Wednesday, January 03, 2007

O cinismo

Ele estava deitado com a arma na mão, o olho na porta aberta, a luz apagada. Na rua algum movimento ainda, e só o brilho leve de um poste fraco clareava o muro caiado, tosco.

De repente, ouviu um corpo se aproximando - podia sentir sua exata localização no espaço. Mexeu os dedos sobre a pistola, reapropriou-se das pernas e levantou em silêncio, apontando a arma na lata do invasor, que já entrava.

- Veio me procurar?, grunhiu.

O outro estava assustado. Não esperava a reação.

- Sim, vim fazer uma pergunta ao senhor.

- Pois pode fazer, tornou o primeiro, acendendo a luz.

- O senhor acha que o cinismo é uma doença da alma?

- Acho que o medo faz o homem perder a calma. E..., ele puxou o cão da arma, ...também acho que alma não existe. Mas - ele esperou para ver a reação que o "mas" causaria no outro, mas este já se borrava - se você diz alma querendo dizer das obscuras funções da mente, acho que pode ser cedo pra se falar de doença.

- Eu sabia que o senhor não seria precipitado.

- O que te parece, voltou o outro, enquanto fazia pequenos movimentos ligeiros com a arma para os lados, para mim o cinismo é um caminho sem volta. Uma vez que você abre mão de algum idealismo, alguma confiança estranhamente não-cínica, às vezes chamada crença, raramente volta atrás..., ele olhou para cima um instante, ...não conheço nenhum ex-cínico. Sob esse prisma, para chegarmos a doença, precisaríamos definir quanto o cinismo estraga a alma.

O outro já tem uma expressão lúcida, atenta.

- Você sabe que os outros medem o seu cinismo, continuou o homem debruçado no leito, arma em punho, quero dizer, quem te conhece. Você sabe o significado da palavra estragar? Saber você sabe, mas a origem, a etimologia da palavra? Eu não sei, e sacudiu com veemência a cabeça, mas me lembra ex- alguma coisa, tipo ex-mulher, mas repare que você está pressupondo que, se estragou, antes era melhor. O quê que eu tô dizendo: se cinismo é doença, o não-sínico é o quê?

O outro sério.

- É o quê, criatura?, e de tão irritado deu um tiro de advertência sobre a cabeça do outro, que replicou de imediato:

- É bobo, quero dizer, é um idealista.

- Está certo, disse o primeiro, mas quantos idealismos têm os homens? E digo aqui os homens, que as mulheres sabem bem outros tantos. Quantos idealismos você acha que o cínico perdeu?

- Todos.

- Um cínico completo!

- Exato.

- Não sei se acredito nisso, parece ficção. Mas diga-me: esse cínico que você está propondo, ele anda de elevador?

- Hein?

- Ele usa elevador, ele confia em elevador?

- Hum... sim?! Por que não?

- Se ele confia a própria vida numa máquina, numa ciência, de outra pessoa, então ele tem confiança em algo. Não é a confiança um tipo de idealismo?

- De maneira alguma... senhor.

Passa algum tempo, e o outro boceja.

- A confiança é algo que não existe para o cínico. Ele só pega o elevador porque é mais fácil que usar as escadas. Mas talvez... talvez..., o outro, que de assustado já não tem mais nada, olha para longe... talvez... lágrimas umedecem seus olhos, num esforço tremendo de especulação... talvez os cínicos tenham maior tendência para usar as escadas.

- Digamos que você é o cínico, interrompeu o outro, e eu sou o idealista. Você não se acha um doente?

- A minha doença não é o cinismo.

- Qual, então?

- Eu perdi a fé, e o homem chora.

- Sei, o outro coça o queixo com o cano de ferro enquanto olha pra cima, pensativo, Veja que engraçado, eu não me considero um homem de fé. E, no entanto, não sou cínico. Acho que conheço mais coisas do que você, coisas que me dão várias esperanças. A esperança abre um espaço para o idealismo.

- A esperança é um monstro, pronto para engoli-lo em vida, o outro tinha os olhos em brasa, era pura ira, A esperança é como a fé, uma coisa que eles te dão pra te acalmar! Procê não fazer besteira!

- É como as mentes inferiores pensam, de forma limitada, disse o outro. Novamente eu te pergunto, quantas esperanças têm os homens?

- A esperança de ser feliz.

- Creio que agora você já não tem mais nenhuma, e puxou de novo o cão do revólver (que tinha sido devolvido à posição inicial), Mas estamos perdendo o foco. Você perguntava se o cínico podia ser um doente. Acho que sempre haverão pessoas mais cínicas e menos cínicas. Em algum ponto o cinismo se torna doença? Acho que tudo em excesso pode ser prejudicial, e digamos que o cinismo não é assim como... o ar puro, o que acha?

