberdade, de modo a aproveitar a vida seja como for. Estamos sempre pondo a culpa na falta de algo - eu seria mais feliz SE tivesse dinheiro, SE tivesse um carro mais novo, uma casa melhor, uma esposa mais silenciosa. Vivemos num conjunto de regras tão antigo, tão incompreensível; talvez a herança múltipla de diversos códigos cujas bases se perderam ao longo dos séculos, e cujo resultado é um lodaçal de zeros, uma farsa tão intrincada e suja que não sabemos se persiste por falta de perseverança ou de honestidade. Com certeza de ambos. Seguimos um conjunto de leis tão arbitrário e injusto que é natural que sequer possamos culpá-las, já que apesar delas todo o restante está podre e condenado até as raízes.

Gostaria de dizer que vivemos numa selva, mas seria uma demonstração de desconhecimento e desrespeito com esta entidade tão antiga e jovial. Vivemos não numa selva, mas numa sala escura, apertada e quente, onde o bafo de um prejudica a defecação do próximo, e assim estamos todos no escuro, desinteressados das verdadeiras questões, de qualquer faísca que nos possa iluminar, talvez porque tenhamos medo do incêndio que poderia causar num mundo já tão oleoso. Até as máximas populares perderam a sabedoria que guardaram por milênios - um exemplo: religião não se discute. Discutir foi sinonimizado com brigar. Onde está o diálogo sábio, o jogo de definições e dedução, a conversa intrigante, inteligente, desafiadora? A maioria das pessoas sequer sabe do que falo. Consideram orientais apenas como um bando de idiotas que não tem a nossa "ginga" tropical. E como dizemos isso com o peito estufado!

Já sonhei com um bando de pessoas que soubesse acrescentar seus respectivos e múltiplos talentos na criação de algo consistente e útil. Não porque assim dá mais dinheiro, ou porque assim se produz mais, mas apenas porque é belo usar a razão em conjunto. Mas nunca encontrei tais pessoas, a não ser isoladamente, sub-aproveitadas, tanto quanto eu mesmo lamento ter crescido e vivido até hoje neste mesmo mundo, que soube dispensar tudo que trago de melhor, apenas porque isso não interessa. Interessam apenas meus títulos e minha "virtude". Interessa que eu seja trabalhador e honesto. Interessa que eu seja pacato e ordeiro, civilizado e que consuma o bastante. Consuma e deixem consumir! Ninguém valoriza aquele que é diferente, chamam-no logo de louco, isolando-o num compartimento marcado para que possam continuar com sua insípida euforia de adolescentes tardios. Ninguém valoriza aquele que traz uma maneira única e original de ver as coisas - não perguntam a ele "oh! como sua opinião é distinta! Posso compreendê-la melhor?" ou "Por que você pensa tão diferente de mim? É certo que ambos podemos desenvolver bastante nossa visão de mundo se ambos tentarmos entender o que o outro acredita."

Mas não, não se quer entender. O que se quer é apenas sorrir, demonstrar que se é o mais jovial e divertido do ambiente em que se encontra, que nada parece lhe preocupar, que tudo isso já foi visto e entendido, e a única coisa que nos resta é sentarmos jovialmente e nos drogar até a morte, seja de cocaína, televisão ou igreja.
Quando não é isso reclama-se em voz alta do que ninguém presente tem a menor condição de resolver ou de contribuir. Reclama-se em voz alta o que se passa no coração, sem consideração com os demais, se eles querem ou não ouvir tal balbúrdia. O pensamento é uma coisa muito frágil, muito sutil e fugaz - é no mínimo um desperdício maculá-lo com o som inadequado de nossas vozes. A voz foi feita sendo usada, é claro, mas mesmo entre os animais existe economia no uso deste recurso. Nós, que estamos sugando o planeta e vamos sugá-lo até que fique roxo e finalmente adoeça gravemente, falamos tão alto e inutilmente como tudo o mais que consumimos e desperdiçamos, apenas porque acreditamos que nossos recursos são ilimitados - em outras palavras, que somos o máximo!

[continua...]

