Monday, January 31, 2011

Celso Furtado em "O Mito do Desenvolvimento Econômico"

Celso Furtado é considerado por muitos um dos maiores economistas brasileiros, se não o maior deles. Não apenas um economista, mas também um grande intelectual preocupado com as mazelas humanas e atento aos conflitos ambientais muito antes do assunto virar moda. Em 1977 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Um de seus maiores livros, justamente graças ao pequeno tamanho - e à derivada acessibilidade -, chama-se "O Mito do Desenvolvimento Econômico". A versão que eu tenho, impressa pela editora Paz e Terra para a sua Coleção Leitura, é uma versão de bolso de uns 10 por 14 cm, com 89 páginas desbotadas e frágeis, adquirida por um amigo num sebo de Manaus (é, Diego, acabei ficando com seu livro. Ou era do Will? Enfim...).

A primeira página diz "(texto extraído da primeira parte de O Mito do Desenvolvimento Econômico, Paz e Terra, 1974)". O livro é dividido em 5 partes, a saber: 1) A profecia do colapso; 2) A evolução estrutural do sistema capitalista; 3) As grandes empresas nas novas relações centro-periferia; 4) Opções dos países periféricos; 5) O mito do desenvolvimento econômico.

Como podemos perceber, o autor reconheceu, há quase 40 anos, a inviabilidade do processo atual (atualíssimo!) de desenvolvimento, baseado no crescimento eterno e na suposta "chance" e "destino" dos países pobres de alcançarem os países ricos, jogando o jogo deles, com as regras deles e o equipamento deles. Nas palavras do economista Henry J. Bruton (em Modelos de crescimento e economias subdesenvolvidas):

"Visto que a taxa de crescimento da renda de 'S' (país subdesenvolvido típico) tem um teto estabelecido pela taxa de aumento das divisas, e uma vez que essa taxa de aumento é menor que a taxa de crescimento dos países desenvolvidos, a renda de 'S' deve necessariamente aumentar a uma taxa inferior à dos países desenvolvidos."


Nunca diga nunca. Entretanto, a história vem mostrando um crescimento irrefreável do abismo que separa as nações mais ricas - líderes do processo de desenvolvimento econômico - e o resto do planeta. E é exatamente este o ponto que Celso Furtado disseca com sua obra. Na maneira como é praticado, o desenvolvimento econômico não passa de um mito, que transforma o pacato cidadão do campo e da cidade num consumidor ávido e insaciável, excluindo mais do que construindo, erguendo prédios e derrubando árvores, instalando fábricas e matando rios. A urbanização não é mero acaso, muito menos uma "decisão" consciente da coletividade, mas principalmente uma grande jogada econômica, pois os moradores das áreas urbanas são obrigados a comprar a maioria das coisas que antes eram capazes de produzir por si mesmos. E pior, geralmente vão perdendo o acesso ao que antes era gratuito (como o lazer de um simples mergulho...).

Não vou mais discutir se o desenvolvimento é bom ou ruim. Quem tem olhos para ver, que veja. O que questiono é: onde está este livro? O site da editora sequer cita a obra (que foi relançada em 1996 - http://www.pazeterra.com.br/autor.asp?pa=77), embora indique outras sete obras do autor. Depois de uma busca razoável, não encontrei nenhuma versão da obra disponível na Internet, seja para download ou consulta. Em todas as livrarias pesquisadas não há mais cópias em estoque. Esgotado no fornecedor. Etc. A biblioteca do Senado talvez tenha uma cópia, mas seu sistema de busca mistura tudo que tenha as palavras "mito", "desenvolvimento", etc. (A propósito, por que será que os sites do governo são tão porcos, principalmente na área de buscas? Quando você procura uma base de dados recém-lançada, um portal, um mapa, qualquer coisa, chega facilmente à página da notícia sobre o lançamento, mas nunca ao link desejado. Enfim...) As bibliotecas da USP têm várias cópias do livro, mas só para quem estiver lá por perto. Não encontrei o livro para repassar, mas encontrei um comentário do grande Washington Novaes:

"Em seu O Mito do Desenvolvimento Econômico (Paz e Terra, 1974), Celso Furtado já lembrava que grande parte das hipóteses globais de que partem economistas são 'equivocadas', porque 'formuladas a partir da observação do comportamento dos agentes que controlam os centros principais do poder; não interessa saber se aqueles que o exercem derivam sua autoridade do consenso, das maiorias ou da simples repressão; se o consenso ou maioria resultam da manipulação da informação ou da interação de forças sociais que se controlam mutuamente (...) Os que mandam falam em nome da coletividade (...) e por isso as decisões podem ser equivocadas, inadequadas ou em desacordo com os interesses sociais'.

