Wednesday, July 02, 2008

A lei da selva

Quando cheguei aqui a primeira impressão foi a umidade. O ar abafado e quente quando saí do aeroporto foi como o golpe de uma divindade brincalhona, a noite não era para se temer, mas para viver. Pelas ruas, pessoas de outras raças, outras peles, cores, roupas coloridas, faces mais serenas, eu quase poderia dizer uma alegria guardada calma em cada olhar, se soubesse tanto. E as carnes, a opulência das carnes em cada desconhecido foi para mim como sair do limbo e adentrar finalmente o paraíso.

Poderia estar em outro país, e meu assombro provavelmente não seria maior. Anos depois, sinto ainda parte desse assombro por estar num lugar que não é o meu. Por mais que admire estas terras, não sou delas filho, talvez adotivo, mas não, somos diferentes demais. Manaus, terra dos manaós e demais tribos que resistiram ao assédio civilizatório -- ao grande estupro histórico -- resistiram o quanto puderam, e ainda hoje resistem, rodeados pela sociedade sem alma que não os entende, nem a si mesma.

Para entender essa gente é preciso entender aqueles primeiros nativos que preferiram afogar-se nos rios que viver uma vida de escravidão. A vida aqui não tem esse valor intrínseco e subjetivo, incalculável, dos cristãos. Uma vida não é uma moeda -- isso talvez sirva bem aos tocadores de rebanhos. Aqui, não. Aqui a vida vale o quanto é vivida, a vida precisa ser plena, rica de sonhos e conquistas, transbordante de liberdade. Cada segundo tem valor, e só assim se poderia medir o que aqui não é medido, apenas vivido.

A beleza da vida aqui não está nas posses, mas no ser. Não está na transcendência, no além-vida, na esperança, na fé, no amanhã, a beleza aqui vive, pulsa no agora, na imanência, no viver. O cotidiano aqui é verde, não cinza. O horizonte aqui é de distância e possibilidades, não de concreto e impedimentos. Manaus, terra sem lei? Não hesito em dividir os homens e as mulheres em duas categorias: os que vivem da lei, e os que preferem viver sem ela.

Para o resto do mundo, a lei. Regras, códigos, obrigações morais, sociais e éticas. Detalhes, rigores, prescrições detalhadas e uniformidade do espírito. Para o resto do mundo, todas cabeças uma virtude, todos eus um só Deus. Para o resto do mundo os caminhos estão marcados no chão, não pise na grama, não saia do previsto. Para o resto do mundo, normas.

Aqui, terra sem lei? Aqui, o improviso, o imprevisto, a necessidade momentânea, o impulso do desejo, a satisfação do próximo, reescrevemos a lei a cada instante, pois os instantes mudam. Aqui, a diversidade, o indivíduo como divindade máxima, a compreensão e o respeito, a "tolerância" (embora essa palavra nos leve a pensar que apenas toleramos o que mal podemos suportar). Aqui, a ausência dos conceitos prévios, aqui a permissividade, o instinto.

Conhecimento é poder, quem não o sabe? E ainda assim o conhecimento não é buscado, não é querido nem valorizado. Pobre mundo de idiotas! Há o conhecimento acadêmico, dos livros, bibliotecas e universidades. Hipotenusas e átomos, sistemas e conceitos. Acima desse há o conhecimento do corpo, da tradição, da experiência. Ditados, provérbios, conselhos de avós. Num mundo em mudança, a tradição perde alguns pontos, mas bem poucos. Porque no fundo o ser humano não muda, seus desejos e suas necessidades e solidões serão sempre assim, importunos. E há, por fim, acima de todos, o conhecimento da natureza, a sabedoria dos bichos, as adaptações de bilhões de anos de evolução.

Na minha janela canta o sabiá, que à noite vai se deitar. Da mesma maneira eu também sou feito de ciclos, eu tenho uma natureza como a de um mar ou uma floresta. Eu sou um sistema natural e não quero meus rios canalizados, minhas árvores substituídas por monoculturas, minha atmosfera poluída, meu solo erodido. Quem entende a natureza entende a completude, sente-se satisfeito e vivo, sente-se suficiente. Ainda que o tédio por vezes nos acompanhe, quem entende a natureza jamais vai buscar na destruição desta o afeto de seus vícios. Quem entende a natureza a respeita, e sendo todos nós parte dela, o respeito é global, respeitamo-nos como espécie, cada indivíduo, não importa sua roupa, suas origens, seu modo de falar, seu grau de instrução. O mais humilde é o mais próximo da natureza, e por isso mesmo o maior de todos nós. Aquele que tem o carro mais caro, esse se perdeu, e encontra apenas num vício particular um sentido que não preencherá seu coração vazio.

Entre os dois mundos, fico com aquele sem leis. As leis não servem à humanidade, mas apenas aos que estão por cima. Esses, que não conhecem as periferias do mundo, os subterrâneos da experiência, sabem apenas do seu mundinho de carros caros e comidas raras, suas conversas ilustradas e desapaixonadas, sua vivência em busca de, jamais em. No mundo com leis, espera-se das pessoas que elas nos entendam, que concordem conosco, que se alinhem a nós, que formem um time, que vistam a camisa, que dancem no ritmo, que formem, com "o nosso lado", um todo coerente e homogêneo, uma máquina artificial cujo objetivo não se conhece. No mundo sem leis, as pessoas são o objetivo. Tudo aqui é mais simples, mais direto e transparente. Não se trata de esconder a verdade, nem de procurá-la, mas tão somente de vivê-la. Talvez não seja para mim tal vivência, eu que fui criado num sistema sedento de respostas. Mas aprendi aqui que a vida só vale a pena quando podemos ser nós mesmos em qualquer lugar, custe o que custar.

4 Comments:

At 6:11 PM , Blogger Fred Benning said...

PARABENS KRA PELO TEXTO,É ISSO AI MESMO,VIAJEI MUITO POR LA NOS ANOS 70. AQUILO LA É A PURA VERDADE DE SER. GRANDE ABRAÇO

 
At 2:47 PM , Blogger Rodrigo said...

Valeu, cara. Nos anos 70 devia ser melhor ainda hein? Aqui, curti muito seu site do Woodstock, vou debulhá-lo com calma... Abraço!

 
At 7:19 AM , Blogger Prós said...

Doido demais esse texto! Muito poético, sensível, muito bom!

A vida é um fim em si mesma e ponto e deve ser vivida da melhor forma possível, conjugada no presente do indicativo. A filosofia manaura é a representação viva de uma obra poética.

Várias frases de efeito bem colocadas. Passa um sentimento agradável de liberdade e lirismo. Sei lá, gostei muito!
[]s!

 
At 9:01 PM , Blogger Rodrigo said...

Pô bicho, isso que é elogio hein? Valeu! Vale a pena conhecer Manaus, principalmente depois que vc entende essa "representação de obra poética". []s!

 

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