Por que estudar chinês
Sempre fui amante do conhecimento, seja pela sua utilidade prática, seja pela beleza abstrata que todo saber traz em si quando se completa. Desde cedo fui aprendendo inglês, a "língua universal", que estava presente onde quer que eu olhasse desde a infância. Recebi motivação da música, dos vídeo-games e da informática. Hoje, tenho acesso a um conteúdo realmente global da Internet, graças ao aprendizado desse idioma.
Agora resolvi aprender chinês, e tento entender porque alguns conhecidos consideram excêntrica, quem sabe descabida, ou supérflua, essa minha decisão. Explico, pois, o que me motivou a desejar entender essa língua tão diferente da nossa:
1) Sempre desejei conhecer uma espécie inteligente de outro planeta. Entre os livros de ficção científica que li (obrigado, Sagan, Asimov, Clarke), ficava pensando como poderíamos traduzir sua linguagem, entender e nos fazer entender. Teriam eles conceitos fundamentalmente diferentes dos nossos, intraduzíveis, alguma outra visão do universo? Se fizéssemos contato, eu não dormiria enquanto não me alistasse no rol daqueles que estudariam o novo mundo. Como não fizemos ainda nada dessa natureza, não preciso me desapontar. Há, na Terra mesmo, uma infinidade de culturas tão diferentes da nossa quanto nem é possível imaginar. Outros valores, outra forma de ver o ser humano, o mundo; tudo, enfim. O que poderia ser mais distinto que o extremo oriente? Poderia aprender qualquer língua oriental para conhecer por dentro sua cultura, mas...
2) A China é uma das nações mais antigas da Terra. Seus primeiros impérios se ergueram na mesma época da Grécia antiga e do antigo Egito, com a diferença de que só conhecemos estes últimos por vestígios, pelo material herdado por outras culturas, que aproveitaram seu conhecimento apenas parcialmente. A China se mantém uma unidade há mais de cinco mil anos, e o núcleo de sua cultura não se dissolveu nem se contaminou por conquistas externas, pelo contrário, foi a língua chinesa que se difundiu e influenciou a evolução de diversas outras línguas por todo o oriente. Se um oriental desejasse conhecer o ocidente na maior extensão possível, faria sentido que estudasse grego e latim. Para quem deseja compreender o oriente, o chinês é a língua a ser escolhida.
3) Quando comecei a aprender inglês, já fazia idéia das portas profissionais que esse conhecimento me abriria. Como, de fato, abriu. Não apenas portas profissionais, mas um mundo inteiro de conhecimento, como as pesquisas que faço na internet, nas quais consigo muito mais informação, e de melhor qualidade, em inglês do que em português. Hoje, a China já é a terceira economia do mundo, seus produtos chegam em todas as cidades do planeta, não é difícil imaginar como um profissional que saiba o chinês se destacará em qualquer mercado que deseje.
4) Depois de assistir a alguns filmes de kung fu, comecei a entender que a filosofia das artes marciais vai muito além da pancadaria. O equilíbrio entre a mente e o corpo é nítido em tudo que os orientais transmitem com sua arte, e algo que nossa sociedade materialista, capitalista, consumista, desequilibrada ocidental há muito perdeu, se é que algum dia teve.
5) Li certa vez num livro de Stephen Jay Gould, o famoso e finado paleontólogo e divulgador da ciência, que o mundo reconhecia um certo número de espécies, gêneros e famílias de animais fósseis, número este compilado a partir de uma extensa e trabalhosa revisão do material depositado em museus de todo o mundo, menos da China. Quando os dados da China foram acrescentados depois, o número de fósseis conhecidos simplesmente duplicou. Ou seja, a China, sozinha, guarda tantas espécies, gêneros e famílias de animais fósseis quanto o resto do mundo inteiro. Dá para ter uma idéia do tamanho de titã a que nos referimos, e de seu esmero quanto à aquisição e organização do conhecimento.
6) O papel, a imprensa, a bússola e a pólvora, para citar apenas quatro invenções que mudaram o mundo, vêm da China.