Saturday, August 18, 2007

Da época em que guaraná tinha rolha e sua avó era gostosa

O bloqueio. O muro sobre o qual precisamos pular para chegar do outro lado. Mas que muro é este? A um certo momento não podemos falar o que pensamos, sob a certeza de que não atingiremos, assim, nossos objetivos. Então surge um bloqueio, porque instantes antes tentávamos nos concentrar num determinado aspecto, até então não percebido, da intrincada teia da realidade.

O vento sopra sobre este muro, e traz palavras que carregam a vida de... sentido? Será? Duvidar é sempre a melhor resposta. Claro que, com o tempo, você aprende do que duvidar e do que duvidar menos, e isto é o conhecimento. Para subir o muro e atravessá-lo é preciso um conhecimento do muro, como qualquer escalador pode testemunhar.

O que é o muro eu explico depois. Por hora direi que o vento traz, sim, algum sentido. Talvez seja melhor do que se não ventasse. Isso se fosse quente, etc. Então, o mundo tem um sentido. Uns chamam de realidade, outros de Gaia, alguns de Deus e os filósofos escrevem tratados criando sistemas para explicar o que no começo era até simples.

Não é preciso "ler os filósofos". Abomino a idéia de um curso de filosofia. Deve-se ler as coisas em ordem, e só. Cada pessoa tem uma ordem diferente. Só devemos ler o que gostamos. Depois dos romances policiais, contos de terror, histórias em quadrinhos, não necessariamente nessa ordem, Alguns filósofos, aliás vários. E também os grandes poetas, os donos da oratória precisa, humana e profunda, Dostoievski, O Vermelho e o Negro, Márquez. Há filósofos que podem ter mudado o pensamento de uma época para serem depois refutados tão brilhantemente séculos depois, que o golpe não chega a ser uma prova em contrário, mas apenas um enxotamento ao descrédito e desinteresse.

O muro é justamente constituído desse tipo de coisa. Informação demais. Só há uma coisa importante sobre a qual escrever, e o I Ching, a Bíblia, Martin Buber e Raul Seixas já fizeram isso muito bem - ainda que cada um à sua maneira - o resto é entretenimento. O muro, para ser ao menos orgânico, deve se constituir de raízes e lianas confusas, emaranhadas, mas podáveis. Um terçado intelectual dá conta do recado, mas para construí-lo é preciso ler os livros certos. Ciência e Filosofia. Religião apenas confunde, camufla as verdadeiras perguntas, esconde e ofende o espírito humano natural, inquieto e curioso, insaciável. De qualquer forma, ninguém chega a respostas, não existem respostas, apenas a religião dá o conforto que as mentes menos vigorosas acham mais cômodo. E quando pensamos que meio mundo segue bíblias inatacáveis, bem, a conversa muda de figura.

O cerne do problema, na minha opinião, está no que chamamos de realidade. Para ser categórico, ou talvez didático, imaginemos três tipos de pensamento: 1) aquele no qual a realidade é matéria, pode ser sentida, é compartilhada por todos os humanos dotados de razão, e mesmo que existam bruxas, por hora é o menor dos nossos problemas, 2) aquele no qual existe uma realidade invisível que é tão ou mais importante que a realidade concebida em (1), e 3) aquele no qual o nada e a realidade são a mesma coisa, que tanto faz, que não existe sentido - a intoxicação filosófica da modernidade, chamada niilismo. Observo com tristeza que (3) tem se tornado prática corriqueira entre a classe "intelectualizada" deste país. Russell, um dos maiores matemáticos e filósofos do século XX, escreveu a esse respeito em seu ensaio Sobre o cinismo da juventude (ou qualquer coisa parecida), publicado no livro O Elogio ao Ócio. Ali o pensador demonstra como uma sociedade idealizada (e porque mais trabalharíamos, se não para melhorar o mundo em direção a algum ideal?) só pode ser justa e agradável se enveredarmos pelo pensamento, ou antes sentimento, explicado em (1).

