Friday, May 25, 2007

Infinito circular

(uma digressão comprida sobre religião, misticismo e o papel genuíno da violência no mundo)

"Toda religião é um vírus de difícil cura"


Ontem à noite eu estava deitado na rede, lendo uma revista, quando aquela sonolência me tocou e me transportou para um nível distinto de consciência. Foi quando tive uma visão mística, ou talvez apenas incompreensível, ou ainda, talvez apenas inacessível à razão desacompanhada dos demais aparatos sensórios.

Tratava-se de dois círculos concêntricos, preenchidos por setas que seguiam em sentido horário, uma atrás da outra, até que a última alcançava a primeira. Mais ou menos assim:



Sei que certos símbolos têm um poder especial para causar deslumbramentos místicos, como o infinito, o zero, o um, o pi, ou círculos, triângulos equiláteros, proporções áureas, etc. Coisas sobre as quais podemos nos debruçar e extrair uma infinidade de significados obscuros e improváveis, como a santíssima trindade, ou nem tanto, como harmonias musicais.

No meu devaneio semi-acordado, as setas pareciam degraus da consciência, que giravam e se transformavam uns nos outros. Houve uma vez certo filósofo que disse que "existem infinitos degraus entre a consciência e a morte." Eis que pensei, seriam esses degraus algo circular? Poderia fazer sentido que a consciência acordada e o sonho não fossem hierarquicamente dispostos, como "acima" e "abaixo" numa suposta distância da realidade, mas apenas posições diferentes num círculo, onde até mesmo a "ausência" de consciência duma pedra, por exemplo, faria parte da ordem natural das coisas, duma ordem circular, mutável, em eterna transição, muito além do que a razão acadêmica tradicional supõe?

A história é cíclica, a órbita da Terra é elíptica, talvez o universo se repita entre os intervalos de cada big bang e big crunch. Ou talvez tome formas completamente diferentes.

Quem pensa sobre buracos negros costuma achar que a matéria ali é tão densa, tão fortemente reunida sobre ação da própria gravidade, que trata-se de um ínfimo ponto no espaço. No entanto, quanto maior a massa do buraco negro, maior é a distância a partir da qual não há retorno possível para um corpo dotado de massa. Não é tão complicado: se você jogar uma pedra para o alto com uma força X ela alcançará uma certa altura e cairá novamente, sob ação da gravidade da Terra. Se você usar uma força 2X, a altura será maior, e assim por diante. Há uma força específica Z, na qual a pedra se libertará da atração da Terra e vagará solta pelo espaço sideral. Essa força específica Z é necessária para aplicar na pedra a chamada "velocidade de escape". Uma vez que a velocidade do corpo que sobe diminui aos poucos, até que ele retorne (ou não), basta uma determinada velocidade inicial para que ela não diminua até o zero, e siga seu caminho para a liberdade estelar. A velocidade de escape depende, é claro, da força da atração gravitacional do planeta. Essa força depende de duas coisas, da massa do planeta e da distância a partir de onde a pedra foi atirada. Nenhum humano conseguiria mandar uma pedra ao espaço só no muque, mas um astronauta, com um leve impulso, já pode enviá-la para o beleléu.

No buraco negro acontece exatamente isso: a velocidade de escape, até uma certa distância de seu centro, é maior que a velocidade da luz - por isso nenhum corpo pode escapar-lhe, nem mesmo a própria luz. A partir daí, quanto mais distante, menor a velocidade necessária para escapar. No entanto, essa distância ao centro é proporcional à sua massa. Isso significa que, quanto mais matéria um buraco negro tiver, maior será o raio de sua ação anti-escape. Que astrônomos de plantão me corrijam, mas se um buraco negro engolisse toda a matéria do universo (tanto a visível quanto a chamada matéria escura, e talvez a chamada anti-matéria, não sei), podemos calcular que seu raio se tornaria, aproximadamente, o raio que conhecemos para o nosso universo, algo em torno de 15 a 20 bilhões de anos-luz.

Resumindo: quanto maior a massa de um buraco negro, maior o seu tamanho. Um buraco negro com a massa do universo teria, segundo cálculos elementares, o tamanho do universo. Isso não sugere que nosso universo nada mais é do que um imenso buraco negro, do qual nós mesmos não podemos escapar?