7) O catolicismo foi uma praga que dizimou a diversidade cultural no ocidente. Padres espanhóis queimaram todo o conhecimento dos incas, maias e astecas, por considerarem-no profano. Fizeram o mesmo com as línguas e costumes de milhares de pequenos grupos nativos das Américas. Ainda hoje mantêm uma cultura que associa o sexo com uma culpa inventada, criando intermináveis gerações de encabulados problemáticos freudianos incompletos e perplexos. Nada disso existe na China, uma vez que o budismo não parte de um conceito abstrato como o pecado, mas do conceito concreto de sofrimento, e das maneiras para resolvê-lo - caso o indivíduo assim deseje, naturalmente. Não há coerção, não há estupro da mente ou da liberdade. Não há inferno nem fantasmas a assombrar o imaginário coletivo.
8) Aprendemos a considerar a democracia como o ápice de nossa evolução social e política até o momento. Contudo, a democracia está mais para uma festa dos nobres, onde ora uma ala, ora a outra, nos governa, e todas se entendem nos bastidores e fazem seus planos para manter o povo impossibilitado de erguer o pano. Até aí tudo bem, numa monarquia ou absolutismo não seria diferente. O problema é como uma nação trata de seu futuro. Nas democracias, as táticas de governo e suas políticas só planejam para as próximas eleições. Num governo mais duradouro o planejamento se estende indefinidamente, o que parece bom. Poderia se falar de tirania, neste caso, mas a democracia é apenas a tirania disfarçada de algo melhor. O Brasil é a nação democrática onde se paga uma das maiores cargas tributárias do mundo. Temos trabalho escravo, analfabetismo funcional de mais de 70% dos brasileiros, uma das piores distribuições de renda do planeta, cerca de 4 mil homicídios por ano, índice superior a muitas guerras declaradas. Somos o quarto país do mundo em total de estradas, e o quinto em proporção de estradas NÃO asfaltadas. E mesmo nossas estradas asfaltadas são lastimáveis, e ignorando inúmeros impostos, ainda aceitamos que se cobre pedágios em estados como São Paulo - o único lugar, aliás, onde se dirige em estradas decentes neste país. Os Estados Unidos, teoricamente a democracia mais consolidada do planeta, tiveram duas eleições presidenciais fraudadas, e todo mundo sabe disso. Para concluir, onde não há educação e a mídia monopoliza a opinião pública em torno de seus interesses, a democracia não é uma instituição séria nem confiável. As pesquisas mostram que a maioria dos eleitores nos EUA não "acreditam" (leia-se entendem) a evolução biológica. E nós não estamos muito melhor. Portanto, falar mal do absolutismo socialista dos outros é fácil, mas eu já estou farto de ver só o capitalismo por dentro.
9) Cada caractere aprendido pode ser um aprendizado maior que uma fábula moral ou história do gênero. O caracter para 'ocupado', por exemplo, une os caracteres 'coração' e 'oculto'. Afinal, aquele que tem pressa está ocultando seu coração e mente de si mesmo e dos demais, e talvez por isso seja a pressa inimiga da perfeição. Outro exemplo, o caracter para 'palavra' vem dos caracteres 'crime' e 'boca', pois as palavras são crimes que cometemos pela boca. O silêncio não vale ouro?
A Esperança da Civilização na Arte
Por muito tempo acreditei que a solução para os nossos maiores problemas estivesse na educação. Educação de qualidade para todos, é o sonho de todos os idealistas. Mas é muito difícil definir o que seja "educação de qualidade", por vários motivos. Um deles é que uma nação industrializada deve ter uma educação bem diversa de uma nação agrícola, como uma nação capitalista - onde cada um deve ter o potencial para competir - de uma socialista - onde o trabalho de um não deve superar, mas complementar o dos demais.
Parece-me que uma educação de qualidade deveria, em linhas gerais, dotar o indivíduo de um senso crítico, onde ele pudesse distinguir a verdade do mito, o bom-senso do exagero, e acima de tudo pudesse continuar sua educação por si próprio. Tudo isso, contudo, não é apenas uma utopia, mas uma utopia que apenas funcionaria num mundo utópico. Permita-me explicar. Se vivêssemos em um mundo em que a boa-fé predominasse, poderíamos esperar que as pessoas divulgassem a verdade e extinguissem, aos poucos, as mentiras. Muitos cientistas inclusive pensam ser esse o papel da ciência, mas não é. Seria, no nosso mundo utópico. Neste mundo, o mundo animal e amoral em que vivemos, o papel da ciência é desenvolver a técnica, e o da técnica, desenvolver e concentrar o poder.
