A tempestade
- Yari kë a!Ouvi a voz doce de mamãe, mas não abri os olhos. Me enrolava na rede e tentava dormir, ainda. Sentia frio.
- Yari kë a, mamãe repetiu, dessa vez mais baixo. Era mesmo uma tempestade. As grossas gotas de chuva faziam trepidar a palha de caranã sobre nós. Que bom que trocamos tudo, porque estava velho, já, e agora estaríamos todos molhados, ainda.
Resolvi abrir os olhos. Meu irmão maior já acendera o fogo, mas os outros ainda dormiam. Já era cedo, quase. Não vi nenhum fogo acesso nas outras partes do xapono. Meu irmão maior foi o primeiro a acordar. Ele sempre acordava primeiro, não conseguia dormir bem, acho.
- Mãe, me dá xibé?, pedi. Ela me estendeu a cuia, que tomei com gosto. Farinha e água, não era nenhuma paca moqueada, mas matava a fome e a sede de uma só vez. Senti menos frio. Me espreguicei na rede, ouvindo a tempestade que aumentava. Às vezes o vento parecia uma onça esturrando bem ali debaixo da rede do meu tio. Fiquei com medo.
Como meu irmão maior já aprontara o fogo, resolvi descer da rede e me sentei do seu lado.
- Por que você acorda primeiro todo dia, irmão?, perguntei baixinho, para não acordar os outros.
- Não sei, ele disse. Não consigo dormir.
- Está doente?
- Não sei, respondeu de novo. Seu olhar estava perdido no fundo das chamas. O que estaria vendo ali?
Mamãe veio e sentou do meu lado, tirando piolhos. Adorava quando ela fazia isso, mas não quando os comia, achava nojento.
- Eh, irmão? Você tem piolhos? Deve ser eles que não te deixam dormir, eu disse.
- Não são os piolhos, irmão. É lá dentro da cabeça, acho.
Tudo que meu irmão dizia era certo. Então ele devia ter piolhos dentro da cabeça, ora! Mas seu olhar continuava procurando no fogo alguma coisa. Mamãe dizia que ele já tinha idade pra ter uma mulher só dele, e que estava chegando o dia de fazer o seu ritual para virar homem grande.
Rituais... Eu não gostava daquilo. Meu irmão já viajava sozinho para caçar, já tinha matado onça e também foi fazer guerra da última vez. Ele já era um homem grande, para mim. Mas só seria para os outros no dia em que enfiasse sua mão no cesto com formigas terríveis; aí levaria suas picadas, várias delas, até desmaiar. Aí então ele talvez tivesse febre, ainda, até o outro dia, e só aí acordaria de novo, agora melhor, e todos comeriam caça e beberiam caxiri, até os bebês, e os velhos cheirariam o paricá e veriam ali o futuro do meu irmão maior sendo anunciado pelos espíritos xamânicos.
Um dia seria a minha vez, também, mas eu não gostava de pensar naquilo. Temia as formigas terríveis, sonhava com elas, às vezes. Meu irmão maior, não, ele não tinha medo delas.
Perdido em meus pensamentos, topei com o olhar do meu irmão. Ele parecia querer me dizer alguma coisa, mas voltou a se perder dentro do fogo. Mamãe tirava piolhos, ainda. E lá fora a tempestade caía, cada vez mais forte.
No outro dia, quando acordei, ele tinha ido embora.
(continua...)
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