Aristóteles e os 27 (um ensaio pessimista)
Janis Joplin e Jimi Hendrix morreram na cabalística idade de 27 anos. O que trouxeram ao mundo? Arte. Aristóteles morreu bem mais tarde, e o que trouxe ele ao mundo? Ciência.
Arte e ciência são igualmente importantes ao desenvolvimento humano (na mesma medida em que a religião institucionalizada é nociva). Mas como se sentiam, psicologicamente, Aristóteles, Janis Joplin e Jimi Hendrix a essa mesma fatídica idade?
Fato 1: JJ e JH estavam no auge da fama. Não li a biografia de Aristóteles, mas aos 27 este devia ser apenas um cara inteligente. Talvez folgado, talvez arrogante, talvez sensível, talvez delicado, talvez irritadiço e brigão, talvez inconseqüente, talvez um chato.
Fato 2: A Senhorita Blues e o Senhor Guitarra certamente não possuíam a mesma carga cultural do famigerado Senhor Filósofo, o que inclusive, provavelmente, não se deveria esperar de nenhuma estrela do rock. Por quê? você pergunta; apenas porque a inteligência, digo: a cultura em demasia refrea as paixões, tão necessárias à boa arte. O acúmulo de conhecimento filosófico parece indissociável de um acúmulo semelhante de conhecimento psicológico; e todo psicólogo não sente apenas. Sente e analisa. Para analisar, precisa raciocinar; e o raciocínio, enquanto esporte inicial, viciosamente se transforma num hábito corriqueiro, acompanha as emoções mesmo contra a vontade, reluta em abondonar seu mestre (ou escravo?), infiltra os instantes sublimes, que apenas a emoção deveria ter acesso, de uma forma que a maioria dos cidadãos conscientes, não psicólogos, medianamente racionais, dificilmente poderia compreender. Em outras palavras, o psicólogo dificilmente compartilha da "aura" de alegria comunal, de êxtase coletivo de um grupo de amigos, que é o ápice da vida mental de uma multidão, porque está ocupado pensando, analisando.
O que o psicólogo faz? Busca entendar as razões do comportamento. Acima da razão, seus deuses orientam-no a buscar sempre o cerne do indivíduo, do ato, do desejo, do ser; algo que os deuses não sem motivo ocultaram ao homem. (O chamado auto-engano, título de um livro onde o belo-horizontino Eduardo Gianneti trata do assunto com maestria).
Então, como seria Aristóteles aos 27 anos de idade? Imagino um indivíduo inteligente, competente, trabalhador, curioso e investigador. Resta saber como eram seus contemporâneos e amigos. Digo isso porque uma pessoa inteligente precisa de amigos inteligentes; talvez não haja miséria maior que uma inteligência isolada em meio à ignorância. A inteligência busca compreender o mundo. Compreender para mudá-lo. A ignorância apenas teme. Um ditado chinês diz que o cão não late por valentia, mas por medo. Assim age o ignorante. A burrice, a falta de cultura, a falta de interesse e de instrução condenam o indivíduo a temer o mundo. Condenam-no a, no máximo de sua coragem, apenas pretender assistir ao que se passa, ao que fazem as raposas em seu quintal, protestando não contra a raiz dos problemas (quando muito), mas contra o que é diferente, apenas.
É preciso inteligência para mudar o mundo, como foi necessária coragem e sabedoria para dominar a natureza, vencer os climas e os inimigos, dominar os continentes, e, finalmente, hoje ter registrada a história (e os costumes, religiões, etc) nas mãos dos povos que melhor se saíram nesse esporte.