Mesmo as pessoas educadas nas melhores escolas são treinadas apenas para servir e perpetuar o poder. Vivemos num mundo onde a distância entre ricos e pobres cresce continuamente, creio que exponencialmente seria até mais adequado - seja dentro de cada cidade, dentro de cada país ou entre os países.
A "educação de qualidade" como a conhecemos não nos liberta disso. É, na verdade, uma educação tecnológica e competitiva, que eleva aqueles cujos instintos - por mero acaso - correspondem ao que o sistema espera deles: calcular planilhas, estudar leis, bolar projetos, analisar e resolver problemas complexos. Os melhores alunos, assim, recebem os melhores salários, afastam-se do povo e dos problemas do povo, abaixam a cabeça perante seus superiores e acostumam-se a uma variedade de mordomias, de tal forma que não poderiam mais modificar o sistema, mesmo se quisessem. Já estão tão afastados do povo que não sabem mais o que este precisa; e se soubessem, não arriscariam perder suas mordomias propondo mudanças que não agradariam aos poderosos.
Por outro lado, a "educação de qualidade" é tão espessa, extensa e complexa que afasta amedrontados todos aqueles cujos instintos não correspondem a ela. Ainda pior, convence-os de que a educação é um processo difícil e doloroso, e que a aquisição de conhecimento, a leitura e os estudos de qualquer natureza estão reservados para uma qualidade "superior" de pessoas. Aceitam, por isso, que seu trabalho seja mal-remunerado, e não têm a quem recorrer, por mais que seus direitos sejam desrespeitados.
Muitos dos que se formam nas "escolas de qualidade", depois de alguns anos servindo o sistema em posições confortáveis, seguras e bem-remuneradas, não têm mais um tipo de inteligência ágil e versátil, comum entre pessoas sem estudo algum, mas que precisam sobreviver num mundo imprevisível e inóspito. Este tipo de inteligência, capaz de resolver problemas inusitados e variados (não apenas lógicos ou matemáticos, por exemplo), parece ser a inteligência original da espécie, livre de categorias rígidas e modernas de pensamento (como o cartesianismo e o atomismo), que causaram grandes avanços em certas áreas do saber, mas que talvez não devessem ser a forma predominante de pensamento de toda a humanidade. Me vem à mente a figura do médico ou engenheiro inteligentíssimo que não entende uma piada trivial, devido talvez à forma praticamente adestrada como sua mente categoriza e processa informação recebida; diferente do espírito da piada em questão, acessível a uma percepção mais livre.
Recapitulando, a "educação de qualidade" não produz inteligência, mas especialização. E ainda que a especialização seja útil e desejável, sua universalidade não o é.
Quando refletimos sobre os problemas sociais, deve nos vir à mente a figura da motivação. O que motiva alguém à ganância ou ao roubo? O que motiva a corrupção, a violência, o descaso, a inveja? Resumidamente (e por isso mesmo provisoriamente), penso ser a passagem do tempo e a fuga do tédio. O ser humano é um animal que precisa de novidades. Não podemos fazer a mesma coisa durante um ano inteiro, ou mesmo por um dia inteiro, a não ser que se trate de algo que gostamos muito. Também sabemos que apenas uns poucos felizardos trabalham com o que gostam. Como resultado, temos uma população gigantesca procurando o que fazer com o seu tempo livre, ricos procurando novas formas de gastar, pobres procurando um dinheiro extra e diversão barata. Todos os problemas que daí advêm, a desigualdade social, o consumo de drogas, a criminalidade, etc., têm sua origem neste fato comum: a passagem das horas é intolerável para o ser humano médio, que precisa então criar as mais diversas ocupações.