"A partir desses pressupostos, examina ele os critérios sobre investimentos, ou de avaliação do produto interno bruto (PIB), que não levam em consideração recursos e serviços naturais: 'Como ignorar', pergunta ele, 'o custo da destruição dos recursos naturais não-renováveis, do solo, das florestas, da poluição das águas?' Quando o livro foi publicado, já lhe faziam eco as ironias de José Lutzenberger, que dizia não haver nada melhor para o crescimento do PIB que um terremoto, que não leva em conta a destruição e contabiliza toda a reconstrução."


Outro livro de Celso Furtado, encontrado no site da editora Paz e Terra (Em busca de novo modelo: reflexões sobre a crise contemporânea) traz uma bela sinopse, que nos leva ao cerne do pensamento do economista:

"Partindo da evidência que, durante os anos que compreendem a metade do século XIX e a primeira do século XX, o Brasil foi certamente uma das economias que mais cresceram, Celso Furtado constata que seu povo, no entanto, muito pouco se beneficiou desse crescimento, cujos frutos foram absorvidos pela minoria da população empenhada em [re]produzir as formas de vida dos países ricos. Assim, o aumento da renda, que deveria ser orientado para as atividades reprodutivas, foi absorvido pela modernização dos padrões de vida de uma minoria privilegiada. O país não se desenvolveu, apenas se modernizou. Neste seu novo livro, uma súmula das idéias centrais de sua obra teórica, Celso Furtado retoma a análise do processo histórico do subdesenvolvimento, cujo traço essencial - a concentração de renda - é cada vez mais visível em nosso país."


Não sei se essas "atividades reprodutivas" deveriam absorver todo o aumento da renda, afinal o povo também deveria ter direito a consumir algo além de fraldas. Ou talvez seja algum jargão exclusivo dos economistas? Já a "modernização", tão aclamada principalmente por essa casta nobre chamada "usuários de internet", consiste em fazer as coisas sempre mais rápido e nunca ter tempo sobrando, chegar nos lugares desejados mais depressa, mas tão depressa, que lá chegando não se tem sobre o que conversar - uma vez que não sobrou tempo para observar o que acontecia pelo caminho.

Penso se o "sumiço", por assim dizer, deste clássico claro e acessível não foi devidamente calculado. Afinal, num mundo onde quase todos acreditam na "qualidade" e "eficiência" da modernização e do desenvolvimento econômico (e a qualquer custo!), ideias contrárias parecem não só anacrônicas, mas também (principalmente!) blasfemas.

Por fim, deixo com vocês uma breve descrição da obra "mítica" de Furtado, feita pela jornalista Rosa Freire d'Aguiar, viúva do pensador. Celso morreu em 2004.

"'O Mito do Desenvolvimento Econômico' foi escrito no início dos anos 70, quando pela primeira vez se teve uma idéia aproximada das conseqüências, no plano ecológico, da planetarização do sistema econômico. A permanecer no estilo atual de desenvolvimneto, a pressão sobre a base de recursos não-renováveis será tão grande que, ou ocorrerá uma catástrofe ecológica ou se aprofundará o processo de exclusão social, privando as grandes maiorias, particularmente nos países de terceiro mundo, dos benefícios de um autêntico desenvolvimento. Este seria, portanto, uma simples miragem. É nesse sentido que o economista Celso Furtado o qualifica de mito."

Saturday, January 29, 2011

Feliz ano novo!

