Sim, sonhava...
Acordo quase sempre antes do amanhecer, naquele momento mais tarde que o cantar dos galos madrugadores, quando o brilho do dia ainda não se vê, mas sentimos-lhe o cheiro. É difícil explicar. A luz traz o seu aviso antes de aparecer, como um abalo sísmico que é sentido pelos bichos muito antes de registrarem-lhe as máquinas. Ou como uma radiação eletromagnética que circunvolve o planeta à frente da luz, encurvando-se além da paralelidade de seus raios. Ou talvez seja só a minha imaginação.
Estava sonhando. É nessa hora da manhã que ainda é noite que o sonho ganha proporções épicas. É sempre urgente, é sempre fatal, é sempre essencial e imprescindível a fuga, a velocidade, o risco, a aventura. Meus sonhos são como filmes policiais, com passagens secretas, perseguições e lugares abandonados. Corro sobre os telhados e muitas vezes vôo. Telhados. Os telhados são a quintessência do não-lugar. São, numa imagem de satélite, as áreas mais extensas, sob as quais as pessoas vivem suas vidas ocultas. É a parte da cidade onde o urbanismo concede um espaço à natureza, onde os pombos se reúnem para conversar, onde os gaviões espreitam suas chances de caçada, onde os urubus abrem suas asas depois das chuvas para se secar. Sobre um telhado um homem é mais que um homem. Digo, está mais próximo das aves, quiçá dos anjos, está mais próximo da adrenalina e da morte, desafia as leis do universo e do destino, pode-se dizer que questiona, ainda que metaforicamente, tudo. Então sonho com telhados. De tijolos, de concreto, de vidro. Planos, inclinados, curvos, circulares, com escadas que se abrem no meio, com escadas que o alcançam pela beirada, completos ou com buracos, cobertos de lonas pretas esvoaçantes na brisa da madrugada, com caixas d'água ou caixas de força, com pára-raios e telescópios. Um dia escreverei a história natural dos telhados, onde retratarei toda a sua diversidade e seu vínculo com a ecologia global.
Mas sonhava. Por vezes sonho com conspirações, conspirações gigantescas, onde minha vida não vale nada frente a um objetivo grandioso. Os planos são obscuros, mas no escuro todos os gatos são pardos, então a claridade, a obviedade do plano vem de sua própria escureza. Como explicar? Não há explicação, pois é um plano secreto. E como nos filmes policiais, é preciso agir rápido, não há um instante a perder. Na próxima porta, na próxima página, na próxima esquina, estará a resposta para tudo, a chave do enigma, a solução para o que nos aflige. Mas é preciso dizer em voz alta, é preciso esclarecer, questionar, acionar as palavras mágicas, tudo depende dessa frase: e me pego falando dormindo. Começo a frase com a convicção de uma ação nobre, e a termino com a certeza da estultice, já acordado, observando os lampejos eletromagnéticos da manhã que ainda não chegou.
Sim, sonhava. Descobriremos se nossos sonhos são normais? Mas o que é ser normal? O que seria uma pedra normal? Mas os sonhos e as pessoas são tão mais complicados que as pedras! Sei que sonhava, e meu sonho tratava de não-pessoas, de não-lugares, de companhias sem rosto, sem nome e sem história, que se avolumavam num movimento orgânico que só fazia sentido enquanto conjunto, massa, população, estatística, história. Meus sonhos são macro. O fim do mundo. Já tive alguns sonhos com o fim do mundo. No último deles aparecia uma primeira explosão ao longe, que tingia de vermelho todo o céu e fazia as pessoas gritarem. Depois uma outra explosão, mais próxima, e ainda assim distante, mas perturbadora. Uma coluna de fogo de um vermelho espesso, sólido, ergueu-se até o infinito, e o tremor da terra fez gritar mulheres e homens, crianças e animais. Era eu o único impávido, observando a gigantesca estrutura de metal, uma espécie de perna mecânica, verde e angulosa, impelida pela explosão até as alturas, girando e avançando em nossa direção, com a espessura talvez de uma cidade, e o peso de uma cordilheira, girando e chegando mais perto, tornando-se nítida nos detalhes, no ângulo de suas bordas, no formato de seus parafusos, girando e girando... pensei que cairia sobre nós e seria finalmente o fim. Melhor morrer esmagado num intervalo de tempo zero do que agonizar pela radioatividade ou pela fome, pelo