Discordo do filósofo que disse que qualquer filosofia é ou pode ser tão boa quanto qualquer outra. Como espécie, já existiu um imperativo biológico que nos aconselhava preservar-nos. Como intelectuais, a disputa dos memes só pode ser enfrentada com um tipo de raciocínio positivo, superior, melhor, do que seja entendido como necessidade humana. Não o consumo, a propaganda, a economia. Sim os ruídos do corpo, a sabedoria no consumo do tempo, o lazer. Nascemos para nos divertir, mas trabalhamos para pagar um carro por preguiça de pegar ônibus. Estranha essa sociedade e seus muros.

Só podemos curar a doença de Gaia, curar nossa própria insanidade crescente, quando a tratarmos como um super-organismo biológico, do qual a biosfera e o resto, nós e nossas ações somos parte. Principalmente quando o nosso muro, aquele do início do texto, puder ser devidamente podado. Somos a geração da informação, e fileiras e outras fileiras de jovens não acessam nada disso. A maioria, por não poder; os que podem não querem; e os que querem são justamente aqueles que agravam a doença de Gaia. Realmente, a bondade e a esperança, o pensamento otimista, só são comuns – são até mais naturais - entre os menos favorecidos. Vejo uns poucos destes que têm boas intenções, e quem sabe sua origem social poderia torná-los mais sensíveis ao que deveria ser feito - mas raramente têm acesso à posição em que podem fazer algo. Ou são barrados ou ficam na porta, algo boquiabertos, sem saber o que fazer ou falar.

Senão nas construções de nosso saber, busquemos qualidade em sua fonte. Senão nos artigos, livros e idéias publicadas, na natureza da qual extraímos o que sabemos. O muro só é transposto quando olhamos para dentro, e isso vale tanto para o indivíduo como para a espécie. Mas estamos ainda à espera da parteira para dar à luz esta necessidade moral.

Algumas pessoas nascem bem e vivem a falar mal do mundo, como se estudassem para resolver os problemas dos outros antes dos seus próprios. E existem pessoas que nascem "mal" e estão por aí, sempre a sorrir. Pra que tanta filosofia, afinal?

Rodrigo de Loyola Dias
Manaus,
17 de agosto de 2007, 21:34h, 28,3ºC, 77% UMIDADE RELATIVA DO AR
Revisão na manhã seguinte, 12:25h, 29,3ºC, 71% URA

Wednesday, August 15, 2007

Como prefácio ao próximo texto

"Nós mudamos de método. Tornamo-nos mais modestos em todas as coisas. Já não fazemos descender o homem do espírito, da divindade, colocamo-lo entre os animais. No nosso conceito é o animal mais forte, porque é o mais astuto: a sua espiritualidade é uma conseqüência disso. Por outro lado defendemo-nos contra uma vaidade que aqui também quereria levantar a voz: como se o homem tivesse sido o grande pensamento último da evolução animal. Não é de modo algum a coroa da criação; cada ser encontra-se junto a ele no mesmo grau de perfeição... E, pretendendo isto, vamos demasiado longe; o homem é, relativamente, o mais deficiente dos animais, o mais enfermiço, o que se extraviou dos seus instintos mais perigosamente, certo de que, com tudo isto, é também o animal "mais interessante!" - No que respeita aos animais, Descartes foi o primeiro que teve o admirável atrevimento de considerar o homem como "máquina": toda a nossa fisiologia se esforça em demonstrar essa proposição. Além do que, logicamente, não pomos já o homem de parte, como fazia Descartes: o que se concebe hoje do homem não vai mais além da sua concepção "maquinal". Noutro tempo concedia-se ao homem "o livre-arbítrio", como um dote de ordem superior: na atualidade arrebatamo-lhes até a vontade, no sentido de que já não é permitido entender por isso uma faculdade. A antiga palavra "vontade" não serve senão para designar uma resultante, uma espécie de reação individual, que necessariamente segue uma série de incentivos em parte contraditórios, em parte concordantes; - a vontade não "opera", não "move"... Antes via-se na consciência do homem, ou "espírito", a prova da sua origem mais elevada, da sua divindade; para "aperfeiçoar" o homem aconselhou-se-lhe a reconcentrar os seus sentidos em si mesmo, à maneira de tartaruga, a suprimir as relações com o mundo terrestre, a desprender-se do invólucro mortal: então nada ficava dele senão o essencial, o "espírito puro". Nisto também modificamos o nosso modo de pensar. A consciência, o "espírito" parecem-nos ser precisamente os sintomas de uma relativa imperfeição do organismo, como um ensaio, um tentame, um equívoco, um trabalho em que se gasta inutilmente muita força nervosa; - negamos que uma coisa qualquer se possa fazer com perfeição enquanto se executa ainda conscientemente. O "espírito puro" é uma pura tolice: se abstrairmos do sistema nervoso e dos sentidos o "invólucro mortal", "enganamo-nos no nosso cálculo", nada mais!..."

