Tuesday, February 27, 2007

O vôo grande

Venta muito e um carro passa em alta velocidade. São dois homens, em silêncio. Estão indo para um bar afastado da cidade. Passam em frente ao quartel, próximo à fronteira, onde muitos jovens sonham futuros de glória e respeito, e muitos sairão sem nada, apenas com histórias para contar.

Como a história do guianense que mudou de país para conhecer o mundo, e acabou conhecendo ali naquela cidade um mineiro da capital, e acabaram formando uma grande amizade.

Conheceram-se no bar escondido das vistas, escuro, contaminado de glórias podres e jovens inocentes, mas a inocência é sinônimo de juventude, não se pode dizer pessoa inocente que não seja jovem, pois a velhice acaba a tudo isso corrompendo, há ali também pessoas tristes querendo esquecer, querendo manter a esperança de um dia sair dali, ou então conhecer uma pessoa verdadeira.

Uma roda de amigos jogava sinuca, enquanto dois conversavam a um canto.

Um deles era o mineiro. O guianense ainda comprava uma garrafa de cerveja e retornava ao centro da casa, onde acabou passando pelo mineiro e o reconheceu. Melhor, reconheceram-se ao mesmo tempo.

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A grandeza de um povo heróico em formação, de heróis de carne e osso, de pessoas parecidas com os heróis que conhecemos do dia-a-dia, das pessoas fortes e sorridentes, que sem esforço acomodam qualquer visita apenas pela sua presença. Conheci pessoas assim, a postura ereta, a voz firme, o olhar profundo e reto. O semblante tranquilamente em paz, suave e satisfeito. A voz limpa, calma, bela e simples, sempre a dizer o que importa, nunca apenas por dizer. E ele me disse que deveríamos tomar uma cerveja gelada juntos. Coisa que, com naturalidade, fizemos pelo resto da noite. No dia seguinte estávamos na praia, tirando um cochilo na sombra de um jambo, depois de um mergulho e um frango assado com farinha, e bastante cachaça, sonhos, histórias e aventuras em comum, e um tempo que nunca passava, porque não é medido, a não ser no lento girar dos astros e das estrelas. Ali a vida era simples, os astros orientavam os romances e as estações, como a Lua iluminando o grande rio e os corações. É claro que eu não resisti à rima, pois ali a vida era rimada, compassada no lento girar do planeta em seu disco orbital, entre todas as órbitas que ainda não conhecemos. Não são nem a moda nem as liquidações, o que mudam o ritmo da vida dos moradores deste lugar, onde a noite apenas se despede do dia para dar as suas voltas, e amanhã volta a ser a mesma. Aqui a noite não envelhece, o mundo está sempre virgem, a selva vizinha respira em nossos ouvidos, sussurando contos fantásticos.

- O que você vai fazer quando sair daqui? - o mineiro perguntou.

- Não sei. Talvez conhecer Minas. Não tenho a menor idéia, na verdade.

O mineiro às vezes acreditava em sinais, como quando você está em dúvida entre duas opções e uma coisa banal e irrelevante ao problema parece dar uma "sugestão", que, evidentemente, era ele quem fazia a si mesmo, analisando a coisa banal e extraindo dela vários significados, até que um se encaixasse e resolvesse para ele o problema. Foi nessa hora que ele viu uma nuvem, com a forma de uma grande onda, um grande e profundo vale onde poderiam se esconder milhões de conjecturas sobre tudo o que foi e tudo o que ainda será. Era uma enorme tempestade que passava rente, dirigindo-se à serra do Curicuriari, do lado direito do rio. Os dois se levantaram e caminharam até a beira da areia, na parte alta do final da praia, de onde viram toda a grandiosidade do espetáculo. Na gíria do circo local: muito mais que um show de espetáculo! O horizonte plano de floresta e rio parecia envergar-se sob o peso da nuvem maciça e plúmbea. Do lado esquerdo, do outro lado do rio, começava a cidade, distante da ameaça. Do lado direito, pedras, outras praias onde a chuva já caía e as perigosas corredeiras entravam na escuridão das águas. Eles estavam numa ilha. Mais à frente, quase engolida pelas nuvens, uma torre de radar girava dia e noite, dando apenas mais uma noção de tempo, ao lado das várias fornecidas pela natureza. Na verdade, uma noção pequena demais para ser útil a alguém de ali de fora, sob o vento que crescia como uma lenta sinfonia, ainda em seu início promissor.

