Monday, January 21, 2008

Sim, sonhava...

Acordo quase sempre antes do amanhecer, naquele momento mais tarde que o cantar dos galos madrugadores, quando o brilho do dia ainda não se vê, mas sentimos-lhe o cheiro. É difícil explicar. A luz traz o seu aviso antes de aparecer, como um abalo sísmico que é sentido pelos bichos muito antes de registrarem-lhe as máquinas. Ou como uma radiação eletromagnética que circunvolve o planeta à frente da luz, encurvando-se além da paralelidade de seus raios. Ou talvez seja só a minha imaginação.

Estava sonhando. É nessa hora da manhã que ainda é noite que o sonho ganha proporções épicas. É sempre urgente, é sempre fatal, é sempre essencial e imprescindível a fuga, a velocidade, o risco, a aventura. Meus sonhos são como filmes policiais, com passagens secretas, perseguições e lugares abandonados. Corro sobre os telhados e muitas vezes vôo. Telhados. Os telhados são a quintessência do não-lugar. São, numa imagem de satélite, as áreas mais extensas, sob as quais as pessoas vivem suas vidas ocultas. É a parte da cidade onde o urbanismo concede um espaço à natureza, onde os pombos se reúnem para conversar, onde os gaviões espreitam suas chances de caçada, onde os urubus abrem suas asas depois das chuvas para se secar. Sobre um telhado um homem é mais que um homem. Digo, está mais próximo das aves, quiçá dos anjos, está mais próximo da adrenalina e da morte, desafia as leis do universo e do destino, pode-se dizer que questiona, ainda que metaforicamente, tudo. Então sonho com telhados. De tijolos, de concreto, de vidro. Planos, inclinados, curvos, circulares, com escadas que se abrem no meio, com escadas que o alcançam pela beirada, completos ou com buracos, cobertos de lonas pretas esvoaçantes na brisa da madrugada, com caixas d'água ou caixas de força, com pára-raios e telescópios. Um dia escreverei a história natural dos telhados, onde retratarei toda a sua diversidade e seu vínculo com a ecologia global.

Mas sonhava. Por vezes sonho com conspirações, conspirações gigantescas, onde minha vida não vale nada frente a um objetivo grandioso. Os planos são obscuros, mas no escuro todos os gatos são pardos, então a claridade, a obviedade do plano vem de sua própria escureza. Como explicar? Não há explicação, pois é um plano secreto. E como nos filmes policiais, é preciso agir rápido, não há um instante a perder. Na próxima porta, na próxima página, na próxima esquina, estará a resposta para tudo, a chave do enigma, a solução para o que nos aflige. Mas é preciso dizer em voz alta, é preciso esclarecer, questionar, acionar as palavras mágicas, tudo depende dessa frase: e me pego falando dormindo. Começo a frase com a convicção de uma ação nobre, e a termino com a certeza da estultice, já acordado, observando os lampejos eletromagnéticos da manhã que ainda não chegou.

Sim, sonhava. Descobriremos se nossos sonhos são normais? Mas o que é ser normal? O que seria uma pedra normal? Mas os sonhos e as pessoas são tão mais complicados que as pedras! Sei que sonhava, e meu sonho tratava de não-pessoas, de não-lugares, de companhias sem rosto, sem nome e sem história, que se avolumavam num movimento orgânico que só fazia sentido enquanto conjunto, massa, população, estatística, história. Meus sonhos são macro. O fim do mundo. Já tive alguns sonhos com o fim do mundo. No último deles aparecia uma primeira explosão ao longe, que tingia de vermelho todo o céu e fazia as pessoas gritarem. Depois uma outra explosão, mais próxima, e ainda assim distante, mas perturbadora. Uma coluna de fogo de um vermelho espesso, sólido, ergueu-se até o infinito, e o tremor da terra fez gritar mulheres e homens, crianças e animais. Era eu o único impávido, observando a gigantesca estrutura de metal, uma espécie de perna mecânica, verde e angulosa, impelida pela explosão até as alturas, girando e avançando em nossa direção, com a espessura talvez de uma cidade, e o peso de uma cordilheira, girando e chegando mais perto, tornando-se nítida nos detalhes, no ângulo de suas bordas, no formato de seus parafusos, girando e girando... pensei que cairia sobre nós e seria finalmente o fim. Melhor morrer esmagado num intervalo de tempo zero do que agonizar pela radioatividade ou pela fome, pelo desespero na escuridão, pelo ataque desesperado de outras vítimas famintas e aterrorizadas... Mas a perna verde e angulosa caiu a meia distância entre a explosão que a cuspiu aos céus e nós. Caiu na areia irregular do deserto, contra um céu de ficção-científica, espalhando areia e gerando tempestades, mas na nossa cúpula (estávamos em uma cúpula) ninguém se feriu. Aquilo me desanimou um pouco - viveríamos ainda por quanto tempo naquele recinto superlotado e histérico? Havia uma piscina vazia e suja, e o buraco do ar-condicionado estava repleto de pedras... Era a única saída, mas não podíamos passar, nem instalar um aparelho para nos refrescar, ora bolas! O mundo se acabando, e ainda as mesmas decisões mundanas tomarão os últimos instantes da humanidade sobre a Terra. Depois chegou algum gângster num carrão, e eram três, atirando sobre nós, e quando procurei a arma com mira telescópica para matá-los, descobri que estava sem pilhas e sem balas. A avó que tentou me ajudar não conseguia acalmar as crianças, nem as crianças encontravam as pilhas... As pessoas certas não estavam no lugar certo, mas isso não é novidade...

A novidade foi que sonhava. E quando acordei, a manhã apenas começava a iluminar as nuvens róseas que timidamente ganhavam peso sobre a madrugada que se recolhia. O ar estava frio e úmido, as folhas dos açaís molhadas de orvalho. Vejo açaís na minha janela. Pensei que podia caminhar até a praia quase deserta e assistir aos pescadores que voltavam de suas jornadas noturnas com os peixes que alimentariam suas famílias naquele dia que nascia. Mas só puxei o lençol e virei a cabeça para o outro lado, que ainda havia muitos mundos por começar e outros tantos por terminar...

3 Comments:

At 3:52 PM , Blogger Cezar Heavy said...

Cara,seu blog é muito bom!!
Ta no meu perfil em feeds no ato!!!

Ass: Heavy

 
At 12:01 AM , Anonymous Anonymous said...

Minhas noites de insônia não serão mais tão desagradáveis! Parabéns mesmo pelo blog e pelas belas reflexões nos posts.

 
At 3:30 AM , Blogger AlexF.Carl said...

Nossa, que viagem !!
Mt bom o blog. Parabéns.

 

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