Produtividade e especialização
II. 1 29 [56] 383
"Os estudos históricos na educação. O jovem é levado a toque de caixa através de todos os milênios, como jamais o foram os gregos e os romanos. Além disso, se oferece história política a adolescentes que não podem absolutamente compreender o que é uma ação política, uma política comercial, questões de poder, etc.! É desta mesma maneira que o homem moderno percorre as galerias de pintura e assiste aos concertos! Ele percebe que isto soa diferente daquilo e é a isto que ele chama ter um 'julgamento histórico'. - A massa dos objetos é tão grande que só se pode sair dela embrutecido. A isto se junta uma superabundância de fatos terríveis e bárbaros, diante dos quais uma consciência mais refinada, quando podemos encontrá-la, só pode experimentar desprezo. Além disso, distancia-se o jovem da sua pátria, ensinando-lhe a duvidar de todas as idéias e de todos os costumes. Cada época tem a sua maneira de ser: 'pouco importa o que tu és'. O homem, em conseqüência, é determinado segundo o seu ethos [modo de vida], para bem ou para mal (quer dizer, grande): 'Segue livremente o teu caminho, mas o siga perigosamente, sem seres colhido no final'. Felizmente, a juventude é muito freqüentemente de tal maneira aplacada, que dela não se extrai nada de essencial, afora uma vaga estupidez: falta nela uma poderosa imaginação e, além disso, a massa de conhecimentos é muito grande, faz tudo submergir.
"Ninguém tem necessidade desta quantidade de história, como comprova o exemplo dos antigos; isto é inclusive extremamente perigoso, como demonstra o exemplo dos modernos.
"Vejamos agora o estudante de história! Ele cuidadosamente destaca do passado um pequeno capítulo, ao qual consagra as suas pesquisas; ele é agora um servidor da ciência, da verdade, que com toda modéstia atingiu o seu pleno desenvolvimento! A presunção erudita levanta um obstáculo à educação superior. Considero os jovens doutores em história como indivíduos que, do ponto de vista da cultura, não sabem contar até três e, no que diz respeito à maioria deles, não o saberão jamais: pois são já 'produtivos'! Ó Céus!
- Nietzsche, Escritos Sobre História, Ed. PUC-Rio/Ed. Loyola. p. 316-317.
Duas palavras mais para não dizerem que eu só falo mal da religião: produtividade e especialização.
O mal da produtividade é que já vivemos com muito mais do que precisamos, e achamos que a justiça será feita quando os pobres tiverem direito a viver a vida materialista da nossa classe. Ainda se refuta os problemas ambientais. Isso se observa todos os dias, quando se joga fora uma vasilha de plástico que poderia ter utilidade (digamos, de margarina), e se compra outra do mesmo tamanho "porque é mais bonita". Ou quando se queima revistas antigas "porque estão ocupando espaço", ao invés de dá-las a uma biblioteca (conheci uma dentista, que ganhava R$ 5.000 por mês, que jogou fora um ano inteiro da revista Caros Amigos porque "já tinha lido". Isso num município onde os professores são quase analfabetos). Mais exemplos? A dona-de-casa que passa cera na casa toda no sábado, depois liga a enceradeira que consome tanto quanto um chuveiro elétrico, para deixar todos os cômodos b-r-i-l-h-a-n-d-o! Depois fica com dó de chamar as visitas para o aniversário do filho, porque vai estragar todo o trabalho! (aparentemente o brilho da lâmpada vale mais que o gênio preso). Ou aqueles que vão de carro comprar um cigarro (1 quarteirão) e depois compram uma esteira elétrica para "perder a barriguinha". Ou quem liga o ar-condicionado no máximo todas as noites porque acha "mais gostoso" dormir com edredon. Se eu estivesse falando dos porcos capitalistas, mas estou falando das pessoas que trabalham com a questão ambiental no dia-a-dia, analistas ambientais, biólogos e outros cidadãos supostamente esclarecidos. E se você diz a essa gente que precisamos mudar os nossos hábitos, com urgência e em escala global, você é chato, radical, excêntrico, etc. "As Unidades de Conservação já estão aí para resolver o problema", ou "não sou eu que vou fazer diferença", ou ainda "ah, se a vida não tiver desses pequenos prazeres, que graça teria?" Ó Céus!
