Tuesday, February 06, 2007

A moral da galinha

ou
de coisas que aprendi com os "índios"


As galinhas botam seus ovos invariavelmente pela manhã - estejam os ovos fecundados ou não - após o cantar do galo, que costuma acontecer exatamente às quatro da madrugada. Daí aquele samba "galo cantou às quatro horas da manhã..." não ser ficção, mas a mais pura verdade. Isso qualquer criança da roça sabe, e qualquer criança hoje criada nos galinheiros verticais dos grandes núcleos urbanos desconhece.

Mas esse texto é sobre pessoas, não sobre galináceos. Pessoas são um pouco mais complicadas que os galináceos, e mesmo que outras aves, porque, embora não botem ovos, deixam de botá-los pelos mais variados motivos. Mulheres não são galinhas, apesar da denotação pejorativa a que são associadas algumas delas, devido a certos comportamentos tidos como moralmente incomuns, e por isso mesmo, inaceitáveis.

Vejamos, as galinhas botam ovos todos os dias. As mulheres menstruam a cada mês, mais ou menos, e mesmo assim sujeitas a atrasos, pílulas, estresses, regulação menstrual num bando de mulheres que convivem juntas, e todas essas complicações que nós, humanos, vemos de perto, e assim entendemos melhor, e num lampejo provável de antropomorfismo acabamos nos situando várias ordens de magnitude acima da complexidade daquelas bípedes penadas. Não, não. Não tenho tanta certeza de que as galinhas sejam seres assim tão simples.

Se bem que para a galinha sujeira é comida, pau é cama e pinto é gente, se é que você me entende. Tudo muito simples. Para nós não, nem toda cama serve, tem lençol que pinica, tem quem não durma sem edredon, o travesseiro tem que estar assim, assado, entende? Tudo muito complicado.

Então, eu queria mesmo falar sobre a moral. Tem quem ache tudo absurdo, tem quem não estranhe nada. Não sabemos as opiniões das aves não-passeriformes acerca da moral, e por isso concluímos logo que elas não têm opinião nenhuma. Ledo engano. Ou não, quem vai saber? Mas parece que nossa espécie tem mesmo uma ampla variedade de opiniões morais, indo desde o Velho até o Novo Testamento, para dar um só exemplo, bem global, e que cabe num único livro.

Mas ali atrás eu apresentei uma dedução lógica que talvez tenha passado despercebida. Disse que as mulheres apelidadas carinhosamente de galinhas o são devido a seus comportamentos incomuns, por isso, inaceitáveis. Ora, a diversidade moral na espécie humana costuma ser encarada apenas por seu viés antropológico, como uma curiosidade de circo, como índios que perfuram os beiços, andam pelados, pintam-se de cores gritantes e empunham seus arcos, flechas e tacapes cantando canções de guerra assustadoras em línguas estranhas. Quem não aprecia um entretenimento? Mas moral é coisa séria, e a verdade é que a moral varia bastante de pessoa a pessoa, com algumas pessoas considerando lícito o que outras achariam vergonhoso, e assim por diante. Mas vivemos em uma sociedade cheia de regras, onde quem foge à missa foge à média, e tem que arcar com as conseqüências. A exemplo da mulher que ganha certos apelidos.

Vamos falar de homens homossexuais, gays, bichas, viados, porque para mal entendedor quatro palavras nem sempre bastam. E quando o assunto é esse quase todo mundo finge que não viu.

Aproximemo-nos devagar. Primeiro, a moral masculina por excelência - a do garanhão. Todo pai quer um filho que coma todas as garotas, que seja o macho alfa do seu bando, com espírito de liderança, forte, decidido, corajoso e machão. Resumindo, e se for pra medir tudo isso numa única variável (que os cientistas chamam de "surrogate"), se comer um monte de meninas já está de bom tamanho.

Agora, com as meninas o assunto é outro. Nenhuma família quer uma filha galinha. A idéia é bem outra. A verdadeira dama, a mulher que se valoriza, que procura encontrar um marido decente, trabalhador, honesto, para constituir uma boa família, deve ser recatada, se guardar para o homem certo, não vai assim com qualquer um não. O ideal até outrora era se casar virgem, e ainda há quem siga tais preceitos, como há pais que os sustenham.