Hoje, infelizmente, assisto ao contrário. Nos meios "intelectuais", nas universidades, apenas vejo jovens trêmulos, que preferem aproveitar a data, a brisa da semana, que encarar de frente uma mudança, o futuro em branco, ideais, qualquer coisa que valha um sonho, uma esperança. Penso se a mídia, a sociedade do consumo, o pesadelo urbano, poluído e violento, terão solução ou alternativas, mas em meu país os jovens que poderiam nos salvar do pesadelo só têm atenção para seus namoros, semanais ou não. A nova geração de cientistas, estudiosos, pessoas dotadas (e cultivadas) a apresentar um espírito crítico, inquisidor, revolucionário - no bom ou mau sentido da palavra - apenas reclamam seus cotidianos, choram sonhos mesquinhos acumulados, proferem críticas vazias e esperanças medíocres; sem nem ao menos comparar seus sonhos e dores com os da grande massa da população, tão mais maltratada. Talvez eu esteja errado, mas tenho a impressão de que o mundo globalizado é uma armadilha da qual talvez a humanidade jamais escape, e mesmo sendo todos capazes de assistir a esse curioso e doloroso fenômeno, ficaremos sentados de mãos vazias, com o estômago embrulhado, duvidosos entre a descrença e o arrependimento; mas aí já terá sido tarde demais...
III
Os asfaltos das ruas vão mudando conforme os carros expostos nas calçadas - ou nas garagens.
As tardes de sol não serão repetidas embaixo da terra.
As manhãs em que o mundo chega alegre à nossa janela sempre tornarão a chegar e serão bem ou mal aproveitadas da mesma e absoluta forma que hoje, e assim infinitamente, como um roteiro costurado ao fino tecido do tempo e do espaço, a ser festejado ou sofrido a cada grande respiração do maior de todos os universos.
Admirável caminho novo
Conheci-o numa noite calorenta da parte baixa da cidade, pelo centro mesmo. Quem não repara no tipo perfeitamente adaptado às áreas centrais dos grandes núcleos urbanos, vivendo como ratos, amando como ratos, respirando a noite entre uma e outra aventura furtiva e poluída, eivadas de culpa pela sociedade, mas que quem sente não consegue, a não ser fazer.
Eis os chamados vícios privados; permitidos, ou melhor, tolerados pela sociedade.
Um deles o sexo sem pudor, sem vergonha, sem amor. Louco e inconseqüente como a vida animal, sem se prender, sem querer o outro numa vitrine, exposto ao mundo qual troféu, para si eternamente a figura de gesso da liberdade alheia. O amor sem culpa, sexo sem identidade, puro e abençoado como Nossa Senhora no cio, a libido natural, tesão do mundo, espetáculo essencial da carne.
O novo, aventura, o inusitado, inesperado e imprevisível dia-a-dia.
Eis um caro e admirável caminho.
Dedos
Seus dedos lindos numa jarra. Serviram-me-te fria, para sempre preservada em formol. Pude ver teus dedos doces e as unhas meigas, rosadas. Deixei o vidro sobre um canto e olhei pela janela. Nova fila se formava em frente à estranha construção. Não posso interferir agora, não diretamente - mesmo sabendo que estes também estão perdidos. Como a linda e adorável proprietária dos belos dedos aqui expostos.
As almas caminharam em bando, uma manada que esperava. Chegaram à entrada do edifício formando uma longa fila que se despedia sem saber.
Algum tempo depois a foice baixou, cortando as vidas pelos pescoços, pelos ideais, inúmeras, centenas, duas incontáveis centenas de jovens entre 18 e 25 anos morreram.
A guerra. Qualquer uma e todas elas. A cruel (e necessária) guerra.
Provérbio Chinês
Aquele que não gosta de ler é igual ao que não sabe ler.
Bicicleta
Comprei uma bicicleta. O céu era azul e cúmplice, meus bolsos estavam preenchidos pela justa medida do meu esforço, e foi toma lá dá cá, o suor da labuta por outro, o das rodas finas deslizando pelo asfalto quente; linda e forte, ela, a bicicleta.
Ainda não tinha desenvolvido todas as técnicas, ainda não comprei um cadeado, ainda não mandei botar um retrovisor (em Manaus É preciso um retrovisor), ainda não adquiri a destreza necessária para rapidamente amarrar minha mochila ao bagageiro; este, sim, mandei botar antes mesmo, na véspera da compra. Sim, já tinha namorado ela ali, pendurada num gancho da parede fria da oficina, triste, solitária, murchando pouco a pouco sua vontade de viver. E eu a minha, antes dela. Até ela.