Tuesday, January 25, 2011

Natural Philosophy

(in an attempt of translation)

Mind-matter dualism was probably the biggest waste in history! It seems we have, in one side, that guy who grab a pig by the nose and makes a ham, who cuts the food right from the tree, lights the fire, burns some hairs, feeds himself up and gets some stories to tell; who, if he finds some fossil, will relate it directly to the animal who walked, hunted and shited, and who cannot imagine our history but as a chain of "comes" and "gos" of uncountable generations, with minds borning, learning and dying one after the other, in line, in a tree, materially conscious or not about what is life about. And it seems we have in some other side (it doesn't have to be only two) that other guy who grabs a book softly, opens its pages and keeps on trying to imagine what is life, if it's the way that writer had described it or if it's the way that other writer did it. Maybe for that guy it makes much sense that mind may have existed before matter, and that all the animals that walked through this planet's surface are not our relatives, but products of our imagination, just like alphabet, arithmethics and sin. But I shouldn't be probing such dualism, let alone choosing a side. After all, both sides always have their reason d'être. Matter seems preceding whenever we see a flower blossom, and understand how such great show may have become only by means of natural selection. And mind may seem preceding whenever misery's dispair requires the hope of something bigger, and how many of us rise to heights only taking advantage of someone else's dispair?

No, it doesn't matter who came first, if the egg or the chicken. Although the genetical mutations show up in offspring, not in parents (so, the egg is different from the cloaca who've laid it, but the newborn chick is the same from within the egg). What really matters is the fact that the chick borns, grows up and occupy its place. And books and full libraries were filled with pathetic discussions about intangible things. Forgive me if I propose the egg came before, or that matter produces mind - but I hope we're still able to talk about tangible things. War is tangible, death is tangible, the hunger of a child, because economic system must grow, and for this to happen some unemployment is a must, even in advanced economies - all this is tangible. So why do so many live today as if some universal intangibility gives them the right to look only to their own navels?

Now I sit with ten thousand ghosts behind me, haunting me with assumptions and hopes. Who are they? All that, in life, haven't got the nerve to tell what they've thought, and now expect me to do that for them. All that in life have tied them up to social rules, who followed the power as if they were a magnet, a water drop obbeying gravity inside a river bed, a mechanical particle subject to the laws of masses psychology, or market, instead of people with thinking and character - that is what they were supposed to be. But what do I know about what others should be? - Who asks that question? but those same ones for whom nothing matters at all, as soon as their navel is first, yippee!

I would have liked to talk about Natural Philosophy, so then: what is Nature but movement from cells to stars, passing through meat cutted by fangs and claws and the ambition of exagerated dreams and limits imposed to small dreams? What is Nature but comma after comma in infinite phrases without full stop? Question marks over question marks, disguised as interjections since question marks delay the walk that feeds the champions? If this is Nature, there's still time for hope, mainly because most of us got used to live among the artificial, far from natural. So, there's no reason to be slaves of Nature. We may cheat it, fool it, distort it, disobey it forever - and isn't that, yet, our old fellow Nature? We've got the privilege and the right, if not the duty, to corrupt all natural order and forge a system where each one gets according to one's needs, and contribute according to one's ability. But even duties, we're no bound to them - we only suffer its consequences, according, of course, to our financial possibility of fleeing those too. But, unless you have aircrafts and private islands, all environment affects you. And environment is itself the consequence of a world who believes too much it follows the Natural order (which pretends to be divine order; when Nature doesn't know morality, but we do, and that God, that, of white men, it would have created it in first place, so pretend those who believe or pretend to believe). So enough with hypocrisy, and let us drown at once in the river of our own moral sewage. For that's our faeces, of matter and thought, and no one better than ourselves to try to clean again the running waters.

Filosofia Natural

O dualismo mente-matéria deve ser a maior perda de tempo da história! Parece que de um lado temos aquele cara que agarra um porco pelo focinho e prepara uma feijoada, que corta a comida direto da planta, acende o fogo, queima alguns pêlos, se alimenta e tem histórias pra contar; que se encontrar um fóssil vai relacioná-lo diretamente ao animal que caminhava, caçava e cagava, e que não consegue imaginar nossa história a não ser como uma cadeia de "vir" e "ir" de incontáveis gerações, com mentes nascendo, aprendendo e morrendo umas atrás das outras, em fila, em árvore, materialmente conscientes ou não do que seja a vida. E parece que nalgum outro lado (não precisa haver apenas dois lados) temos aquele cara que agarra um livro com delicadeza, abre suas páginas e fica tentando imaginar como será a vida, se será como este autor a descreveu ou se será como aquele outro autor o fez. Para este cara talvez faça muito sentido que a mente possa existir antes da matéria, e que todos os animais que caminharam sobre a superfície do planeta sejam não nossos parentes, mas produtos da nossa imaginação como o alfabeto, a aritmética e o pecado. Mas eu não deveria estar me aprofundando nesse dualismo, muito menos escolhendo um lado. Afinal, os dois lados sempre têm a sua razão de ser. A matéria parece anterior sempre que vemos o desabrochar de uma flor, e compreendemos como tão belo espetáculo pode ter surgido apenas por seleção natural. Mas a mente pode parecer anterior sempre que o desespero da miséria exige a esperança de algo maior, e quantos de nós se erguem a alturas apenas se aproveitando do desespero alheio?