Os buracos negros tomaram a imaginação de vários escritores de ficção científica. Devo admitir, a minha também, desde a infância. Imagino que quem ousasse entrar num buraco negro não resistiria à passagem. Teria, muito provavelmente, seus ossos esmagados pela abruta mudança gravitacional em sua fronteira. Se isso não acontecesse, ou caso se pudesse "pular" essa fronteira, indo do seu exterior direto lá pra dentro, poderia ser que houvesse lá estrelas brilhando, ou quem sabe leis físicas novas, independentes. Ou mesmo uma passagem para algo completamente desconhecido e ainda não imaginado.

Não é disso que trata as religiões? De suposições espiclondríficas e divindades desconhecidas, incognoscíveis? A própria astrologia não faz referência constante ao papel misterioso dos astros? O inconcebível, seja a eternidade, o brilho distante de estrelas mortas, o infinito, a consciência aniquilada pela morte num processo em que os últimos segundos podem recapitular toda a existência - tudo isso sempre assombrou e deslumbrou a humanidade. Cada povo estabeleceu uma linguagem para descrever esse deslumbramento na forma de mitos e lendas associadas a atos nobres de heróis, misturados em sonhos de velhos anciões em delírio provocado pelas drogas psicodélicas de cada época e lugar. Pense nas leis de nossa sociedade, em como certas drogas são proibidas, e como tantos policiais adoram se drogar com essas mesmas drogas que são proibidas. Pense nos pajés e nos tuxauas de tribos distantes, que consomem drogas para alcançar algum tipo de iluminação e contato com o mundo dos espíritos, dos quais adquirem conselhos e sabedoria. Pense em médiums que alcançam um patamar diferenciado, flutuante, de consciência, ou nos pastores e babalorixás que conseguem induzir ao estupor a platéia deliciada. Tudo isso é tão humano quanto a racionalidade, que em nossa era científica recebeu a coroa do iluminismo filosófico. Melhor assim, pensam alguns, eu mesmo já pensei. Mas...

As religiões de hoje se fiam em documentos históricos, textos escritos milênios atrás por pessoas que tentaram traduzir em discurso suas transcendências particulares e secretas. Conseguiram com isso arrastar milhões de fiéis, às vezes mais de um bilhão. Por outro lado, a cristalização do sublime através da escrita faz perder o brilho do instante, faz perder todo o rigor lógico, e também supra-lógico, que acompanha o sublime em sua ocorrência pontual, na sociedade que o gerou através de uma lógica particular, num determinado clima e região, pela mente de uma determinada pessoa, com certa formação, humor, situação política e financeira, enfim, num contexto.

Hoje, observando alguns dos poucos povos ágrafos que subsistem, podemos ver neles esse deslumbramento original, que foi transmitido oralmente, necessitando, imprescindivelmente, ser sentido novamente a cada geração, sob o risco de perder-se. Neles, o mistério original permanece. Cada um deles tem acesso direto ao transcendente, numa escala que nós, que precisamos de intérpretes falecidos há séculos, ou milênios, jamais compreenderemos.

Há um muro de farsa que isola, de um lado, a natureza humana, ao mesmo tempo bondosa e violenta, e de outro, um mistério religioso no qual apenas uma bondade fabricada deveria existir. Quando a religião é apenas o estudo culto das impressões de um indivíduo deslocado no tempo, essa religião perdeu a autenticidade de ser parte do mundo, do contexto brutal e avassalador do mundo, violento às vezes, indiferente também, mas que abre espaço às manifestações das pessoas como entidades livres e radiantes, sujeitas a tudo o que sempre foi a natureza humana, por incongruente e absurdo que pareça à vista "virgem".

Nosso tempo assiste ao que sempre houve, tribos diferentes se matando, violência e incompreensão. Mas a idéia que se faz disso é errada. A opinião pública a esse respeito ignora uma visão histórica, digo, uma visão supra-histórica, que é muito mais importante que a visão histórica da sociedade.

A violência que é retratada todos os dias nos jornais serve para dar audiência, todos sabemos, mas deve servir para algo além disso. Nunca houve, na história do mundo, criaturas não violentas. A própria palavra violência distorce o sentido do que seja a natureza da violência, pois já estamos contaminados com seu significado acoplado de indesejável, injusto, gratuito, trivial e boçal. Pensamos em violência e automaticamente nos vem à mente a história da sociedade moderna, sua gênese na fuga dos caprichos de monarcas tiranos, na busca de uma democracia representativa, no direito de todos (sic) à posse, à ordem, à justiça.