- Nietzsche, O Anticristo, XIV.

Das Gersianas ao estômago

A civilização é o processo pelo qual subtraímos nossas habilidades naturais em troca de liberdade.

De um lado da escala temos povos nômades, ágrafos, incapazes de fabricar ferramentas de metal ou de resistir por muito tempo às pressões que nossa civilização numerosa e melhor equipada é capaz de exercer.

Do outro lado estamos nós, essa civilização que herdou conhecimentos de povos tão distintos quanto os gregos, árabes, chineses, africanos e até mesmo os nômades do parágrafo anterior. Somos a sociedade da cultura múltipla, escrita, da transmissão impessoal de cultura.

Todos estamos igualmente bem adaptados aos nossos diferentes ambientes, é o que parece. O nômade planta sua macaxeira, come sua caça, seu peixe; o civilizado bate cartão, aperta parafusos, escreve memorandos. O primeiro volta à maloca e encontra sua família, sua tribo, seu mundo. O último volta pra casa e encontra esposa e filhos, a TV ligada, vizinhos e estranhos. O fato do primeiro existir assim há milhões de anos (antes mesmo do Homo sapiens, podemos abstrair) e o último ter cerca de dez mil anos, esse fato parece não chocar ninguém. E daí? me perguntam. Não estamos muito melhor agora? Dependendo de onde você nasceu, sim. Dependendo, não. Dado o grau de miséria, superpopulação, doenças, fome, insalubridades e fala de perspectivas em que vive parte considerável da humanidade, o nômade é um nobre. Tem terra para caçar e rios limpos onde beber, banhar-se e pescar. Tem todas as riquezas da natureza ao seu alcance, de onde pode tirar as paredes e o teto de sua casa, as cordas e fibras de suas roupas e ferramentas, a comida de sua família, a isca para o peixe, os cantos das aves para seus ouvidos, exemplos para a sua sabedoria.

O homem urbano tem o quê? Um governo que o protege. O contrato social foi firmado há muito tempo por nossos antepassados distantes, e hoje não temos mais como decliná-lo, mesmo se quiséssemos. Sabedor disso, o governo nos protege como bem entende, ou melhor, mal. Tudo isso, bem entendido, depende de onde você nasceu. Se você é filho de um proletário, ou um desempregado, não estará lendo isso, estará aprendendo que a polícia bate primeiro e pergunta depois. Mas se suas roupas mostram sua boa origem, a conversa é outra, porque você pode pagar por esse "conforto".

Já ouvi dizer que é a Lei de Gérson que emperra o país. Diz-se isso muito na mídia, e entre as bocas dos abastados. Dizem ainda que se as pessoas não fizessem questão de levar vantagem em tudo, o país finalmente iria "para a frente" (onde, para cada um de nós, é este "para a frente"?).

Não sei, mas parece que a Lei de Gérson é algo como uma constante humana, um instinto que floresce sempre que não há um governo super-protetor. Na Europa ninguém é assim, dizem, ou poucos são, mas não será porque lá eles acabaram com a pobreza? Devem ter exterminado seus pobres, ou os deportaram ou esconderam; ou os enriqueceram, exportando a pobreza através da colonização física e cultural de meio mundo, conseguindo acordos comerciais predatórios, comprando ouro e minérios a preço de banana, café a preço de sal, alumínio a preço de bauxita, açúcar a preço de nada. Assim fica fácil não ver a Lei de Gérson. Mas e aqui, ao sul do Equador? Ainda precisamos comer, e ainda nos sugam e nos montam como há quinhentos anos; parece que vai melhorar?

