Sunday, August 08, 2010

A mais pura verdade

O velho chefe índio estava sentado na sua cabana dentro da reserva, fumando seu cachimbo cerimonial, de olho em dois agentes do governo estadunidense que tinham pedido uma entrevista.

- "Chefe Águia Negra, talvez o senhor possa nos ajudar a solucionar uma grande dúvida: onde foi que o cara-pálida errou?", perguntou um agente. "O senhor vem observando os cara-pálidas por 90 anos, já viu as guerras e os avanços tecnológicos. Viu o progresso e toda a destruição que vem causando..."

O chefe só mexia com a cabeça, afirmativamente.

O agente continuou:

- "... e levando em conta todos esses eventos, na sua opinião, onde o homem branco errou?"

O chefe olhou pros agentes por quase um minuto e respondeu calmamente:

- "Quando homem branco encontrou terra peles-vermelhas, índio corria por ela num belo cavalo que pegava de graça, nadava no rio e cachoeira, não tinha imposto nem dívida, muito búfalo, muito urso, muito peixe, mulher de índio fazia todo trabalho, médico tribo era de graça, homem índio passava dia todo caçando e pescando e a noite toda trepando".

Então se recostou mais e sorriu. E fulminou:

- "Só cara-pálida imbecil achar poder melhorar sistema desse!"

[copiado daqui]

Saturday, August 07, 2010

De excessos intelectuais

"Quanto mais baixo estiver um homem do ponto de vista intelectual, menos intrigante e menos misteriosa parecerá aos seus olhos a existência em si mesma. Ao contrário, como ela se dá e no que ela consiste, tudo enfim, vai lhe parecer tão-somente parte da ordem usual das coisas. Isso se deve ao fato de que seu intelecto permanece essencialmente fiel ao seu destino original, que é ser prestativo à vontade como instrumento de suas motivações e, portanto, estreitamente ligado ao mundo e à natureza como parte integral deles."

- Schopenhauer (1844): The world as will and representation. Trad. E. F. J. Payne. Vol. 2. Nova York, 1958, p. 161.

"Nós estamos em meio a uma corrida entre a destreza humana quanto aos meios e a sandice humana quanto aos fins. Dada uma insanidade suficiente quanto aos fins, todo aumento de destreza para alcançá-los é deletério. A espécie humana sobreviveu até aqui graças à ignorância e à incompetência; mas, dados conhecimento e competência aliados à insanidade, não há certeza alguma de sobrevivência. Conhecimento é poder, mas poder para o mal não menos que para o bem. Segue-se daí que, se a sabedoria não avançar na medida do conhecimento, ao avanço do saber corresponderá o avanço do pesar."

- Bertrand Russell (1952): The impact of science on society. Londres, 1976, p. 110.



Admiro muito mais Russell que Schopenhauer, e essas duas passagens ilustram isso. Claro que cada um deles é fruto de seu tempo, e Schopenhauer foi da era do Mistério, enquanto Russell foi da era da solução dos maiores mistérios da vida. "De onde viemos?" Darwin e Wallace mataram a charada, e a humanidade e a filosofia nunca mais foram as mesmas. Além dessa diferença, Schopenhauer era o tipo de intelectual que não alcançou a sabedoria de grandes mestres como Laozi (suposto autor do Tao Te Ching), Buda ou Confúcio. Na sabedoria desses e de outros mestres, o grande sábio se parece com uma criança (Confúcio, por exemplo, era chamado Kung-fu-zi, sendo que zi significa criança; o mesmo acontece com Lao-zi). Depois de muito se aventurarem nos labirintos da língua, nas charadas da lógica, nos abismos da filosofia, todos acabaram retornando ao simples, não tendo escolha a não ser acolher o mundo e a Natureza, fazendo-se "parte integral deles". Assim, o que Schopenhauer desejava era um acréscimo de intelecto, enquanto o sábio, ao buscar o tao, "deixa algo para trás a cada dia" (Tao Te Ching, cap. 48 - "Na busca do conhecimento, a cada dia algo é aprendido. Na busca do Tao, a cada dia algo é abandonado.").

Assim, não é que devemos deixar de aprender ou abandonar a curiosidade pelos fenômenos e maravilhas da Natureza. Mas perceber a armadilha do intelecto, os infinitos meandros da intelectualidade que não levam a lugar algum, e podem, na pior das hipóteses, afastar uma pessoa de boa índole do mundo e da Natureza. O "destino original" de que fala Schopenhauer, "ser prestativo à vontade como instrumento de suas motivações" pode receber várias interpretações, sendo para mim a mais profunda delas relacionada às motivações humanas universais, ou seja, viver em paz, entre amigos, com tranquilidade, alimento e lazer. A ganância que invade e domina alguns é um fenômeno mais raro, portanto menos universal que o primeiro, e está provavelmente mais ligada ao excesso de intelectualidade do que à sua falta.