Claro que essas coisas existem muito mais no discurso que na prática, mas o que eu quero dizer é que a modernidade, essa fuga da história medieval, foi responsável pela criação de uma raça de homens e mulheres débeis, que dependem do Estado para se defenderem, um Estado contra o qual eles próprios não podem lutar. Antigamente cada qual tinha suas armas, e o inimigo era o inimigo declarado, inimigo de uma comunidade e da ordem local, ou eram comunidades inimigas, ou reinos. Nessa época não havia o duplipensar que George Orwell nos explicou tão bem em sua obra-prima, 1984. Inimigos eram inimigos, amigos eram amigos, ainda que qualquer um tivesse liberdade de mudar de lado. Hoje o Estado é ao mesmo tempo quem protege e quem rouba. Pensando bem, o mesmo sucedia com os reis, é verdade, então voltemos à violência e sua relação com a mídia.

O que se deseja, a "conspiração" por trás da mídia e do Estado, é apenas deixar os indivíduos num estado de alerta impotente, no qual se teme o perigo, mas se tem a consciência de nada poder fazer. Esses são os cidadãos que todo tirano pediu a Deus. Que alegremente aceitam a fantasia democrática, mesmo sabendo ser falsa, e jamais reúnem forças para exigir algo novo. Criamos um apego tão grande à vida, embora nunca a tenhamos vivido como aqueles povos que lutaram por ela. Só alguém que realmente viveu poderia dar sua vida em troca da defesa daquilo que tanto apreciou, que fosse a vida de seu povo, de sua tribo, sua tradição e ideais. Nós, os homens e mulheres cinzentos e semi-vivos das metrópoles, e também do campo e das cidades pequenas e médias, nada fazemos a não ser alimentar a máquina, girar as engrenagens que permitem o lento e magoado arrastar do mundo, enquanto dormimos mal com medo da violência, porque não acreditamos mais que se trate de algo normal, corriqueiro sob a perspectiva maior da história evolutiva, do mundo animal. Estrelas engolem planetas, plantas engolem insetos, tribos orgulhosamente se engolem entre si. Temos horror a sermos engolidos, então preferimos deixar que nos suguem aos poucos, suavemente, com anestésicos cientificamente projetados, primeiro a consciência, depois a paixão e a fé, por último a dignidade, a honra, o caráter. Nada disso hoje vale nada. A honra não forma um cidadão; quem o forma é sua TV, seu carro, a casa própria. Ou mesmo um salário fixo que lhe permita pagar o aluguel. Caso contrário, será um pária, e por mais honra que traga em seu espírito, quem sabe herdado de gerações de guerreiros antepassados, hoje todos mortos, por mais sangue vivo, selvagem e nobre que corra por suas veias, nada será aos olhos da sociedade, e terá como único recurso, para mostrar que ainda vive, e que é digno de viver, apelar à violência contra os que não lhe permitem viver como deseja, da única forma que saberia e lhe agradaria viver.

Não se trata, portanto, de sobrevivência apenas. Trata-se de honra. A violência exige a honra de existir independente, forte e digna, e não apenas se filiar às barbas de um Estado corrupto e decadente. Não se trata de sobrevivência, pois mesmo o cidadão amedrontado, atrás de suas grades e currículos, valoriza em si apenas esse status de cidadão aceito, idôneo e livre, ainda que acorrentado ao sistema e enclausurado em sua liberdade restrita e miserável de rato citadino. Em outras palavras, valoriza a mesma honra dos que estão lá fora, defendendo a honra deles.

Se você vier a ser assaltado, ou da próxima vez que isso acontecer, tente olhar nos olhos do assaltante, tente ver ali a honra que você não duvida possuir. Se conseguir, se esse contato for estabelecido e o denominador comum entre ambos, a que chamo proto-homem, ou o instinto animal que é comum a todos nós, falar mais alto, é possível que vocês se admirem mutuamente. Pois há na honra um mistério muito mais sublime que os grandes mistérios cósmicos, que é a possibilidade de sermos humanos, independentes, e de nos comunicarmos como um cometa que diria alô ao sol ainda que passasse aqui apenas a cada século.

Podemos viver como formigas, idolatrando o deus-formigueiro, colocando-o acima de nós mesmos, como indivíduos, estranhos, únicos, diferentes, exóticos e por isso mesmo maravilhosos. Ou podemos ser tudo isso, e encontrar nos outros mais disso, se estivermos dispostos a abrir mão de tudo o que nos ensinaram ser mais importante - conforto, status, hierarquia, escolaridade, sociedade, classe. Cabe a nós escolher.