Quando o chimpanzé mais forte consegue uma comida muito boa, ele usa sua força para impedir que os outros comam, e assim mantém sua força, sua posição. A um cacique é permitido ter três esposas, desde que ele possa alimentá-las. Se coloco ambos, animal chimpanzé e animal humano, lado a lado, é porque os dois repetem hábitos (supra-)milenares. Já vejo a birra dos jovens (e velhos) estudantes das ciências humanas: o humano é muito diferente do animal! Temos cultura! Temos livre-arbítrio! Ora, poder taxar de mal o abuso de poder não o elimina. Os donos do mundo, do petróleo, da televisão, das construtoras, têm tantas mulheres (ou homens) quanto desejam, e usam sua força para impedir que os outros cresçam e os ameacem. Estamos no ramo evolutivo dos grandes macacos, e toda nossa cultura nada mais é que a descrição de tudo que evoluiu aí. Ou seja, somos instinto. Usamos da cultura para nos comunicar, para viabilizar os instintos que a civilização afasta como medida de auto-proteção, ou apenas para divertir e satisfazer esse mesmo instinto que é, em grande parte, lúdico.

Mas voltando à Lei de Gérson: talvez seja a descrição de uma parte da nossa natureza, daquela parte que busca sobreviver em meio aos mais fortes, que precisa tirar vantagem sob o risco de não lhe restar nada.

Aprende-se muito com isso. Aprendemos, em algum ponto da vida, que devemos ser espertos o bastante para sobreviver. Pois os outros querem ser espertos; nós precisamos ser mais espertos.

Quando o Governo de um país favorece os ricos de dentro e de fora e espezinha os pobres que o carregam nas costas, a Lei de Gérson é apenas Lei da Sobrevivência. Não se trata de querer levar vantagem em tudo, mas de beneficiar-se daqueles que parecem já mais beneficiados que você. É claro que, aos olhos desses já beneficiados, todo pobre acaba se assemelhando a alguém que irá querer roubá-lo. Conheci muitos pobres que assustariam e afastariam meus amigos abastados, que vivem em seu mundo de berço sem fazer muita questão de pularem as cercas. Essas pessoas que eu conheci inúmeras vezes se beneficiaram, e se mostraram extremamente gratas, apenas em troca de uma conversação agradável. Até disso precisam. Conversa distinta, contato com um mundo novo, conhecimento. E sequer isso se tem o costume de dar.

As habilidades naturais dos povos nômades não eram só caçar e pescar. Sabiam, e ainda sabem, olhar um homem nos olhos e definir logo de que estirpe é. Esses povos dominam melhor a natureza do homem, pois ainda vivem dentro dela. Não vêem televisão todos os dias, não seguem a moda de decoração da novela, nem compram calças ou óculos iguais aos do filme. Têm ainda uma riqueza imensa para perder tempo com o consumo. Sabem definir as regras do jogo da esperteza, algo que fere a índole sensível dessa gentalha acostumada a viver de favores, ostentação e conforto. Apenas por isso a negociação entre governo e índios é delicada. Fôssemos todos sábios, daquele tipo oriental que vive talvez dentro de um barril, e nosso interesse seria mesmo a conservação, e não é difícil admitir que Terras Indígenas sobre toda a Amazônia, com uma política firme de fiscalização do que sai delas, seria a melhor forma de conservar o que apenas apregoamos.

Defende-se, corrobora-se, matam e morrem por uma civilização do privilégio de poucos, do conforto e da liberdade do petróleo, enquanto a maioria se vira como pode. Viva o Rei! Viva o Rei! Viva o Rei! Eu é que vou andando, que minha barriga já ronca...

Monday, August 06, 2007

Eles conseguiram acabar com o movimento hippie?

Aceito o fato de que os hippies nunca foram maioria. Nos anos 60, muito antes de soarem os alarmes do aquecimento global, eles já procuravam a comunhão do homem com a natureza e a substituição de valores morais impostos por outros, digamos, mais naturais. O movimento hippie não era o socialismo, nem o capitalismo. O que ele tentou foi justamente resgatar o ser humano das convulsões de suas próprias idéias, desses mares tempestuosos de sistemas teóricos falíveis e falidos, usando como bússola o que a natureza ­- a mãe da sabedoria - nos deu: nossos instintos.

