Wednesday, December 13, 2006

Por uma moral científica

A moral até hoje esteve circunscrita ao campo das opiniões e de culturas individuais. A filosofia e a ciência avançaram muito mais do que o julgamento moral que fazemos de nós mesmos como indivíduos ou como espécie. Como indivíduos, sujeitamo-nos à opinião alheia, à sociedade, aos costumes, à vontade moral da maioria; como espécie, repetimos julgamentos desinformados, preliminares, superficiais, e com isso prolongamos o sentimento de injustiça que acompanha a humanidade desde sempre, mas que poderia hoje ser muito menor - caso soubéssemos onde procurar a moral.

A ciência abriu caminhos nunca imaginados, mesmo há poucas décadas, mas ainda não se atreveu a afirmar-se como possível enunciadora de juízos morais. Toda a opinião pública e privada de hoje repete a mesma ladainha: a ciência é um meio, é apenas uma ferramenta, apenas uma instituição humana, e por isso, justamente por isso, não pode servir de base para julgamentos morais, para a ética, para guiar o que deve ou não ser feito com a própria ciência, com a tecnologia, com os investimentos materiais e humanos que fazemos todos os dias. Como se isso se deduzisse logicamente! A ciência pode ser tratada como uma "instituição" humana, desde que se admita que tudo, desde a linguagem até as religiões, são instituições igualmente humanas. As discussões sobre a ética fundamentam-se em quê? Na filosofia aristotélica ou na platônica, e suas descendentes ocidentais, o cristianismo, a democracia, o moralismo piegas do bem único, do bem geral, do bem da maioria e do governo pela maioria! As eleições são uma das maiores farsas da história - servem apenas para que o povo sinta-se envolvido com o processo que ocorre por trás dos bastidores, no excludente Plano Piloto brasiliense, às escondidas, no silêncio da noite. E o mesmo povo aprendeu a dizer da ciência: "Não! A ciência não! A ciência é apenas uma instituição!".

As discussões sobre ética são na verdade um emaranhado de conceitos e argumentos ultrapassados, tornados tão complexos com o passar do tempo que ninguém mais os compreende. O público acha justo julgar-se imbecil demais para tomar parte da contenda. Os cientistas acham justo julgarem-se especializados demais, institucionalizados, talvez, demais para serem úteis à discussão. Esquecem-se de que a mesma religião, a mesma filosofia que serve de premissa para nossos valores é uma instituição humana, tanto como a ciência - e tanto pior que aquelas sejam instituições muito mais equivocadas.

A moral sair da ciência, a moral ser desvendada pela ciência - talvez essa idéia cause arrepios nos que ainda têm pesadelos com o holocausto e outros erros do passado. Mas não podemos basear nossas considerações no medo, ou apenas no passado. O ser humano ser visto como "tábula rasa" até os dias de hoje - eis um erro a ser corrigido. O ser humano ser visto como a mais desenvolvida das espécies, a mais evoluída, a "melhor", a mais próxima dos desígnios divinos, criada à Sua imagem e semelhança - aonde nos trouxeram tantos séculos, tantos milênios de engano? Buscamos basear a moral numa quimera, e ainda não entendemos, ainda não se entende o como somos semelhantes aos animais - na verdade, como somos simplesmente animais com um tanto a mais de cultura.

A velha distinção: instinto X cultura; nature X nurture. Os pseudo-filósofos, muitos dos quais com carteirinha e currículo, continuam se debatendo sobre essa questão com um interesse desproporcional ao seu conhecimento do assunto. A maioria dos filósofos - esses quase "cientistas humanos" - sabe infinitamente mais de cultura que de natureza, que de instinto. Quantas definições conhecem para cultura? E quantas para instinto? O que é o instinto? pergunto-lhes. Quanto do homem é instinto? Quanto dos animais é cultura? Tenho lido em todos os lugares apenas nulidades, apenas desconhecimento travestido de profundidade, palavras difíceis e discursos pomposos ocultando uma vaga idéia sobre o que mal se conhece. Quantos filósofos de renome saíram das cadeiras da biologia ­- o estudo da vida, do lado animal do homem, da definição biológica (e por isso mesmo mais universal) de cultura?

Cultura pode ser definida como qualquer transmissão não-genética de informação. Há livros muito bons sobre a cultura no reino animal (e mesmo fora dele), que derrubariam de uma vez por todas o antropocentrismo dominante nas discussões sobre o humano e a moral, caso fossem ao menos lidos nos cursos introdutórios das ciências humanas. Mas até hoje, um século e meio após Darwin ter elucidado o mecanismo principal que criou mesmo nossa capacidade para ter cultura, as discussões sobre ética são dominadas por pessoas que ignoram completamente a relação entre instinto e cultura a nos formar.

Dizer que a cultura é predominante (esta a visão comum) ou que o instinto é predominante (esta a visão revolucionária, maligna, excludente), é dizer nada. Não se trata de uma queda de braço com apenas um vencedor, nem de um recipiente onde caibam cem "bolinhas" de duas cores, e estimemos pois a porcentagem de cada tipo. O instinto humano assemelha-se mais à maneira como um veículo vem de fábrica, estando cada dono possibilitado a modificar o que quiser, com as ferramentas disponíveis em sua cidade. Simplesmente não é possível colocar três andares numa motocicleta, ou transformar num carro de corrida o que foi construído para consertar asfalto. Essa perspectiva costuma ser bem aceita quando se trata de explicar por que não podemos respirar debaixo d’água ou voar, mas não quando é aplicada ao comportamento humano, às relações humanas. Acredita-se que apenas o fisiológico deva ser explicado pela biologia, e que o humor, as emoções, as esperanças, vontades e gostos, estariam muito além disso. Ledo engano.