"Abandonemos a santidade e a sabedoria,
e o povo será beneficiado cem vezes;
abandonemos a benevolência e a moralidade,
e as pessoas recuperarão o amor e a bondade naturais;
abandonemos o gênio e os lucros,
e não haverá mais ladrões nem roubos.
Esses três, contudo, não são suficientes.
Devemos então nos concentrar em:
enxergar os elementos básicos,
abraçar o que é simples,
evitar o egoísmo, desejar pouco.
Abandonemos a necessidade de estudos e a tristeza acabará."

- Tao Te Ching, 19.

Friday, August 06, 2010

Homossexualidade, natureza e antinatureza

Durante séculos os homossexuais sofreram perseguições, assassinatos e uma silenciosa humilhação, injustiças que ainda estão muito longe de acabar. Até hoje muitos não podem se abrir com ninguém para tentar entender por que seu desejo sexual é diferente da maioria. Agora que começam a ter espaço para falar, as pessoas que se incomodam com a diversidade sexual posam de vítima por não poderem continuar a perseguição! Essas pessoas conhecem quantos cientistas pesquisando as causas da homossexualidade? Por que nunca citam alguém, ao invés de defender absurdos sobre o que desconhecem?

"Um dogma, um mantra, sobre o qual não se pode refletir", como é por vezes chamada a defesa dos homossexuais, é na verdade aquele que diz que a homossexualidade é nefasta, apenas porque a Igreja condenou o sexo a ser uma ferramenta político-social para o aumento da manada, e não mais um prazer ligado à liberdade individual. Se você conhecer vários gays e perguntar a eles quando eles descobriram esse sentimento, esse desejo, se e como tentaram controlá-lo, etc. vai ver que o que muda com o tempo são os termos que a mídia usa, não a libido das pessoas.

Se alguém, querendo explicar a anatomia dos órgãos sexuais, usa a expressão "órgaõs feitos para" está implicando um criador (ou uma criadora? ou vários criadores e criadoras? aí depende da sua mitologia). Se a objetividade for buscada, chegaremos às ciências, e nesse campo descobriremos que vários órgãos evoluíram sob uma adaptação e modificaram-se por outros usos (fenômeno que Stephen Jay Gould chamou de exaptação). Tudo isso faz parte da natureza.

Outra coisa que faz parte da natureza é justamente a variação. Já parou para pensar porque mais ou menos 10% da população é canhota? Por que não 50%? Ou zero? Uma minoria das onças-pintadas são negras. Entre os animais ditos eussociais (como formigas, abelhas, vespas, cupins e alguns mamíferos), parte dos indivíduos pode não se reproduzir. Traduzi este parágrafo da wikipedia em inglês (verbete Eusociality):

"O fenômeno da especialização reprodutiva é encontrado em vários organismos. Geralmente envolve a produção de membros estéreis da espécie, que se encarregam de tarefas especializadas, efetivamente cuidando dos membros reprodutores. Pode se manifestar no surgimento, em um grupo, de indivíduos cujo comportamento (e às vezes anatomia) são modificados para defesa do grupo, incluindo auto-sacrifício."


Quem sabe a espécie humana é eussocial? Isso explicaria a origem do homossexualismo, que por estar presente em todas as culturas conhecidas requer uma explicação. O prazer sexual entre estes indivíduos (estéreis e/ou homossexuais) ainda está presente, mas por não gerarem filhos têm tempo extra para se dedicar a outras coisas que beneficiam o grupo (sabemos, por exemplo, que vários grandes artistas e cientistas eram homossexuais, como Oscar Wilde, Mario de Andrade e Alan Turing, para citar bem poucos). Mas é claro que outras hipóteses podem ser levantadas, bem mais sensatas do que buscar justificar o idealismo do filósofo Platão - herdado pela igreja - de que apenas uma forma de comportamento é a "ideal".

Quando alguém escreve ironicamente "o ato sexual humano também tem objetivo reprodutivo, alguém nega?" - é claro que ninguém sensato negaria - o que acontece é o contrário, e essa palavra "também" é esclarecedora: o que muitos negam é que o ato sexual humano tenha outros objetivos, não reprodutivos. E daí condenam o homossexual ao opróbrio, ou seja causam uma tragédia na vida de milhões de pessoas, apenas por ignorância e por seguir cegamente o que a igreja inventou para seu próprio benefício político e dos impérios que assim ergueu.