Não sei bem o que houve de lá para cá. A televisão cresceu para se tornar a "primeira natureza" do homem moderno; derrubaram o socialismo, e com ele a esperança de um outro sistema; forjaram uma ciência humana onde o homem é apenas um produto do meio, moldável e adaptável a qualquer meio - ignorando o atrito entre esse meio e nossa natureza biológica original, imutável e imortal. Aquela natureza que os hippies tentaram recuperar. Asfaltaram o mundo. Impermeabilizaram o que era uno e vivo, tanto que as crianças de hoje desconhecem a natureza, chegando a temê-la, e assim já nascem talhadas a este mundo corrompido, incapazes de perceberem o que estamos perdendo com a degradação ambiental.

Hoje, que o mundo é um lugar mais populoso, mais sujo e violento que nos anos 60, hoje que somos mais informados, e teoricamente mais livres, ninguém mais se revolta, virtualmente ninguém desafia ou foge do sistema, não cuspimos na sua cara nem tentamos criar o novo.

A natureza humana resiste encurralada, assustada, na penumbra. Pergunta a si mesma se um dia será livre de novo, livre da imposição do consumo e da moda, da valorização do indivíduo pela sua roupa, carro e celular, livre das mentiras que aceitamos, dos impostos que pagamos, das máquinas, jornadas de trabalho, do calendário. Era isso que os hippies buscavam, e nunca estivemos tão distantes disso tudo quanto hoje. Não faz sentido que abandonemos a busca; temos um longo caminho de volta até lá atrás, onde nos perdemos, e aí sim, poderemos pensar em seguir adiante.

Porque aqui, aqui é um beco sem saída.




A sociologia deveria ser vista como uma forma de medicina, onde o mínimo de intervenção corresponde ao máximo de eficiência. Afinal, a sociedade nada mais é que um super-organismo, e falar de bem e mal, de moral, certo e errado, do ponto de vista social, é tão exato quanto definir - para o organismo individual - boa e má saúde.
A base de ambos, sociologia e medicina, se assenta sobre a biologia. Aí estão os parâmetros do que é o homem.

A Paixão Segundo Mim

Toda lembrança vista de longe tem algo de belo. Mas o que é a beleza, senão aquilo que nos desperta a paixão? E o que é a paixão? Quem a conhece pode tentar defini-la, mas só quem ainda não caiu em sua doce teia tentaria efetivamente fazê-lo.

Sendo impossível defini-la, posso apenas tentar recriar a atmosfera que a envolve, o substrato no qual suas lembranças gentilmente repousam:

> Estando o Sol alto e inclemente nos céus, ou dormente sob a linha perfumada do horizonte, permitindo-me apreciar a melodia geométrica das estrelas, o tom da paixão é dado pela pureza da atmosfera. A esta somam-se a inquietude de um espírito jovem e o tempo jamais medido, mal sentido, e só ligeiramente percebido em suas consonâncias astronômicas. O tempo distendido em capítulos nos quais meus movimentos correm suaves e precisos, inconscientes e sem peso, como planetas ao redor do abismo. A paixão se esconde nos detalhes e se escancara nas novidades.

Sob uma cachoeira crescem pequenas plantas, frágeis e inusitadas como algas, que guardarão de mim a lembrança de um bicho de pêlo à procura de um destino. Rio acima o desconhecido se revela: pessoas, tribos e pontos-de-vista. As cores do crepúsculo e principalmente a distância conferem à razão um pretexto para o repouso.

Um dia pedalei vários quilômetros para ver sobre mim o vôo de regresso de infinitos japiins para os seus ninhos. Nessa época eu ainda não questionava a utilidade das coisas; bastava-me que ardessem de um brilho próprio e atraente, único e real. Nessa época a liberdade era tudo, e o mundo, infinito.

Outro dia vi uma senhora tocando seu acordeón num casebre pouco iluminado, quando a tarde aos poucos se extinguia, e os acordes ocupavam o brilho pouco a pouco preenchido pelas sombras.

Sempre que o universo se apresentou aleatório eu tentei extrair daí necessidade, como nuvens que passam, companheiras e risonhas, ou como as folhas do açaí que reverberam o esplendor da tarde e nos prometem o seu vinho.