Se a intolerância ao tédio é uma constante humana, o problema deve ser outro, e parece ser, de fato, as limitadas opções disponíveis em nossa sociedade. Para os pobres: o entretenimento perverso da televisão, suas novelas medíocres, filmes violentos e estúpidos, humor apelativo, jornalismo omisso, etc.; a cerveja e a cachaça que anestesiam momentaneamente os problemas; o cigarro que tranqüiliza e debilita a saúde; o sexo sem proteção nem consciência que multiplica a pobreza e dissemina doenças; a religião que tenta evitar todos esses problemas com um véu de alienação e hipocrisia. Para os ricos, todas essas soluções também estão à disposição, e ainda tudo o que o dinheiro pode comprar, incluídos aí a inveja dos pobres e a impunidade à lei. Portanto, a "educação de qualidade", até hoje, só tem replicado o sistema, permitindo a passagem de uma minoria irrisória pelo funil de ascenção social, e mantendo a maioria alheia a soluções criativas para a necessária fuga do tédio.
A salvação da arte
A classe que me parece mais imune ao tédio, e principalmente, que menos depende da classe social e do poder aquisitivo, são os artistas. Pobres ou ricos, os artistas sempre têm em sua arte uma válvula de escape ao tédio, que é, ao mesmo tempo, uma forma de representação da sua realidade e de educação múltipla e não-alienante para os demais.
É muito comum vermos os jovens sendo desestimulados à arte. "Os estudos são mais importantes!" repetem as mães, mas todos os anos milhares de formandos alistam-se em empregos sem futuro e sem prazer, cujo salário não pagará seus escapes ao tédio - coisa que sua arte agora morta faria de graça.
O mundo corre tão desenfreado rumo a coisa alguma que não percebemos que todas as crianças são artistas. Apenas se não retraíssemos suas ambições artísticas, nem forçássemos seu aproveitamento nas escolas, ainda mais de forma competitiva; e veríamos a arte se multiplicar e ocupar o espaço que é seu desde os primeiros desenhos nas cavernas; veríamos a arte conquistar o espaço que a TV monopolizou, homogeneizou e imbecilizou, tudo em favor do sistema que buscamos reformar.
A questão da "boa" e da "má" arte deve ser deixada para os futuros críticos. Desde que, evidentemente, eles tenham em seu currículo alguma obra que também possamos criticar. Afinal, o objetivo de tudo isso não é outro senão passarmos o tempo.
A modernidade tem pressa - pobre modernidade!
O poeta caminha entre o emaranhado de cipós da caatinga de sua consciência. Não quer ser impelido para a frente, pois na floresta não há "frente", há um espaço, apenas. Mas o mundo corre, é o que dizem, e até as crianças querem já ser as primeiras a chegarem; até elas nos impelem. O mundo não corre, este é o fato da natureza, mas o mundo que corre não quer saber de fatos. O mundo que não corre, o mundo mundo, mundo mesmo, gira. Gira em torno de si mesmo, para não chegar a lugar algum. Gira em torno de si num sistema que caminha espaço adentro, em direção ao nada escuro da Via Láctea, para depois de sabe-se quantos anos, voltar ao mesmo lugar, um ou dois anos-luz mais pra cá ou mais pra lá, quem notaria a diferença? Se a própria Via Láctea caminha rumo a lugar algum, como bilhões de outras galáxias... ah! Afirmarão então que o Universo se expande, e com isso quererão justificar sua caminhada para a frente, seu progresso, sua noção de direção e sentido tão bem definidos, a impelir-nos, os outros que não queríamos ainda ir "para a frente".
Não existe para a frente. Não existe progresso. Não existe essa direção certa e necessária a que nos impelem com fúria cega. A não ser que sejamos lemingues, aqueles mamíferos estúpidos que se reproduzem até a exaustão, para em seguida pularem num abismo, preservando assim o alimento da geração seguinte, descendentes dos poucos que não pulam. Não, não somos lemingues, somos piores, muito piores! Nossa divina vaidade nos impede de pularmos nos abismos que poderiam salvar o futuro, mas não nos impede de cavarmos o Abismo com nossos próprios calcanhares e tecnologias "futuristas". Antes era nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma. Hoje querem que tudo se miniaturize. E está aí seu futuro, sua direção certa e infalível. Tecnologia. Eletrônica. Progresso.