O que mais confunde quem não está acostumado com essa análise é a plasticidade do instinto. O instinto não é uma tendência a agir desta ou daquela forma - é uma tendência de agir desta ou daquela forma dependendo do ambiente em que se encontra. Aí sim, entram não só a cultura, como um dos determinantes do ambiente, mas também o clima, a abundância ou escassez de alimentos, o tipo de ambiente em que se vive (montanhas, campos ou florestas), e certamente outras variáveis que ainda desconhecemos, e que não seriam bem enquadradas como "cultura".

As discussões éticas sobre o aborto, a pena de morte, a corrupção no poder público, etc. falham sempre ao tentar impor o certo baseando-se num conceito rígido. O bem, como o cristianismo herdou de Platão, é visto como um ideal a ser alcançado, mesmo que nunca o tenha sido em toda a história. O bem e o mal coexistem não só na natureza (onde, aliás, é igualmente aceitável dizer que não existem), mas também na natureza humana. Compreender a fundo a natureza humana é a única forma de se obter uma ética autêntica e imparcial, porque fundada no que todos os humanos têm em comum.

Este, talvez, é o erro mais comum entre os que rechaçam o instinto como predominante no homem: pensam que as diferenças genéticas que temos entre nós determinaria as diferenças de comportamento. Mas o que importa no estudo do instinto, em sua relação íntima com a moral e a ética, é, pelo contrário, a uniformidade de comportamento. As diferenças do comportamento são o reflexo do mesmo instinto em ambientes diferentes, mas isso não descarta o papel do instinto, apenas torna-o bem mais específico, e quem sabe, mais útil e mais acessível. Em outras palavras, "o que você faria no lugar dele?" Quase todos nós faríamos o mesmo, dadas as circunstâncias. A relação entre as circunstâncias e as ações é que são definidas pelo instinto.

As discussões contra o aborto e o infanticídio, este praticado com maior freqüência em lugares muito pobres, muitas vezes trazem o argumento da "defesa da vida". Ora, defender a vida é um conceito muito vago, uma vez que, para comer, precisamos matar qualquer coisa viva. Mas um embrião do tamanho de uma ervilha não chega a ser uma ervilha, como também não é ainda sequer um feto. O que essa discussão conseguiu até hoje foi que, entre outras coisas, defendêssemos a vida com tanto ardor que ignoramos a própria qualidade da vida. Sustentar 6,5 bilhões de pessoas num único planeta não tem se mostrado tarefa fácil, e ainda que haja comida para todos, e ainda que a dificuldade seja distribuí-la, ainda assim a concentração humana é, muito provavelmente, a causa primeira dos grandes problemas que enfrentamos, como poluição, violência e criminalidade, doenças físicas e mentais, falta de convívio humano, egoísmo exacerbado, consumismo, esgotamento dos recursos naturais, entre outros. Designa-se "primitiva" uma população que realiza o aborto ou o infanticídio para manter uma densidade demográfica sustentável a longo prazo. Mais uma vez, ignora-se o que tanto animais como humanos sempre fizeram - o que o instinto recomenda individualmente a cada mãe, em cada comunidade - e abraça-se ideais filosóficos e religiosos na busca pela moral, negando sempre investigar o reverso da moeda.

No fim, nosso desenvolvimento moral deverá ser não um avanço para a frente, mas um retrocesso ao que o instinto sempre ditou. E isso só será alcançado após uma longa queda de braço entre a ciência e a religião. O papel da ciência: desvendar, de-divinizar, finalmente, a moral humana.

1 Comments:

At 8:43 AM , Blogger Prós said...

Não é por ser uma instituição humana que a ciência não pode servir para fazer julgamentos morais. A ética e moral também são e todo mundo sabe disso. Esse argumento é fraco. Acho que ninguém se esquece disso.

Acho que a ciência está sempre a ajudar as discussões éticas e morais mostrando dados que ajudam os sujeitos do plano piloto a tomarem decisões. As tradições, entretanto, também pesam... o sujeitos do plano piloto são covardes em se mostrar a favor (ou contra) assuntos polêmicos.

A questão a se discutir seria: o que torna um assunto polêmico? Não seria isso algo intrínseco à natureza humana? Existirão assuntos intrinsecamente polêmicos? Creio que sim.

A maior parte do seu texto, entretanto, a discussão de instinto X cultura é um tanto quanto contundente (até Nietzscheniana, eu diria), bem argumentada e muito bem aplicada. Ficou muito bom mesmo! Temos mais é que falar essas paradas mesmo sem termos medo de estar pregando um tipo de autoritarismo (as vezes tenho medo de ser confundido com um Hitler, ou coisa do gênero)! Defendamos a razão e a ciência com unhas e dentes, pois há muita ignorância no mundo! Armemo-nos contra a ignorância e levemos a ciência e o entendimento maduro do mundo às pessoas! Guerra ideológica é o que queremos! Cientistas de todo o mundo, uni-vos!! :D

 

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