Saturday, March 10, 2007

O primo rico e a gramática pobre

Uma vez, dentro de uma aldeia de índios, eu tentava completar um dicionário que me ajudasse a entender a língua deles. Era comum que uma pessoa desse um nome de coisa ou animal ou planta de uma forma, e outra pessoa, do lado oposto da aldeia, desse uma variação, às vezes uma vogal ou uma consoante, os duas, diferente. Poderiam estar me enganando, como podia mesmo haver duas formas de falar a mesma coisa, como nós, ao dizer vasculante e basculante, ou sovaco e sobaco (e até mesmo suvaco e subaco, tudo se referindo à mesma axila). Lembro que comecei a argumentar com uma senhora, dizendo-lhe como outra pessoa havia dito diferente, e perguntando qual versão, possivelmente, estaria mais "certa". Ingenuidade a minha. Ela poderia continuar me enganando, como podia continuar sem entender o que eu queria dizer com a palavra "certa".

Crescemos numa sociedade que abriga e ama duas coisas que os índios desconheciam no tempo em que essa senhora aprendia a falar: a escrita e gente rica. Hoje deve haver uma relação entre a renda mensal de um indivíduo e sua pontuação no quadro Soletrando, do Luciano Hulk na TV, onde o objetivo é soletrar corretamente o maior númer de palavras, e o prêmio - cobiçado pelo que parecem ser estudantes menos favorecidos - cem mil reais. Outra coisa é pensar que a escrita tenha, historicamente, servido ao propósito de alargar, como uma cunha e martelo, o abismo que separa pobres de ricos; dominados e oprimidos de seus senhores e algozes.

Não havia versão "certa", com a qual eu pudesse "melhorar" o meu dicionário. Para melhorá-lo, eu devia anotar as duas ou mais versões existentes para cada palavra; de preferência, anotar também quantas pessoas falam cada versão, seus graus de parentesco e, num requinte antropológico, as posições de suas casas dentro da aldeia.

Uma coisa interessante que ocorre neste lugar é que se usa as palavras "gíria" e "língua" (no sentido de linguagem) como equivalentes. Ou seja, um índio dessa aldeia pode caminhar sete ou oito dias e chegar numa aldeia onde já se fala uma gíria bastante diferente. Várias palavras não guardam nenhuma relação entre si, embora denotem os mesmos sentidos. É o caso, por exemplo, de xita e xori, ambos significando irmão, companheiro, em diferentes dialetos Yanomami.

Quando perguntada acerca das diferentes palavras, e qual devia ser "preferível", a senhora respondeu apenas o que já havia dito, e que era assim que se dizia. Tive a impressão que ela não captou o meu sentido de "preferível", ou "melhor" ou "mais certo". Essas coisas, se é que existem para ela em relação à linguagem, existem de uma maneira bem distinta da qual existem para mim. Para mim, como para as pessoas da minha sociedade, decorar o máximo de palavras vale uma casa na praia e um carro do ano. Para ela, representaria apenas isolar-se de sua vizinha de frente, e dizer todas as palavras da mesma forma, a vida inteira.

Quem não conhece alguma história de um romance nascente, estrangulado pela mera menção de um "menas", ou qualquer variação que fira os princípios "pétreos" da gramática? Como se as línguas não mudassem!

Em nossa sociedade, nenhuma habilidade é tão valorizada quanto a boa escrita. Um "menas" dito no ar acaba sendo esquecido (e nem sempre é), mas escrito torna-se fixo, imutável, e decide o destino de seu autor, na escola, no trabalho, na vida.

As côrtes francesas reuniam-se em salões luxuosos e se sentiria pouco à vontade se entre eles uma única pessoa se vestisse ou portasse como um plebeu. De lá para cá não mudamos coisa alguma, e chega-se ao cúmulo de proibir a entrada de pessoas de bermuda ou camiseta em repartições públicas, cujos funcionários pertencem à elite financeira do país. Os legisladores, outra elite ainda mais rica, usam de inúmeros rodeios lingüísticos para ocultar seus interesses reais nas entrelinhas das leis que fazem "como representantes do povo".

Saber usar o ponto-e-vírgula, ou se as aspas finais entram antes ou depois do ponto, tornam-se armas fabulosas nas mãos de quem valoriza posses e discrimina a diversidade. Permite aos donos do poder garantir que os seus filhos, educados em meio às "boas maneiras", ganhem dos filhos dos outros por vias legais e tidas como respeitáveis. Os concursos públicos, por exemplo, aprovam em sua maioria filhos da alta roda, vários com sobrenomes estrangeiros exóticos, poucos (ou nenhum) Josés da Silva e Marias da Conceição. E, uma vez concursados, esses idôneos funcionários, servidores da nação (!), haverão de se divertir em sua própria côrte, longe dos olhares humildes que não sabem soletrar, e um dia terão poderes para diminuir a desigualdade, mas exigirão que os procuradores vistam ternos, e que os caipiras não sejam admitidos em suas salas com sua roupa de costume: bermuda e chinelo.

Até aqui a gramática tem servido bem a seu propósito de unir o país, para poder fatiá-lo de alto a baixo, num corte preciso e firme que poucos pobres poderão ultrapassar.

3 Comments:

At 1:04 PM , Blogger Prós said...

Interessante a discussão. E notei alguns erros provavelmente propositados "qeu" e "nenuma" no texto. Acho que a formalização de uma linguagem facilita a comunicação em um mundo globalizado, mas concordo com Saramago quando ele diz que os gramáticos são os que devem se adaptar às regras da linguagem e não as pessoas que devem se adaptar à gramática. Engraçado que ele diz isso seguindo estritas regras e quebrando também outras de uma forma lógica e bem organizada.

Não acredito que a relação entre vestimenta e linguagem seja tão fina quanto vc parece supor e acredito que muitos engravatados mal sabem escrever seu próprio nome corretamente. Lembro agora daquela piada em que o político troca o dia da reunião para segunda por não saber se sexta escreve-se com s ou x, se é que me lembro bem da tal piada.

Interessante saber que existe também algum tipo de soletrando em português, achei que isso fosse impossível. Lembro que via esses programas na Inglaterra e achava que eles jamais seriam possíveis de serem feitos em português pois aqui a relação entre escrita e fonética é muito próxima, ao contrário da lingua inglesa onde Leicester é lido como Lester e Crewe como Cru, para citar exemplos nos quais me estrepei quando estive por lá.

Sobre o Luciano ainda, creio que ele não se trata de um herói esverdeado e sim de um gancho, mas eu provavelmente estou errado, tanto quanto vc.

[]s!

 
At 3:58 AM , Blogger Rodrigo said...

Concordo com o Saramago, e sobre a roupa, acho que toda relação tem exceções, mas a relação existe. O terno serve para mostrar um status que só existe porque o cara sabia escrever. Pode até escrever mal, mas escreve melhor que os que escrevem mal e não usam terno. Acho que é por aí.

Gancho? Esverdeado? Entendi lhufas!

Flw!

 
At 4:00 AM , Blogger Rodrigo said...

Ah, os erros foram sem querer!

 

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