A homossexualidade não vem por cópia ou instrução. A maioria dos homossexuais nasce em famílias "normais" (ou seja, estatisticamente majoritárias, com pais, mães e irmãos). Muitos nunca viram um gay, mas sabem que algo vai diferente dentro deles desde muito cedo - tão cedo como os 5 anos de idade. Revertendo esse tipo de argumento, se o homossexualismo for mesmo parte da natureza humana (e tudo leva a crer que seja, em alguns indivíduos) você forçar esses indivíduos a viverem como heterossexuais gerará sofrimento para eles e para seus futuros cônjuges. Isso sim, é uma "educação deficitária".

Outra coisa, ao comparar humanos com outros animais, cada traço deve ser comparado dentro do seu próprio contexto ecológico, adaptativo, fisiológico, comportamental e evolutivo. A maioria das comparações feitas por leigos são incorretas por não levarem nada disso em consideração. Quando se ilustra que o comportamento homossexual existe em várias espécies, está se mostrando que ele não é "apenas" uma cultura humana. Agora, se alguém acha que deixar uma criança crescer sem nenhum pai e nenhuma mãe (as crianças esperando adoção são mais numerosas que os casais aptos a adotar) é certamente melhor do que permitir sua adoção seja por uma mãe solteira, um pai solteiro ou um casal homossexual, é algo a se perguntar a essas crianças depois que elas chegam na adolescência sem ter recebido nenhum amor pessoal e exclusivo.

Você nunca viu fêmeas de animais em situações homossexuais? Dê uma olhada no comportamento dos chimpanzés bonobos (Pan paniscus). Ao contrário dos chimpanzés comuns (Pan troglodytes), onde um ou dois machos dominam a hierarquia do bando, as fêmeas de bonobo criam laços estreitos através da satisfação mútua do prazer sexual - masturbam-se umas às outras - e se unem também contra qualquer macho que queira liderar o bando. Tornam-se assim, graças ao sexo não reprodutivo, animais mais pacíficos. Considerando que nenhuma das duas espécies é mais próxima de nós na árvore evolutiva, talvez possamos escolher qual tipo de comportamento desejamos para nós mesmos. A natureza é cheia de pródigas lições de humildade, será por isso que a destruímos? Para que não machuque nossa ignorância prepotente?

Há quem compare uma pessoa com mal de Parkinson a um homossexual, dizendo que nenhum dos dois pode adotar uma criança. O que mais uma pessoa com Parkinson não pode fazer? Pode dirigir? Pode trabalhar? Pode cantar, dançar, ir à praia, correr, tomar sol, discutir ética, política, filosofia, apreciar arte, divertir-se, fazer festas? Tudo isso um homossexual certamente pode. E não precisa tomar remédios para nada disso.

No final ainda é preciso tocar no delicado assunto da pedofilia. Seria fácil para mim dizer que não tem nada a ver com o homossexualismo, e na maioria dos casos não tem mesmo. O mais comum são homossexuais (homens) gostarem de outros homens com características masculinas (pêlos, músculos, ereção, desejo sexual, voz grossa, etc). Mas alguns gostam de garotos. Ainda assim, é preciso separar os pedófilos que se sentem atraídos por crianças de 6-7 anos dos que preferem a faixa etária de 12-14. Afinal, nesta fase os garotos já batem punheta. Não sabemos agora, mas é possível que a iniciação sexual tenha ocorrido bem cedo com outros membros mais velhos do mesmo grupo durante grande parte de nossa jornada evolutiva - da mesma forma como acontecia/acontece entre tribos "primitivas" cuja cultura foi praticamente destruída pelo colonizador cristão "dono da verdade" (vão ver a vida sexual dos índios brasileiros para se informar). Não será proibir o acesso ao sexo até os 16 ou 18 anos uma perversão muito maior e mais prejudicial que a iniciação precoce? Não será esse tipo de repressão que gera em alguns adultos esses desejos que são então chamados de desviantes? Quem dirá não serão os preconceitos de certas mitologias que posam de verdades absolutas. Precisamos de pesquisa antropológica aqui. Ainda assim, depois que separarmos o que pode existir de "natural" e o que pode existir de "desvio" nesta única palavra - pedofilia - ainda restará a homossexualidade, a relação sexual de consenso entre dois adultos independentes e livres. E sobram ainda os achismos, preconceitos e heranças de uma religião opressora que já começa errada ao destruir o legado cultural dos povos precolombianos como se fosse a dona da verdade, dona do mundo e dona da libido universal.


