Thursday, March 10, 2011

Natureza em 2 atos

A Natureza

Estamos perdidos numa escuridão tremenda, como a noite que cai na escureza de matas distantes, ainda que pontilhada de bilhões de pequenos sóis, a nos olhar e piscar, como se cientes de que nós somos eles, e que eles são nós.

E afora, além distante de tudo, o mais distante, quantos outros sóis e semisóis e arcos de tempos e semitempos e hiatos de nuvens e seminuvens. Quantas coisas e semicoisas haverão de se repetir mais e mais além da compreensão?

E do pó das estrelas formaram-se elementos, dos elementos substâncias, das substâncias padrões de comportamento, dos padrões, replicação. Da replicação surgiu a vida.

E em quantas estrelas haverão de surgir outras vidas, de outros padrões substâncias elementos? Em quantas semiestrelas, quantas semividas? E fora de tudo que se há para ver, antes do início do tempo e depois do seu fim, outras explosões semelhantes - ou não - se repetem com novos elementos substâncias padrões de comportamento, replicação e vida.

Essa é a Lei. Sempre foi assim. Sempre será assim. Há início e fim apenas das fases que podemos enxergar.


Comportamento

Mística lira de dez mil cordas, mãe de todas as vidas. Sua música é feita de cores, formas, sons e comportamento. Tudo que se replica se modifica, tudo que se modifica, ao se replicar, passa adiante parte de suas modificações.

Vida e morte se renovam e dão liberdade de movimento para as modificações. Cada geração é um teste, uma experiência, uma nova tentativa. As populações são o caldeirão da vida, onde fermentam possibilidades, onde a modificação e a réplica, a cópia mal-feita e o embaralhamento gênico acontecem.

Tudo que puder ser feito será feito. Como um gás se expande, os comportamentos são também expansivos. Todos os nichos são ocupados. A pressão do crescimento replicante força a ocupação de novos nichos, e a própria matéria viva vai servindo de substrato para mais vida.

Do primeiro replicador ao segundo, do segundo ao terceiro, do terceiro ao quarto, do quarto replicador aos dez mil seres. Todos repetindo os comportamentos herdados dos ancestrais, sempre com modificações, sempre se expandindo para fora e para dentro, buscando todos os espaços disponíveis. Crescendo.

Acidentes imprevistos diminuem o crescimento, mas não o param. O crescimento volta.

Novas ordens de complexidade se acumulam. O crescimento não é só em tamanho, mas em número de membranas, voltas e vesículas, túbulos, canais e núcleos, movimentos, comportamentos, táticas.

De uma molécula que responde à luz surgem ocelos, omatídeos, olhos. De uma molécula que responde à pressão surge o tato. De uma molécula que responde ao som surge o ouvido. De uma que responde a outras moléculas surgem o paladar e o olfato. De tudo isso, imagens em movimento, sons e sabores, cheiros e texturas, surgem noções e sentidos. Com a memória, surgem sentimentos, estados de espírito, emoções.

A extensão da memória permite a abstração, a representação do mundo em símbolos, quantidades, qualidades, nomes. A quantificação é a primeira forma de razão. Quando os animais começam a andar e a competir em bandos, surge logo o reconhecimento da vantagem numérica. A razão, assim, surge muito antes da humanidade, embora tenha encontrado nesta o seu ápice atual (uma questão temporária e fortuita, tão breve na escala do tempo quanto o sussuro de um dinossauro já extinto).

O discernimento, outro tipo de razão, chama logo de bem o que é bom para os tecidos, para a saúde, para a capacidade de replicar e criar. Este é o primeiro tipo de bem, o bem fisiológico.

O comportamento social define a humanidade, mas não é encontrado apenas nesta. Vários outros animais também encontraram na formação de bandos uma tática segura num mundo efêmero. Em todos eles as questões de individualidade e coletividade se tocam com regularidade.

O coletivo é mais sagrado que o indivíduo, pois uma pessoa deixada sozinha no planeta logo não teria razão para viver. Assim surge o altruísmo, o bem social. Com memória e indivíduos reconhecidos, identificados, nomeados, o bem que se faz é devolvido num benefício maior que a soma das partes.

Num meio social, coletivo, é natural que surjam variantes não reprodutivas, isso também acontece com outros animais. Essas variantes contribuem de outras formas para a coletividade.

Há uma tensão constante entre o que é e o que será, entre o comum e o específico, entre os extremos de cada variação - tamanho, cor, formato, voz, velocidade, peso, ... - e suas distribuições pela população. Entre a homogeneidade, a identidade do grupo, e a variação que o enriquece.

E foi assim que, de pequenas células com vesículas e membranas dobradas inúmeras vezes, que se aglutinaram em corpúsculos que cedo dividiram tarefas, e os tipos de corpúsculos foram aumentando e se diferenciando, e eram já animais a essa altura. Dos primeiros animais surgiram alguns com vértebras e mandíbulas, depois patas e âmnion, depois placentas e úteros, e aqui já tinham leite e pêlos, e continuaram a replicar e divergir e criar e ocupar novos nichos. E dentre esses, os primatas, animais curiosos e inteligentes, velozes e ágeis, manipuladores cuidadosos e criativos, foram surgindo animais realmente grandes e lentos, pesados e longevos. Foram chamados grandes antropóides. Nessa parte da árvore da vida, houve um ponto em que a inteligência começou a conseguir mais fartura que a força, e então o tamanho voltou a diminuir e a inteligência continuou aumentando. E seriam estas a virtude e o vício de nossa espécie por ainda muito tempo, não se sabe quanto tempo.

Porém, a inteligência individual não é a mesma inteligência coletiva. Há um abismo a ser transposto. Durante o período de milhões de anos em que não passamos de 200 indivíduos por bando, tivemos tempo de nos adaptar - até geneticamente - a uma inteligência coletiva que montamos de alguma maneira e que funcionou de forma relativamente adaptada ao ambiente. Então um dia abandonamos o limite de 200 pessoas que a memória estava dimensionada a armazenar e incrementamos esse número até os vários milhões. A máquina biológica, genética, evidentemente não acompanhou o ritmo dessa mudança, e precisamos usar a razão, a inteligência individual e semicoletiva, para criar a inteligência coletiva maior, hoje um processo em conturbada evolução.

A satisfação e riqueza individuais estão relacionadas a um mínimo de recursos alimentares, ambientais, sociais. Há várias maneiras pelas quais esse mínimo de recursos pode ser usurpado por outros indivíduos. É preciso mapear esse mínimo e sua produção, transporte e uso, para conseguirmos alcançar a satisfação e a riqueza coletivas.

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