Está certo, já temos o estereótipo ideal do homem e da mulher em nossa sociedade, e ninguém reclama. Mas e os gays? Serão pontuais como o cantar do galo, previsíveis como o desovar da galinha, ou variáveis como bons seres humanos que são? Para minha tristeza, vejo uma variabilidade muito menor do que seria de se esperar de pessoas à margem da sociedade. À margem, sim, no sentido em que a grande sociedade copia e recopia seus valores em todos os meios possívels, forçando as pessoas a seguirem aquilo ali para não ganharem apelidos perniciosos, mas apenas para os heterossexuais. O homem deve ser garanhão, a mulher uma dama; o gay não importa. Fora aquele estereótipo da bichinha desmunhecada, que poderia talvez ser considerado o estereótipo em que a sociedade gostaria de ver enquadrados todos os gays, ninguém se preocupa com o que eles vão fazer na privacidade de seus lares, ou em suas festinhas particulares, onde só entra entendido.

Assim, seria de se esperar que os gays tivessem uma liberdade moral maior, que pudessem inventar suas próprias morais, suas próprias regras de conduta, suas maneiras mais individualizadas de encarar a vida, o sexo, o certo e o errado no dia-a-dia. Ledo engano. Muitos gays que conheci acabam tentando se definir pelos papéis já existentes de macho alfa e fêmea mansa. Alguns agem como verdadeiros procriadores, agindo sexualmente numa maneira que deixaria os pais orgulhosos, caso suas aventuras tratassem de criaturas do sexo oposto. Outros agem como verdadeiras fêmeas, para quem a castidade e a retidão, ao menos no discurso, têm um valor imensurável. Para aqueles, é comum no meio GLS receberem o apelido de putas, o que para mim é uma desconsideração ao fato de fazerem o que gostam, sem cobrar por isso, e seguindo o mesmo instinto dos homens heterossexuais (aos quais, por uma questão genética, hormonal, fisiológica, anatômica e comportamental, sentem-se mais assemelhados). Para os demais, os que se dizem recatados, sua máxima de vida é encontrar O homem para se casar. Querem, como todo mundo, encontrar sua alma-gêmea, mas acabam batendo tanto nessa tecla que aproveitam menos, ou sofrem mais, com cada marmanjo que aparece para se "aproveitar" de seus dotes. Assim mesmo: "aproveitar-se". Ora, até onde sei, se uma pessoa se aproveita da outra, é sinal que esta outra não se divertiu tanto. Aí o problema é de quem?

Aprendi com alguns índios a moral que ninguém é de ninguém, ao mesmo tempo em que todos são de todos. Se eu posso dar prazer a mais de uma pessoa, não seria uma crueldade restringir esse dom a apenas uma? Se só se vive uma vez, que mal pode haver em experimentar? Claro, nada em excesso, e um relacionamento a dois é mais que saudável, é bom. Mas quem nega que há uma grande assimetria no comportamento sexual, no desejo e na necessidade de monogamia, por parte do homem e da mulher? Que os dois queiram, às vezes, pular a cerca, é natural, mas cada qual tem seus critérios, suas urgências, suas satisfações bem próprias da natureza interior de cada um. Negar isso, e exigir monogamia eterna de todos os casais, como sinônimo de virtude, é papo de padre, de quem sequer pode opinar, com embasamento empírico, sobre o assunto.

Então, até quando os gays vão se comportar como as galinhas, sendo tão previsíveis, tão limitados em suas morais, seguindo apenas o que foi ditado como regra para outras pessoas? Quando aprenderão a enxergar com os próprios olhos, e definir as próprias regras de conduta, ao invés de tachar os outros disso ou daquilo apenas por correrem atrás dos próprios instintos?

Esse tempo ainda há de chegar. E os gays serão os homens mais livres da face da Terra, porque estarão entre iguais e reconhecerão no próximo o próprio instinto, que, apesar das diferenças, guarda grandes semelhanças entre todos os homens, homo- ou heterossexuais. Enquanto isso, tratemos os gays recatados com respeito, aquele mesmo respeito à diversidade que pregamos para tudo o mais, mas com uma diferença: com a sugestão de que percebam que estão se guardando enquanto o tempo passa, a verdade grassa e o mingau engrossa.

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