Não, não interessa quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha. Embora as modificações genéticas apareçam na prole, não nos pais (logo, o ovo é diferente da cloaca que o botou, mas o pinto que nasce é o mesmo que havia dentro do ovo). O que importa é que o pinto nasce, cresce e ocupa o seu espaço. E livros e bibliotecas inteiras foram preenchidas com patéticas discussões sobre coisas intangíveis. Perdoai-me se sugiro que o ovo veio antes, ou que a matéria produz a mente - mas espero que ainda possamos falar sobre coisas tangíveis. A guerra é tangível, a morte é tangível, a fome que passa uma criança porque o sistema econômico deve expandir-se, e para isso é imprescindível algum desemprego, mesmo em economias avançadas - tudo isso é tangível. Então por que tantos hoje vivem como se uma intangibilidade universal lhes desse o direito de olhar apenas para os próprios umbigos?

Sento-me agora com dez mil fantasmas atrás de mim, assombrando-me com suas suposições e esperanças. Quem são eles? Todos os que, em vida, não tiveram a coragem de dizer o que pensavam, e agora esperam que eu faça isso por eles. Todos que em vida amarraram-se às convenções sociais, seguiram o poder como se fossem um magneto, uma gota d'água obedecendo à gravidade no leito de um rio, uma partícula mecânica sujeita às leis da psicologia de massas, ou do mercado, ao invés das pessoas com pensamento e caráter - que é o que deveriam ser. Mas o que sei eu do que os outros deveriam ser? - Quem faz esta pergunta? senão estes mesmos para os quais tanto fez como tanto faz, desde que meu umbigo primeiro, oba!

Eu quereria falar sobre Filosofia Natural, pois sim: o que é a Natureza senão movimento desde células até estrelas, passando pela carne cortada por presas e garras e pela ambição de sonhos exagerados e limites impostos a pequenos sonhos? Que é a Natureza senão vírgulas seguidas de vírgulas em frases infinitas sem ponto final? Interrogações sobre interrogações, travestidas de exclamações uma vez que interrogações atrasam a marcha que alimenta os campeões? Se é isso a Natureza, ainda há motivo para otimismo, principalmente porque a maioria de nós acostumou-se a viver em meio ao artificial, distantes do natural. Logo, não há porque sermos escravos da Natureza. Podemos burlá-la, enganá-la, distorcê-la, desobedecê-la para todo o sempre - e não é isso mesmo, ainda, a própria Natureza? Temos o privilégio e o direito, se não o dever, de corromper toda a ordem natural das coisas e forjar um sistema onde cada um receba o que precisa e contribua conforme sua capacidade. Mas mesmo o dever, não somos a ele obrigados - sofremos apenas as consequências, conforme, claro, nossa possibilidade financeira de fugir também a essas. Mas, a não ser que tenhais aeronaves e ilhas particulares, todo o cotidiano vos afeta. E o cotidiano é a própria consequência de um mundo que acredita obedecer demais à ordem Natural (que se finge de ordem divina; quando a Natureza não conhece moral, mas nós conhecemos, e aquele Deus, aquele, dos brancos, este a teria criado em primeiro lugar, assim fingem os que acreditam ou fingem acreditar). Pois chega de hipocrisia, e mergulhemos de vez no rio de nossos próprios esgotos morais. Pois são nossas as fezes, de matéria e pensamento, e ninguém melhor que nós mesmos para tentar limpar de novo as águas que correm.