Entretanto, temo que tenha escrito demais para nada. As pessoas que detratam os homossexuais fazem isso por acreditarem na "santa madre" igreja. Fazem isso porque são incapazes de abrirem livros e fazer pesquisas que lhes dariam um pensamento próprio, que fatalmente as tornaria críticas das crenças arraigadas entre os demais membros do seu grupo, e claro, as fariam sofrer por isso, embora muito menos do que sofrem os homossexuais vítimas dessa maioria medrosa. Não existe argumento lógico que faça essas pessoas enxergarem as manipulações, os interesses políticos, as reviravoltas históricas e toda a podridão que acompanha esses homens "de bem". Não há argumento que os faça perceber que sua mitologia favorita é apenas uma entre muitas, e que é apenas uma mitologia, e não a realidade - essa sim, clara e cristalina ao nos mostrar que a natureza é rica em diversidade, não em ideais.

Sunday, August 01, 2010

Ciências humanas ou literatura?

Por que as ciências humanas não estão conseguindo tornar a sociedade um lugar melhor? Ou por que as ciências humanas parecem tão pálidas quando comparadas à evolução da técnica que parece nortear todo nosso desenvolvimento social?

Podemos falar de uma "culpa" das ciências humanas em diversos pontos lastimáveis da história e da sociedade atual?

Vejamos algumas citações:

"Um jornalista é um homem que sabe explicar aos outros o que ele próprio não entende." - Otto Maria Carpeaux (1967)


"A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questão; mas fazem de tudo para que se acredite no contrário." - Italo Calvino (1981)


"Interpretar as interpretações emprega mais trabalho do que interpretar os textos, e existem mais livros sobre livros do que sobre qualquer outro assunto: tudo o que fazemos é glosar uns aos outros. Há abundância de comentários, mas escassez de autores. Aprender a entender os entendidos se tornou o principal e mais celebrado aprendizado da nossa época; não reside nisso o fim último dos nossos estudos?" - Montaigne (1592)



Antes do nível superior, os jovens saem do Ensino Médio, a maioria deles tendo estado muito mais ocupados com seus próprios hormônios, namoros, brigas, problemas familiares e insegurança quanto ao futuro do que com toda a carga de conhecimento que supostamente deveriam aprender. Mesmo um jovem realmente estudioso, se tiver interesse em aprender todas as disciplinas ministradas, não aprenderá nenhuma delas a não ser superficialmente, como qualquer graduado em ciências reconhece quando compara seu currículo de nível superior com aquele do Ensino Médio.

Então pegamos como exemplo um estudante de graduação em filosofia. Ao longo de quatro ou cinco anos, ele estudará desde os pré-socráticos, passando por Sócrates, Platão e Aristóteles, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, Bacon, Espinosa, Hume, Locke, Rousseau, Kant, Schoppenhauer, Nietzsche, Wittgenstein e muitos outros - todos ocidentais, todos filósofos. Dificilmente conhecerá o pensamento mitológico dos diferentes povos, ou ainda Averróis, Hermes Trismegisto, Confúcio, Laozi, Buda e tantos outros grandes pensadores não-ocidentais. Dificilmente conhecerá o suficiente dos trabalhos em física de Newton, Galileu, Copérnico, Kepler, Einstein e tantos outros, nem os trabalhos em química de Lavoisier, Mendeleiev, Bohr, Schrödinger, Pauling, Pasteur e tantos outros, ou mesmo os trabalhos em biologia de Buffon, Lamarck, Mendel, Darwin e Wallace, Watson e Crick, Lorenz, Mayr, Wilson e tantos outros, sem citar ainda algumas outras áreas do saber como geologia, antropologia, geografia, história e linguística. O que este estudante aprenderá em seu curso de filosofia? Quantos filósofos lerá em suas próprias obras, e sobre quantos lerá apenas comentários? Quantas dessas obras lerá no idioma original, e se ler traduções, quantas traduções diferentes chegará a comparar? Ao ler comentários, terá lido comentários escritos por quem leu toda a obra na língua original, ou apenas comentários de comentários?

Suponhamos que nosso estudante ideal (ou o médio, tanto faz aqui) esteja estudando Aristóteles. Diz-se de Aristóteles que foi o primeiro a reunir todo o conhecimento da Antiguidade, fazendo um verdadeiro sistema filosófico. Em que condições estão os nossos filósofos, quero dizer, os nossos comentadores de apreciar o trabalho deste Filósofo se, 1) não lêem grego, 2) não conhecem o conhecimento que existia na época de Aristóteles e 3) não conhecem todas as ciências atuais relacionadas à síntese buscada pelo Filósofo. É de se imaginar que um estudo sobre Aristóteles seja, portanto, um pouco da leitura do próprio (traduzido uma, duas ou três vezes), complementada pela colagem de diferentes comentários, cada qual retratando apenas uma e outra faceta do Homem, não sendo possível resolver assim nenhuma das múltiplas contradições que deverão surgir.