E a especialização intensifica o problema. As pessoas precisam se distinguir em seus respectivos campos, e isso as obriga a não ler muita coisa fora desses campos. Não pergunte a um ornitólogo sobre as frutas que a ave-que-ele-estuda come, nem a um economista sobre as externalidades do crescimento econômico. No fim, o objetivo da especialização parece ser a concorrência, e o objetivo da concorrência é o vencedor ter dinheiro para poder comprar um carro e não depender do péssimo sistema público de transporte. Mas, ora, se a concorrência fosse ignorada, e a especialização menos idolatrada, todos teriam tempo para adquirir um conhecimento mais completo, mais filosófico, mais holístico. E assim o tempo passado esperando o ônibus seria apenas uma oportunidade feliz para a introspecção ou para um bate-papo com as pessoas normais que ainda vivem fora dessa ânsia toda. Mas como os especialistas são, em sua maioria, nascidos em berço-de-ouro, não saberiam como se socializar com os pobres dos pontos de ônibus.
2 Comments:
É claro que o indivíduo tem sim certa culpa nos problemas ambientais sociais. Mas mais culpa ainda, penso, têm as indústrias. São elas que deveriam pensar em formas mais eficazes de reciclagem e reutilização dos frascos de margarina e etc. O indíviduo normalmente não tem outra saída que senão comprar outro frasco.
No meu caso, uso cobertor no inverno e abro as janelas no verão. Gasto o mínimo possível de energia que posso, até certo limite e até gosto de andar pelo escuro pq se um dia ficar cego, já vou saber mais ou menos como fazer. (Talvez eu seja louco.)
Enfim, aqui na Europa a infra-estrutura para a reciclagem é bem melhor que no Brasil e as pessoas reciclam razoavelmente bem. Na Inglaterra, na lista de discussão do centro de pesquisa, as pessoas vendiam livros usados pelo módico preço de cinquenta centavos e via-se muito bem que essa era uma forma de reciclar e fazer rodar o conhecimento. Coisa de primeiro mundo.
Quando estive nos Estados Unidos, entretanto -- tinha que ser lá --, fiquei abismado com o tamanho do motor que tem do lado de fora das casas e que é o sistema de resfriação/aquecimento das casas particulares. Um super-motor pra cada apartamento, fiquei abismado. No hotel que fiquei também, o ar-condicionado ficava ligado mesmo nos corredores e não vi nenhuma utilidade naquilo. Deveríamos mandá-los para um lugar seis vezes maior logo.
Acho que a especialização é necessária num mundo com a vastidão de conhecimento que temos. O problema é ver a bola tão perto e esquecer do espetáculo que é um jogo de futebol, incluindo a participação da torcida. (Quando vou a um estádio tenho dificuldades para me concentrar no jogo, pois tem tanta coisa acontecendo em volta... o evento social é muito mais interessante.)
Realmente, o evento social de um jogo é fascinante, e o jogo hoje sente falta dos garrinchas... o dinheiro estraga tudo que é belo.
Agora, achei algumas falácias no seu comentário:
1) As indústrias são feitas por pessoas, obedecem leis criadas por um poder votado pelas pessoas, obedecendo a pressões populares, etc. São sempre as pessoas as culpadas, indústria é um objeto. O que eu me referi no exemplo do pote de margarina é que as pessoas, além de comprarem margarina, também compram uma vasilha tupperware do mesmo tamanho e jogam a outra fora. São tantos exemplos de desperdício que vou fazer questão de escrever um texto detalhando tudo.
2) Reciclagem é uma propaganda enganosa. A reciclagem consome muita energia. Olha o exemplo das latinhas de alumínio. É caríssimo reciclar aquilo, e haja eletricidade. Muito mais barato são as garrafas de cerveja, de vidro, que vão, são lavadas e voltam. Só precisam ser recicladas quando quebram - mas tem gente que prefere comprar latinha em casa pq dá menos trabalho. Pra não falar no monte de coisas que as pessoas não precisam, compram só pra afastar momentaneamente o tédio, e que se sentem bem se aquilo for reciclável.
3) Que a especialização é necessária ok, mas quão necessária? Acho que o Bertrand Russell escreveu um livro há uns 70 anos atrás, onde ele falava de como podíamos trabalhar só 4 horas por dia. Parece que a terra produz mais quando não há monocultura - se isso for verdade, um tiozinho produz mais em um hectare do que aquele cara da soja produziria no mesmo hectare. Mas o sistema é tão vil, e somos tão ignorantes sobre ele, que não fazemos nada. Tentando resumir: a especialização é uma ferramenta para continuarmos alienados produzindo coisas que ninguém de fato precisa, quando estamos perdendo o mais básico (comida saudável, água limpa, tranquilidade, etc), enquanto no meio dessa ignorância toda não temos meios de educar nossas crianças que o sistema deveria ser completamente diferente.
Bem, acho que é isso, mas tem muito mais sobre isso tudo...
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