Como uma turba de lemingues apavorados, corremos rumo ao futuro e nos esquecemos de olhar para trás e ver o que ficou, o que faltou, o que destruímos e o que deveríamos reconstruir. Um Yanomami me propôs um enigma: "o homem branco não sabe nada, o Yanomami sabe tudo". Ora, a minha sociedade branca e estúpida não sabe nada? Sabemos até o peso atômico do vanádio! Sabemos a densidade das luas de Júpiter! Sabemos em tempo real quando as celebridades se casam e quando se separam! Sabemos tirar foto com o celular, e se já não temos mais alma, como poderíamos roubá-la? Como, não sabemos nada? O Yanomami sabe muito, disso não posso duvidar. Depois de muita luta, conseguiram seu pedaço de terra, onde vivem como sempre viveram, e com tempo de sobra para escolher o que mudar e o que manter. Reúnem-se para conversar, fazem festa quase todos os dias, não precisam usar gravata, não se cansam nem se estressam por um trânsito monstruoso. Suas crianças nadam como peixes, seus adultos caçam como predadores; as crianças têm a seriedade ingênua dos deuses, e os adultos, a despreocupação alegre das crianças. Como poderíamos saber alguma coisa, se não sabemos mais nem isso?
Movimento, movimento. Qual autoridade nos ensinou a pensar que o movimento é melhor que o repouso? Que a mudança é melhor que estar parado? A igreja é inimiga de todas as formas de pressa, nos lembrou Antônio Callado, e está aí há milênios. Ao menos isso poderíamos aprender com ela. Não deveríamos parar para pensar? Como os gregos, que podiam até limpar a bunda com a mão, mas ao menos *paravam*, que fosse num pé só, para pensar.
O poeta não tenta derrubar os cipós, nem cortá-los. Apenas se desvia deles, com assombro e admiração. Com uma certa inveja, talvez, de criaturas tão perfeitas que tiram sua vida de uma existência pendente e despreocupada. A floresta-caatinga estava aqui muito antes dele, e muito depois que ele se for, uma parte dela restará, que sejam suas árvores, que sejam suas sementes, que sejam seus micróbios, que seja o pó. Mas o poeta nada levará por muito tempo, apenas o desgosto de ver que todos ainda correm, e correm, e correm, e correm, e correm, e correm, e correm...
O valor de genes e memes
Os filósofos estão confusos. O mundo está atravessando uma mudança tão vertiginosa nos costumes, impulsionado pelas possibilidades abertas pela tecnologia, que nenhuma opinião parece segura ou duradoura o bastante para que nos decidamos por ela. Por um lado, velhos preconceitos se multiplicam como reflexo e resistência à mudança - um fenômeno parecido com a inércia ou o atrito da física, algo que era de se esperar. Por outro lado, pensadores buscam entender o mundo e encontrar ordem no que parece um caos crescente.
Num mundo de religiões em conflito, onde a diversidade de pensamentos ganha espaço, voz e imagem no ciberespaço, a destruição da moral proposta por Nietzsche, ainda no século XIX, nunca foi tão atual. Sua proposta era a busca da verdade em nós mesmos, a derrubada dos ídolos, o questionamento das verdades que persistiram por milênios no coração da humanidade e que, infelizmente, ainda encontram eco na maioria das mentes destes dias conturbados em que vivemos. Chegamos ao ponto em que o pensador que busca a verdade, que quer se desvencilhar de todos os dogmas, pensa não haver mais, afinal, certo e errado, bem e mal, quaisquer valores definitivos nos quais possamos nos apoiar para livrar-nos da vertigem que nos enfraquece. Tudo é relativo, ele clama. As palavras e idéias - os assim chamados memes - são tão variáveis e livres quanto os genes que dão forma à matéria viva que nos cerca. E igualmente amorais. A beleza está na diversidade, e não há senão preconceitos, pontos de vista, opiniões enviesadas por interesses. Nada é absoluto, nada é fixo, nada é derradeiro.
