Sunday, August 01, 2010

Ciências humanas ou literatura?

Por que as ciências humanas não estão conseguindo tornar a sociedade um lugar melhor? Ou por que as ciências humanas parecem tão pálidas quando comparadas à evolução da técnica que parece nortear todo nosso desenvolvimento social?

Podemos falar de uma "culpa" das ciências humanas em diversos pontos lastimáveis da história e da sociedade atual?

Vejamos algumas citações:

"Um jornalista é um homem que sabe explicar aos outros o que ele próprio não entende." - Otto Maria Carpeaux (1967)


"A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário." - Italo Calvino (1981)


"Interpretar as interpretações emprega mais trabalho do que interpretar os textos, e existem mais livros sobre livros do que sobre qualquer outro assunto: tudo o que fazemos é glosar uns aos outros. Há abundância de comentários, mas escassez de autores. Aprender a entender os entendidos se tornou o principal e mais celebrado aprendizado da nossa época; não reside nisso o fim último dos nossos estudos?" - Montaigne (1592)



Antes do nível superior, os jovens saem do Ensino Médio, a maioria deles tendo estado muito mais ocupados com seus próprios hormônios, namoros, brigas, problemas familiares e insegurança quanto ao futuro do que com toda a carga de conhecimento que supostamente deveriam aprender. Mesmo um jovem realmente estudioso, se tiver interesse em aprender todas as disciplinas ministradas, não aprenderá nenhuma delas a não ser superficialmente, como qualquer graduado em ciências reconhece quando compara seu currículo de nível superior com aquele do Ensino Médio.

Então pegamos como exemplo um estudante de graduação em filosofia. Ao longo de quatro ou cinco anos, ele estudará desde os pré-socráticos, passando por Sócrates, Platão e Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, Bacon, Espinosa, Hume, Locke, Rousseau, Kant, Schoppenhauer, Nietzsche, Wittgenstein e muitos outros - todos ocidentais, todos filósofos. Dificilmente conhecerá o pensamento mitológico dos diferentes povos, ou ainda Averróis, Hermes Trismegisto, Confúcio, Laozi, Buda e tantos outros grandes pensadores não-ocidentais. Dificilmente conhecerá o suficiente dos trabalhos em física de Newton, Galileu, Copérnico, Kepler, Einstein e tantos outros, nem os trabalhos em química de Lavoisier, Mendeleiev, Bohr, Schrödinger, Pauling, Pasteur e tantos outros, ou mesmo os trabalhos em biologia de Buffon, Lamarck, Mendel, Darwin e Wallace, Watson e Crick, Lorenz, Mayr, Wilson e tantos outros, sem citar ainda algumas outras áreas do saber como geologia, antropologia, geografia, história e linguística. O que este estudante aprenderá em seu curso de filosofia? Quantos filósofos lerá em suas próprias obras, e sobre quantos lerá apenas comentários? Quantas dessas obras lerá no idioma original, e se ler traduções, quantas traduções diferentes chegará a comparar? Ao ler comentários, terá lido comentários escritos por quem leu toda a obra na língua original, ou apenas comentários de comentários?

Suponhamos que nosso estudante ideal (ou o médio, tanto faz aqui) esteja estudando Aristóteles. Diz-se de Aristóteles que foi o primeiro a reunir todo o conhecimento da Antiguidade, fazendo um verdadeiro sistema filosófico. Em que condições estão os nossos filósofos, quero dizer, os nossos comentadores de apreciar o trabalho deste Filósofo se, 1) não lêem grego, 2) não conhecem o conhecimento que existia na época de Aristóteles e 3) não conhecem todas as ciências atuais relacionadas à síntese buscada pelo Filósofo. É de se imaginar que um estudo sobre Aristóteles seja, portanto, um pouco da leitura do próprio (traduzido uma, duas ou três vezes), complementada pela colagem de diferentes comentários, cada qual retratando apenas uma e outra faceta do Homem, não sendo possível resolver assim nenhuma das múltiplas contradições que deverão surgir.

Será essa a causa de hoje as ciências humanas estarem dominadas por um paradigma relativista, segundo o qual as mais diferentes interpretações devem ser todas levadas em conta? Se já era humanamente impossível ler toda a obra de Aristóteles, os cientistas e pensadores antes dele (que lhe forneceram material) e depois dele (que corrigiram os erros dos primeiros), agora deve-se ler ainda todos os intérpretes de todos estes, o que inclui, mas não se restringe a: liberais, conservadores, capitalistas, marxistas, comunistas, socialistas, feministas, ambientalistas, construtivistas, desconstrutivistas, estruturalistas, posestruturalistas, e assim por diante.

Temos, portanto, a formidável tarefa de compreender o mundo a partir de uma biblioteca inteira com milhões de referências cruzadas. Mas também temos a alternativa de começar a elencar as bases do conhecimento, tentar separar o joio do trigo, que aparentemente era o projeto original do próprio Aristóteles. Mas como?

Parece que o problema, se não foi criado por, foi certamente ampliado pela especialização necessária à manutenção da sociedade excessivamente técnica em que vivemos. Biólogos aprendem biologia, físicos aprendem física, cientistas humanos aprendem ciências humanas - mas não os campos inteiros: cada profissional aprende apenas uma pequena parcela de sua área. Assim é possível fazer os trens andarem, as bombas bombearem, os antibióticos curarem, os microprocessadores evoluírem, as antenas captarem, os celulares ligarem, etc. Mas quem resolve os problemas emocionais que tudo isso gerou? Quem mede o quanto somos infelizes e nos sentimos vazios, quando comparados aos nossos ancestrais mais "pobres", porém mais humanos, mais plenos? E quando chegamos às ciências humanas, quantos são aqueles que, por exemplo, entenderam a teoria da evolução por seleção natural - darwinismo - antes de serem apresentados à ideologia desumana do darwinismo social? Quantos leram Darwin antes de lerem Spencer? E quantos lerão Darwin depois que já tiverem desconsiderado Spencer? Será que a causa maior do relativismo não é exatamente a ignorância das ciências básicas que servem de alicerce à sociedade moderna, justamente por aqueles que dizem estudar a própria sociedade?

Me parece que não temos saída a não ser voltar a "fabricar" pensadores inteiros, talvez os novos filósofos e juristas, cidadãos que aprenderão as bases racionais e emocionais, as teorias e leis das ciências, a evolução histórica, erros e deturpações desde a matemática, passando pela física, química e biologia até cada uma das ciências humanas. Talvez levemos cinco décadas para formarmos esses profissionais, mas talvez a sociedade encontre em suas obras, em suas divergências e principalmente em suas convergências uma luz no fim do túnel.

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