Será essa a causa de hoje as ciências humanas estarem dominadas por um paradigma relativista, segundo o qual as mais diferentes interpretações devem ser todas levadas em conta? Se já era humanamente impossível ler toda a obra de Aristóteles, os cientistas e pensadores antes dele (que lhe forneceram material) e depois dele (que corrigiram os erros dos primeiros), agora deve-se ler ainda todos os intérpretes de todos estes, o que inclui, mas não se restringe a: liberais, conservadores, capitalistas, marxistas, comunistas, socialistas, feministas, ambientalistas, construtivistas, desconstrutivistas, estruturalistas, posestruturalistas, e assim por diante.

Temos, portanto, a formidável tarefa de compreender o mundo a partir de uma biblioteca inteira com milhões de referências cruzadas. Mas também temos a alternativa de começar a elencar as bases do conhecimento, tentar separar o joio do trigo, que aparentemente era o projeto original do próprio Aristóteles. Mas como?

Parece que o problema, se não foi criado por, foi certamente ampliado pela especialização necessária à manutenção da sociedade excessivamente técnica em que vivemos. Biólogos aprendem biologia, físicos aprendem física, cientistas humanos aprendem ciências humanas - mas não os campos inteiros: cada profissional aprende apenas uma pequena parcela de sua área. Assim é possível fazer os trens andarem, as bombas bombearem, os antibióticos curarem, os microprocessadores evoluírem, as antenas captarem, os celulares ligarem, etc. Mas quem resolve os problemas emocionais que tudo isso gerou? Quem mede o quanto somos infelizes e nos sentimos vazios, quando comparados aos nossos ancestrais mais "pobres", porém mais humanos, mais plenos? E quando chegamos às ciências humanas, quantos são aqueles que, por exemplo, entenderam a teoria da evolução por seleção natural - darwinismo - antes de serem apresentados à ideologia desumana do darwinismo social? Quantos leram Darwin antes de lerem Spencer? E quantos lerão Darwin depois que já tiverem desconsiderado Spencer? Será que a causa maior do relativismo não é exatamente a ignorância das ciências básicas que servem de alicerce à sociedade moderna, justamente por aqueles que dizem estudar a própria sociedade?

Me parece que não temos saída a não ser voltar a "fabricar" pensadores inteiros, talvez os novos filósofos e juristas, cidadãos que aprenderão as bases racionais e emocionais, as teorias e leis das ciências, a evolução histórica, erros e deturpações desde a matemática, passando pela física, química e biologia até cada uma das ciências humanas. Talvez levemos cinco décadas para formarmos esses profissionais, mas talvez a sociedade encontre em suas obras, em suas divergências e principalmente em suas convergências uma luz no fim do túnel.

Valores realistas?

Como medimos o valor de um pensamento, o valor de Lucrécio, de Plutarco, de Heráclito?

Uma primeira ideia é o esforço que empreenderam dezenas de gerações de estudiosos para guardar e reproduzir suas obras antes da invenção da imprensa. Assim, textos gregos, latinos, chineses, hindus, persas e árabes chegaram até o nosso tempo. E hoje, como medimos o valor das obras que consideramos importantes? Uma primeira dificuldade é que hoje é muito barato copiar. Mesmo um texto sem valor algum, preconceituoso, parcial, hipócrita e superficial pode ganhar milhares de cópias e durar décadas e até séculos. Outra dificuldade é que as pessoas que selecionaram os textos a serem preservados durante milênios viviam diretamente em contato com o mundo. Toda a sociedade estava dentro do seu raio de deslocamento. Hoje, não. Hoje as pessoas vivem não a realidade, mas a interpretação que a televisão dá; não vivem o dia-a-dia do seu bairro, mas o que acontece em São Paulo, Londres, Jerusalém. Não vivem a história, vivem notícias. Não se preocupam com o assassinato de um vizinho, mas se preocupam com o assassinato da modelo famosa. Não conhecem mesmo os pomares onde seu alimento é produzido, mas apenas as prateleiras das redes de supermercados. Nunca uma geração foi tão alheia à própria realidade como nós somos hoje, e isso certamente influi no que acreditamos de nossas leituras.