Esse raciocínio é correto até certo ponto, creio que na mesma medida em que podemos dizer que o ar é transparente. Mas as montanhas vistas ao longe não se tornam azuis com a distância? Até onde, então, o ar ainda é transparente?
O que é a moral, afinal? Não são os nossos preconceitos sobre o que é certo e errado? O que poderia ser mais relativo? Um predador que persegue a presa concebe a fome como o seu mal, enquanto a presa concebe a saciedade do predador como o seu mal. Cada lado tem sua moral peculiar. O mesmo ocorre com as pessoas, onde a felicidade de uns nem sempre corresponde à felicidade dos outros. Onde, então, haverá espaço para o bem? Não foram poucas as tentativas feitas para estabelecer uma tábua de valores duradoura. Temos a Regra de Ouro confuciana, temos os Dez Mandamentos bíblicos, temos as legislações de cada país, temos o utilitarismo de Stuart Mill e muitas outras idéias que, infeliz ou felizmente, se excluem mutuamente. Não há ponto pacífico, eis o motivo porque estamos aqui, pensando, escrevendo e lendo. Caso contrário comeríamos e dormiríamos.
Peguemos o utilitarismo: o que pode ser o ideal para a humanidade como um todo? Talvez o máximo de conforto para todos, com o mínimo de desigualdade entre ricos e pobres. A idéia é simples, mas parece que, quanto maior o conforto introduzido em uma sociedade, maior se torna a desigualdade entre ricos e pobres. Então qual extremo seria preferível, uma nação de pobres por igual, onde a dignidade da maioria não seria ultrajada pelo excesso e pelo desperdício de uma minoria, ou uma nação de ricos e pobres, onde alguns, ao menos, teriam acesso a um certo nível de conforto? Está claro que é uma pergunta sem solução única, e cada pessoa há de achar mais justa uma configuração particular. O que todos estamos de acordo, ao menos, é que o conforto é uma conquista pela qual é justo trabalhar, e que a igualdade social traz vantagens para a sociedade.
Bem, se concordamos com isso, podemos nos consolar pelo fato de nem tudo ser tão relativo assim. Algumas verdades parecem mais auto-evidentes do que outras. Coragem e covardia são facilmente reconhecíveis em qualquer canto do planeta, assim como bom humor e ira, admiração e desprezo, aflição e serenidade. E não é de se estranhar que seja assim - somos humanos. Compartilhamos a maior parte dos genes que nos constróem. Esperar que a moral não exista, apenas por ser parcialmente relativa, é como esperar um automóvel que saia sem rodas ou motor da linha de montagem - diferenças superficiais não poderiam suprimir o básico.
Podemos sempre, ou quase sempre, nos colocar no lugar de outra pessoa e entender os motivos que a fizeram agir de uma certa forma. E se não o podemos fazer, é mais devido a preconceitos que por alguma incapacidade fisiológica. Talvez por falta de experiência, mas podemos esperar que inúmeras pessoas com experiências semelhantes, ou nem tão semelhantes assim, pudessem fazê-lo em nosso lugar. O fato é: a moral é relativa e varia segundo o grupo cujos interesses consideramos. Se considerarmos todos os lados envolvidos numa disputa, ainda assim é possível encontrarmos uma solução moral que se adapte à nossa visão global da moral. Em termos práticos, trata-se geralmente de defender ora uns, ora outros interesses. Se pudermos conceber a justiça como o equilíbrio da força nas mãos de todos, então não haverá dificuldade em tomar uma decisão moral para cada caso em particular.
E sempre haverão casos aparentemente insolúveis, em que os dois lados apresentam um equilíbrio de forças. Talvez não caiba a ninguém, nesse caso, senão às partes envolvidas, chegarem a um acordo. Mas acredito que esses casos são a minoria, e que a justiça a ser feita é fácil de ser apreendida por qualquer pessoa, em qualquer lugar e época. Confiarmos em nossos instintos, nesses casos, tende a ser o melhor juiz.
Ora, então a moral deixou de ser relativa. Apenas o escopo analisado é que define onde há e onde não há uma moral bem definida. E numa sociedade altamente dividida como a nossa, com a minoria montada sobre as costas dos escravos de sempre, só não toma partido quem não quer...