Correram para a ladeira que era a praia e atiraram-se na água mais uma vez. Na idade deles, o ar contém o combustível para a vida. Nadaram algumas braçadas rente à praia, contra a correnteza, para deixar vazar pelos poros toda a existência que entrava todos os dias pelos mesmos poros, e que ali na água voltavam a fazer parte do reino das coisas externas a nós, dando uma sensação de completar uma tarefa, fechar um ciclo, fazer parte de algo que existe, algo maior, mais completo, longo, intrincado e fresco que nós mesmos. A temperatura de nossos corpos contrastava com a água gelada e negra, antiquíssima. Em meio ao escuro, apenas a pele branca do mineiro assemelhava-se à areia, já escurecida pelo acomodar da tarde.

Na outra vez que saíram o negro levou duas índias para conhecerem o branco. Saíram os quatro e foram à cachoeira do Dabaru. Beberam, conversaram, riram, nadaram, e depois foram ao brega e dançaram, mas o branco não queria dançar muito. Sentou-se com outro conhecido enquanto os outros davam voltas pelo salão. O branco queria o guianense, e o outro não sabia. Ninguém sabia. O guianense dançava com a indiazinha mais nova, os dois sorrindo, os dentes brancos brilhando na escuridão que principiava embaixo do teto de palha. O branco não queria ir embora porque o negro estava ali, e logo se cansaria de dançar. Mas ele sabia que as índias iriam onde eles fossem. Não seria daquela vez.

Nem foi da outra vez, quando foram à sua casa e fizeram o almoço com outros amigos. Não importa de quem era a casa. Nem eles provavelmente se lembrarão. Assaram uma carne no fogão enquanto bebiam no quarto, e discutiam tudo o que os amigos discutem. Questões importantes como o tempo que leva pra chuva chegar, quando você a vê do outro lado do rio. Questões dificultosas, como o tamanho ótimo para um skate, ou a melhor banda de rock, que nunca chegavam a conclusão alguma. Mas mostrava o conhecimento de cada um sobre o ofício, coisa a que os meninos respeitam muito. Ali os dois eram os melhores em seus ofícios, e os outros garotos eram mais novos, e mais inexperientes. Para o fim da tarde o mineiro acabou dormindo. O guianense, que também estava sentado na cama, que era de casal, acabou deitando-se abraçado ao outro, depois que os outros saíram. Dormiram juntos por horas. Mais tarde, quando o negro acordou sóbrio e viu onde estava, levantou-se cuidadosamente para não acordar o amigo, deu dois passos até o meio do chão, deitou-se ali mesmo e dormiu novamente. Mais tarde contou ao branco que tinham dormido abraçados a tarde inteira e o outro não acreditou. Nessa época ele ainda não sabia que o mineiro também o queria.

Por fim, se conheceram. No sentido bíblico. Estavam voltando de um circuito pela cidade, onde pararam em várias festas. A rua estava deserta e era sombreada pelas largas folhas de muitas árvores plantadas pelo caminho. Não se via coisa alguma. Caminhavam para a casa do mineiro, quando este colocou em palavras o que era até então uma mútua suspeita de intensidade variável. O outro, sorrindo apenas por dentro, aceitou de imediato. O branco, que já conhecia o outro, conseguiu enxergar aquele sorriso, e associá-lo, para sempre, à honestidade na conduta de um homem. Interesse os dois já tinham, apenas ali tiveram mutualidade. Talvez um tipo de mutualismo antigo, há muito calcado na memória genética da espécie, e ali, como em outros lugares, apenas dando vazão à sua pressão interior, como um vulcão, retornando à superfície a imagem do que foi por insondáveis séculos subterrâneo. Cada experiência na vida deles era assim, única, subterrânea, libertária. E era por isso que não podiam continuar juntos. Cada um seguiu seu caminho pelo mundo, e um dia o guianense finalmente conheceu Minas Gerais; e agora o mineiro se prepara para conhecer a Guiana, uma terra como tantas outras, prometida e especial.

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