Agora, não. O asfalto brilha de oportunidades novas, as manhãs já não são chocantes retiradas de um universo onírico; são, isso sim, um doce convite. Pedalei até em casa entre afoito e sereno, como uma criança ou um cachorro que ganha uma bola e não sabe ainda todas as formas de aproveitá-la, de vivê-la. Corri entre os carros, manobrei aventurosamente entre as filas e através das esquinas, detrás dos ônibus e à frente dos caminhões, na beira da pista, no passeio, na contra-mão.
Ainda longe de casa, um engarrafamento se formava na pista oposta. Eu seguia pelo lado contrário do tráfego, na pista vazia que antecede a abertura do sinal-farol-semáforo lá adiante. Do outro lado, motoristas tensos, suados e impacientes saíam dos carros e praguejavam, levantando as mãos à cabeça, implorando pela piedade de uma divindade invisível e improvável, tentando entender o tempo, o precioso tempo que se escorria por entre os seus dedos de trabalhadores respeitosos, idôneos, engravatados, por seus volantes e freios e bicos de injeção, por suas calças de tecido fino e escuro, por seus sapatos de couro e suas vidas repetitivas, quando a paixão parou em algum sinal ou congestionamento lá atrás, talvez na adolescência, talvez na infância, ou um pouco depois, mas que definitivamente não estava ali, com eles e seus carros de último tipo. Não, a paixão estava do outro lado da rua, numa bicicleta e um cara de bermuda, com a mente leve e desanuviada, agitada pelo vento e pela velocidade, pela assombrosa fartura do universo, que pode ser expressa numa fórmula simples, que se move sobre duas finas rodas de borracha sob um esqueleto metálico, corrente e pedais.
O congestionamento seguia imóvel por quilômetros, virava outra avenida e alcançava finalmente a entrada do meu bairro. Desci com as mãos fora do guidom, como um novo redentor, abençoando o asfalto e a multidão que me olhava com uma ponta de inveja entremeada com toda aquela ranhura amarga de quem não tem opção senão enfrentar a criatura morta-viva de um engarrafamento na tarde sufocante do paraíso equatorial. Paraíso que, diga-se de passagem, ganha agora mais um novo e auto-proclamado santo sobre rodas.
It ain't me like a monkey anyway?
O ferro elétrico não é só um eletrodoméstico, é um paradigma.
É nele que se encontra a mão do presente, elétrica, com a brasa que ardia nos tempos mesmo da minha mãe.
É no ferro de passar roupa que se encontra o maior abismo do mundo: o social.
Todas as críticas que recebi no dia que usava uma camisa não passada foram de deboche, de rejeição.
Lembra um tempo em que os pobres não podiam pagar por ferros de passar, e assim mais uma diferença se estabelecia entre as classes, e o mundo se tornava um lugar melhor.
Hoje eles poderiam, se não dessem preferência à TV. Tudo que não é essencial é tão barato que qualquer pé-rapado hoje pode exibir seu celular.
Claro que não falo de miseráveis, esses sequer têm roupa a passar.
Mas queria mesmo falar de energia elétrica, eletricidade.
O Brasil é o país com 8 mil quilômetros de costa, vento, ondas e marés.
É o país com 8,5 milhões de quilômetros quadrados de Sol, Sol e Sol. E rios.
Mas só os rios são barrados de hidrelétricas. Só ali se separam populações de peixes, inunda-se florestas, mata-se árvores de madeira nobre, expulsa-se os moradores para gerar energia para... passar a roupa.
Sim, é evidente que não poderíamos levar uma vida minimamente decente se nossos panos lembrassem cortinas de consultório público.
Tudo o que lembra a pobreza e a falta de luxo deve dar uma dor de cabeça em quem não tem com que se ocupar ou coisa melhor pra pensar.
Sim, é claro que sem uma roupa passada, e branca não apenas como um branco qualquer, mas branca como o mais alvo dente do negro mais branco do planeta. Qualquer coisa pior que isso é preto, não serve.
Está já provado que a maior parte da energia consumida no país vem das indústrias, e não das residências. Ali, o chuveiro elétrico gasta bem mais, então que mal pode haver numa ruguinha de vaidade, num detalhe tão "irrelevante" quanto perene?
A conversa deve ir além....
o ferro de passar roupa é apenas um paradigma.
Um slogan
Não jogue fora o seu comodismo sem antes aprender como usar as pernas.