Sunday, January 23, 2011

As novas tábuas

- usar linhas ou pontinhos ao invés de números, para não ter que tentar chegar num total cabalístico, como 7 ou 10;
- não sentir falta do que não se sentia falta até ontem, mas que hoje passou na propaganda;
- acabar com a indústria da propaganda, e se não for possível acabar com ela, apenas considerá-la abjeta, lastimável, desprezível, poluidora, inconsequente, pútrida e leviana;
- usar vários adjetivos para tentar passar a ideia que se deseja, ainda que repetidos, sinônimos, dúbios, desconhecidos, repetidos, ultrapassados, datados, velhos e antigos. É melhor que não ser compreendido por ser deveras breve;
- evitar o uso excessivo de adjetivos;
- tentar manter a coerência, mas não se apegar a isso como a uma tábua sagrada;
- contradições existem desde que começamos a usar palavras; o mundo é feito de opostos e é bom poder trafegar entre eles para melhor compreender a experiência humana na Terra;
- a Terra é sagrada, assim como a humanidade, assim como qualquer espécie viva;
- por outro lado, um grão de aveia solto no vácuo entre as galáxias - chegaria a ser sagrado?
- sagrado é poder sentar-se à sombra perto da água fresca, com comida, bebida, boa companhia e ausência de compromissos ou pesos de consciência;
- acreditar em coisas é melhor que não acreditar em nada;
- acreditar com medo de que fosse mentira é estupidez; como é estupidez fugir da discussão por medo de perder;
- o importante não é competir, mas participar;
- e se não quiser participar, também há os que se divertem sozinhos;
- a diversidade é sagrada.

Thursday, January 13, 2011

A repartição que falta

Sonho que faço parte do departamento de medida da felicidade humana. A metodologia está no olhar, na audição, no olfato. Dizem que é possível saber pelo cheiro do suor se uma pessoa sentiu medo ou achou graça. Cães são peritos nisso. A melhor maneira de enganar um cão desconfiado é fingir-se parte da família. Aja como se o animal fosse seu subordinado, ainda que não se conheçam. Ele poderá parar ao seu lado e ficar latindo, mas não passará disso. Mas eu falava da felicidade humana. Podemos enganar um cachorro, mas não um perito do departamento de felicidade. A contração dos músculos faciais que mostram felicidade ou tristeza é involuntária. No meu sonho eu analiso a expressão de faces captadas em câmeras escondidas nas ruas, nos supermercados, nos bancos. Aquele senhor passa com a testa enrugada, está preocupado. Aquela menina passa olhando para cima, mas sem focar o olhar, está otimista. Aquele outro não encara os outros nos olhos, não se sente confiante. Quando eu estudava macacos eu anotava o tempo que cada membro do bando passava em cada atividade: comer, brincar, lutar, descansar, catar piolhos e assim por diante. Nós, humanos, gastamos nosso tempo nos arrumando, transportando, trabalhando, comendo, conversando, brincando ou brigando, insistindo, sonhando ou desistindo, bebendo, lendo, escrevendo, imitando alguém, etc. Há momentos de concentração, quando algo precisa sair bem feito, e há os momentos de descontração, que é o que vale a pena viver. Na era das máquinas, meu departamento está chegando à conclusão que passamos mais tempo concentrados, incomodados, apressados, desconfiados ou amedrontados do que antes. Isso é visível na expressão das pessoas. Caminho por uma hora em João Pessoa e vejo poucas faces sorridentes, caminho por uma hora em Manaus e vejo multidões descontraídas. Se o instinto social for a expressão máxima de felicidade (e o departamento tende a acreditar que sim), então Manaus tem a maior felicidade per capita do Brasil. Lá as pessoas são abertas, expansivas. Nas festas todos interagem fácil, puxam conversa, misturam-se. Em João Pessoa os grupos são fechados, não se misturam, não se permitem. Os homossexuais em Manaus fazem o que querem, se travestem, se pintam, falam alto, reclamam da vida, brigam e amam. Em João Pessoa, casam-se com pessoas do sexo oposto para manter as aparências. Meu departamento ainda tem muito trabalho pela frente. Não basta medir a felicidade alheia, precisamos agora entender por que em alguns lugares a felicidade é uma iguaria tão rara.