desespero na escuridão, pelo ataque desesperado de outras vítimas famintas e aterrorizadas... Mas a perna verde e angulosa caiu a meia distância entre a explosão que a cuspiu aos céus e nós. Caiu na areia irregular do deserto, contra um céu de ficção-científica, espalhando areia e gerando tempestades, mas na nossa cúpula (estávamos em uma cúpula) ninguém se feriu. Aquilo me desanimou um pouco - viveríamos ainda por quanto tempo naquele recinto superlotado e histérico? Havia uma piscina vazia e suja, e o buraco do ar-condicionado estava repleto de pedras... Era a única saída, mas não podíamos passar, nem instalar um aparelho para nos refrescar, ora bolas! O mundo se acabando, e ainda as mesmas decisões mundanas tomarão os últimos instantes da humanidade sobre a Terra. Depois chegou algum gângster num carrão, e eram três, atirando sobre nós, e quando procurei a arma com mira telescópica para matá-los, descobri que estava sem pilhas e sem balas. A avó que tentou me ajudar não conseguia acalmar as crianças, nem as crianças encontravam as pilhas... As pessoas certas não estavam no lugar certo, mas isso não é novidade...
A novidade foi que sonhava. E quando acordei, a manhã apenas começava a iluminar as nuvens róseas que timidamente ganhavam peso sobre a madrugada que se recolhia. O ar estava frio e úmido, as folhas dos açaís molhadas de orvalho. Vejo açaís na minha janela. Pensei que podia caminhar até a praia quase deserta e assistir aos pescadores que voltavam de suas jornadas noturnas com os peixes que alimentariam suas famílias naquele dia que nascia. Mas só puxei o lençol e virei a cabeça para o outro lado, que ainda havia muitos mundos por começar e outros tantos por terminar...
Adoção interrompida
Um casal homossexual adotou uma criança, que em seguida lhe foi retirada por uma decisão judicial. A alegação foi de que o casal não seria "normal" o bastante <
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=468CIR001>. A decisão do juiz procurou resguardar o que muitos entendem por "a normalidade da vida da criança."
O normal, como se sabe, é aquilo que é desejado por todos, como torcer para o Flamengo, ter uma nega chamada Tereza, um fusca, um violão. O normal é não ter "desvios" de comportamento - desvios em relação ao normal, é claro.
Mas como? A pobreza não é normal? Seria, por isso, desejável? Quero dizer, não existem "normais" desejáveis e indesejáveis? Bons e ruins? O juiz que tomou o casal homossexual da criança (o que é pior do que tomar a criança do casal homossexual), certamente esse juiz tem uma idéia muito bem definida sobre o que é normal, e também do que é bom. Em sua cabeça magistral, uma infância sujeita a imprecações e vergonhas não seria uma infância feliz, o que o fez concluir que é melhor que a criança espere a próxima família.
Humanitário como é esse juiz, ele já deve ter providenciado uma família digna, esposa e esposo, talvez funcionários públicos com boa situação financeira, estáveis. Ou quem sabe professores universitários, que colocarão o filho numa dessas universidades públicas federais, onde todos os jovens têm a liberdade de ignorar as mazelas e a violência do mundo. Onde, aliás, crescem acostumados com a idéia de que algumas pessoas são naturalmente melhores que outras.
Talvez essa criança tenha o seu índio para queimar, acreditando ser só um mendigo. Ou a sua empregada doméstica para apedrejar, pensando tratar-se de uma prostituta. Certamente será educada nos melhores círculos cristãos. E caso aconteça dessa criança assim mesmo se revelar homossexual (acontece nas melhores famílias), será forçada a negar e envergonhar-se de sua natureza, pois todos sabemos que "ser normal", assim como assemelhar-se aos demais, é muito mais importante do que ser o que se é.
E de qualquer forma, quem foi que disse que apenas o sofrimento pode ensinar a humildade?
Futebol do mundo
João torce para o Flamengo. Quando vai ao Maracanã assistir a um Fla x Flu, João gosta de ver um bom jogo. Gosta de ver belos dribles, ver raça, gosta de gols. Mas gosta mais quando o seu time ganha. Pode até não admitir, dependendo de quem estiver por perto, mas prefere um jogo medíocre que termine Fla 1 x 0 Flu do que um jogaço que morra no empate.