- Você tem a oportunidade, a arma na mão, o poder é todo seu. Você não precisa se rebaixar ao cinismo. Para você o idealismo é um luxo, um privilégio!

- O problema das mentes inferiores, interrompeu o outro, enquanto recolocava as balas no tambor, fechando o olho esquerdo uma vez para cada projétil, está em que vocês não olham para longe, não procuram aprender mais a cada dia. O aprendizado é só uma maneira de encarar o mundo, e pode te dar várias esperanças, ao menos vários interesses.

- O senhor me acha viciado na minha mediocridade? Ora, por que um homem perde a fé? Deixe-me contar-lhe uma história. Certa vez eu ia por uma estrada com pouco dinheiro no bolso. Pelo caminho vinham dois elementos suspeitos, que fariam correr a muita gente, ou no mínimo dispensá-los. Pus-me a conversar com eles. Eu, na verdade, estava com um primo bem mais novo que eu. Os homens perguntaram-me para onde ia, e de onde vinha. Respondi que ia adiante, e que vinha de uma festa, em companhia de meu primo. E você?, perguntei-lhe. "Eu moro por essas bandas", ele disse, "lá embaixo perto do banhado, entre aqueles casebres pobres". E estão aí também, aproveitando a noite? Estamos!, e ambos sorriram.

- Repare, continuou, que eles apenas conversavam, e era evidente a felicidade que aquela conversa produzia neles. Muitas vezes, os miseráveis se dão por satisfeitos em poder conversar com senhores tão nobres como eu, imagine como ao senhor ou ao rei! Há um ponto, em que muitos fatores se somam para derrubar uma auto-estima. Sua vida passa a ser um pesadelo, onde ninguém o olhará nos olhos, a não ser aqueles que odeia. O ódio, senhor, por que é? Todos serão odiosos, e ainda mais, e principalmente, aqueles com excesso de auto-estima! Sim, justamente esse tipo que na rua finge que não te vê. Isto torna o homem cínico: o desespero! Um ódio dolorido e doloroso, um redemoinho, onde o pior só traz o pior e o mal prolifera em mais mal! Este homem perde o pudor, perde a simpatia, perde a própria empatia - afasta-se de tudo e de todos, e arquiteta um plano. Vingança! é o que seu eu mais profundo repete, como a um mantra. Ele transfere todas as suas energias para o seu plano maligno, chegando a descuidar do próprio corpo, que antes era seu bastião mais sagrado, tão intensa é sua fúria, tão exclusivamente toma seu tempo e sua disposição, num processo cujo único fim... é a morte.

Ele olha para a frente, fitando o nada.

- Milhões morrem assim, concluiu.

- Então a doença é outra. O cinismo é apenas mais um de seus sintomas.

- E qual é a cura? Qual é a cura, senhor?, ele implorava.

- Sugiro um tratamento de choque. Quanto mais profundo o redemoinho, maior o choque.

- E o que fazer?

- Banho com máxima freqüência. Enquanto lavar o seu corpo, busque lavar a alma. Vasculhe cada fresta, enfrente cada problema de frente, com sabão e boas leituras. Você não deve se aferrar a dogmas. Lembre-se que tudo em excesso é prejudicial. Faça auto-análise, ou seja, livre-se daquelas causas, aqueles "fatores" que atacaram a auto-estima, um de cada vez. Se algum deles parecer insuperável, passe para o próximo. Você já está no processo de se afastar das pessoas? Ótimo! Afaste-se de vez! Mude de cidade, ou pelo menos de bairro. Procure cuidar de alguma coisa, plantas ou um animal. Trabalhe e durma, sem excessos. Se não puder mudar de casa, ao menos mude sua rotina. Mude ao máximo sua rotina. Crie um jardim. Cuide dele, e depois volte aqui.

O outro fitava-o com um misto de surpresa e apreensão.

- Mas há pessoas que fizeram tudo isso e continuaram cínicas.

- Creio que essas, na verdade, não desceram ainda o suficiente.

***

- Um homem sábio e justo como o senhor mataria um homem desarmado?

- Desarmado, talvez. POW!, acertou o outro no ombro. O outro cai e ele toma dele uma pistola, até então oculta.

- Mas em legítima defesa, é certo.

Com a arma do outro na mão esquerda, faz a mira entre os olhos: POW!

Moral da história: o cinismo pode até ser uma defesa, mas a melhor defesa, muitas vezes, é o ataque.

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