Outra vez foi a noite e a solidão das estrelas, refletindo do alto nossos egos ínfimos e desconcertados, perplexos ante a vastidão do nada. Mas ao meu redor a existência ainda pulsava, nas fogueiras do outro lado do rio, numa música que se fazia ouvir do outro lado da cidade, no brilho majestoso e pálido da Via Láctea num céu de cobalto, e principalmente na certeza de que minha jornada não é vã, nem solitária.

Mesmo naquela escuridão minha alma permanecia acesa; em busca de certezas, em busca de respostas, em busca de perguntas; em busca.

Porém, de todas essas buscas, nada se compara a um certo tom de azul de um céu translúcido numa manhã qualquer, acompanhado da respiração antiga da maior floresta do mundo e seus mistérios, suas larvas e aromas, sua bondade, perfeição e força - ah! que a história acabará por enterrar. Ainda assim, em mim restará a lembrança quente e sem nome...

O rústico e o Messias no fim dos tempos

Apreciamos a vivacidade e a energia desse povo moreno e rústico, enquanto deixamos a preguiça crescer em sedentarismo, e definhamos, rememorando o bom passado e acreditando em uma vida pós-morte mais completa.

E se... ela não vier?

Esse é o maior dos dogmas, comum entre cristãos, islâmicos e judeus. Não por coincidência, as religiões predominantes no império ocidental, capitalista e modernizador.

Quando acordamos e vemos que o Deus da Igreja está mais perto do Inferno da História, torna-se possível entender também que o progresso traz em si muito desse cheiro de enxofre.

"Bons selvagens" pode ter sido uma alcunha exagerada, mas enquanto perspectiva não vejo outra direção.

Porém, só se pode ver essa realidade depois de um certo tempo fora desse sistema, fora da urbe capitalista, da metrópole. Só assim o corpo se reabilita, e os sentidos - afastados da vibração frenética de Hertz elétricos - relembra-se do ritmo ancestral, onde os instintos, as sensações e emoções evoluíram em harmonia, e ainda hoje o vemos no corpo forte e mente desanuviada dos rústicos e bons nativos que ainda restam.

Eles não têm educação - argumenta-se. A "educação" (ou conjunto de aprendizados formais para adaptar as massas à vida em metrópole) não tem nada a ver com a sabedoria - esta sim, reconhecendo finalmente o valor da tradição, da adaptação da espécie ao ambiente, do respeito ao corpo, à vida, à realidade, à natureza, muito aquém das especulações espiritualistas, apenas exigindo os valores mais simples, fundamentais e urgentes.

Por mais linhas que escreva, a batalha parece perdida. O bom tom manda não discutirmos religião, a sabãodoria prega a tradição pela tradição (num mundo inédito) e todos querem mais Volts, dólares e Ampères para não precisarem se mexer. Votam em deputados velhos e corrompidos e jamais se rebelam, por economia de energia, mas desperdiçam em todos os níveis, da lata de alumínio à garrafa plástica, do stand by à lâmpada incandescente e à janela pequena, das fotos para relembrar um passado que será logo decrepitude. O tempo é rápido, os tempos são outros, o tempo voa. Mas não paramos os ponteiros nem os esquecemos. Vamos ao fundo cantando vivas ao Senhor ou ao Mercado, e exercitando nossa inteligência apenas incipiente em cálculos inúteis, estéreis - quando tanto. Se vou ao fundo, também vou cantando, mas não a fantasmas maquiados ou a vertebrados gasosos, e sim como os 300 de Esparta que morreram fazendo o que faziam melhor - lutando.

Nossos dias como espécie estão contados, mas podem ser tão breves como uma hecatombe nuclear, ou tão longos como a meia-vida do Sol, ou o colapso térmico de um universo velho, bilhões de anos no porvir. Nada disso importa. O que importa é como respiramos, comemos e nos divertimos, como economizamos ao converter ouro em alegria, como deixaremos para os outros as belezas gratuitas, quanto lixo deixaremos para trás.

Se esse conhecimento tivesse a força de um Messias, quem sabe estaríamos melhor.