José também é flamenguista, mas não é roxo. Ao contrário de João, prefere um bom jogo que propriamente a vitória. Claro que a vitória é importante, mas para ele nada paga um jogo medíocre. Melhor nem ir ao estádio.
Posso perguntar: qual a relação entre futebol e religião? A religião exige que seu fiel seja um João. Josés não são bem-vindos. Josés acabariam com as religiões.
Ora, toda religião é uma mitologia, ou seja, o estudo de símbolos e mitos que ordenam e justificam a vivência social. Para José, o que Jesus falou tem muito a ver com os ensinamentos de Buda ou do hinduísmo. Não importa se é verdade o lado metafísico da história, se há um Deus nos olhando ou se a tal Trindade é mesmo santíssima. Importa viver com justiça e dignidade, e aproveitar das religiões o que seus ensinamentos têm de melhor. Ele sabe ver a moral da história sem precisar acreditar nas fadas. Para João, se as fadas não existirem, a história perde a moral.
Mas será que se trata de José ser mais inteligente que João? Ou apenas sua educação foi diferente? De alguma forma, José percebeu as inconsistências das religiões "reveladas" (judaísmo, cristianismo e islamismo), e sua ânsia de verdade foi mais forte que o hábito de fechar os olhos e crer cegamente. ("Crer cegamente" não é já um pleonasmo? Como "crer" a não ser fechando os olhos para as evidências contrárias à crença?) Aos seus olhos, as pessoas que acreditam em uma única religião (ou que preferem o Flamengo ao futebol em si) só o fazem porque têm algo que precisam esquecer. Precisam de um consolo, um remédio forte que as faça esquecer como viveram suas vidas aquém dos seus sonhos.
Cada João vive sua vida na expectativa de agradar ao senso de "normalidade" dos demais, e assim nunca ousam derrubar tabus em prol da própria felicidade. Vivem segundo as regras, mas um dia percebem que sua vida foi menos do que poderia ter sido, e como conviver com a própria consciência se não houver outra vida, outra chance de fazer melhor?
Não satisfeitas com a vida que escolheram para se tornarem aceitas, para serem "normais", precisam da esperança numa vida futura para não enlouquecerem. Precisam de uma segunda chance, de preferência num mundo imaginário, onde talvez poderão resolver os seus problemas. Afinal, neste mundo é impossível resolver seus problemas e continuar "normais" aos olhos dos outros, porque nossos problemas nascem quando ignoramos que somos todos diferentes, únicos.
Seu Deus é como o grito de Goooool! - a única coisa justa num mundo injusto.
O que talvez ele (o João) não saiba, é que sua condição é milenar e hereditária. Seu Deus é ao mesmo tempo a saída e a entrada do labirinto. Os velhos têm em Deus sua sanidade, mas também a insanidade dos jovens. A partir do momento em que ligam sua moral à infalibilidade desse deus, emperram as engrenagens - roubam dos jovens o direito de compreender com originalidade a moral de um mundo em mutação, imprevisível, impraticável.
O mundo com Deus obriga os rebanhos a viverem conforme uma lei, quando cada coração traz em si uma lei particular. Incapazes de seguir esta lei própria, só o que restará será a espera de um outro mundo, um mundo que aqui foi inviabilizado.
A solução para o impasse é transformar Joãos em Josés: aprender a conciliar muitas religiões, como conciliamos muitos ditos populares por vezes contraditórios (quem espera sempre alcança, mas quem não arrisca não petisca, por exemplo). Ao mesmo tempo, aprender a tratar as religiões como mitologias, e não como verdades supremas. Num país "laico" como o nosso, como é aceitável que se trate as religiões de origem africana, como o candomblé, como superstições, e o catolicismo como verdadeiro, respeitável, sagrado; seja na mídia, nas escolas ou dentro dos órgãos públicos?
A constituição está aí, a ciência e a filosofia estão aí, basta vontade de quebrar o ciclo vicioso milenar que dá suporte a preconceitos e mutila as possibilidades de tantas vidas. Viva o pensamento livre! E viva o futebol arte!