Wednesday, May 23, 2007

Utopia

Pressuposto - a religião é o ópio do povo, um mal necessário que pode ser melhorado.


Como construir uma Nova Esperança, uma Utopia que não seja apenas mais uma religião? É mister que seja verdadeira, para tanto deve ser alicerçada na ciência. Mas o povo, a massa, não é formada por cientistas, que entenderão o problema das origens. Eles precisam de figuras, metáforas, parábolas, mas que tenham fundamento. Talvez os criadores das antigas religiões tenham pensado exatamente o mesmo, mas não puderam impedir a desatualização de suas doutrinas, que por isso se aferraram a dogmas como um peixe tentando respirar fora d'água...

Como uma religião permite mudanças futuras, que se adaptem à evolução do conhecimento científico? Ela precisa ser mais que verdadeira, deve ser honesta. Deve ir além de explicar o problema das origens, deve explicar também a fraqueza do fraco; a Nova Esperança consiste em cada pessoa entender o seu lugar no mundo, mandar quando puder, e obedecer se achar mais fácil.

O Instinto é a figura central da Utopia, como algo que está dentro do homem, em todos os homens, mas não igual em todos eles. A igualdade é o primeiro mito a ser derrubado. Igualdade de direitos, sim, mas por outra razão; NÃO por sermos iguais.

A Utopia ensina o amor à Terra, ao ser humano e à natureza. Templos, imagens e rituais são não apenas desnecessários e caros, mas principalmente desviam a atenção da mensagem central. Além disso, a manutenção do templo requer trabalho e dinheiro. O trabalho seria melhor empregado de outra forma, e o dinheiro é uma dificuldade e também uma oportunidade infeliz. Deixemos que a verdade fale por si. Sem dízimos, sem ofertas, sem rituais nem cerimônias.

Vida após a morte - 2º mito a ser derrubado, o maior parasita ideológico já criado pela humanidade. A vida por si só já é um grande mistério; aceitemos a morte, pois, como um fato natural. Cada expectativa numa duvidosa sobrevida é uma desistência na vida real e certa.

O orgulho deve ser cultivado; orgulho de ser quem se é, de estar vivo, de poder fazer uma diferença no mundo, ou de não querer fazer diferença. Ao faminto, ao injustiçado, ao abandonado, a esses falta orgulho, por isso nos causam pena. E o que tem sido até hoje a compaixão e a piedade? Dar de comer ao faminto. Retirar-lhe o pouco orgulho que restava, roubar-lhe a certeza de que conseguirá comida sozinho amanhã. Ajudar um necessitado, como hoje se pratica, é fazer com que tome gosto pela sua necessidade, por ser cômodo. Ao mesmo tempo, o piedoso acaba tranquilizando sua consciência por qualquer falta cometida, como se com um bem se pagasse um mal. Chega de hipocrisia! Chega de curar sintomas, enquanto os germes continuam a se reproduzir. Ajudar, na Utopia, é elevar o orgulho, é ensinar uma profissão, é cobrar um trabalho bem feito e não fechar os olhos e tolerar a sujeira. Basta que se tolere os fracos; chega de tolerar super-fracos! Ajudemos a proliferar o orgulho e colher os seus frutos.

Com o desenvolvimento atual das máquinas, muitos trabalhadores produzem várias vezes mais enquanto outros não têm emprego. O desenvolvimento natural da sociedade tem levado a menores jornadas de trabalho, e essa tendência certamente irá mais longe. Quanto mais tempo livre tivermos, mais poderemos nos dedicar ao voluntariado, ensinando o que sabemos e aprendendo com os outros. Este é um dos caminhos para a Nova Esperança.

"Não ter é não precisar"? Nenhuma máxima PRECISA funcionar sempre - essa é uma das que geralmente funciona.

"No princípio, éramos animais. Hoje ainda somos, mas aprendemos muitas coisas" O ser humano é um animal que se sobressai por sua capacidade de aprender. Não temos as asas da águia, nem as presas da onça, nem a camuflagem do sapo nem a couraça do jabuti. Não temos nada disso porque não precisamos. Se precisássemos teríamos, ou estaríamos extintos.

Para tudo os animais nos são úteis: como comida, como pele, couro e penas, como tração, como guia, como companhia, como exemplo. Se não temos armas nem defesas naturais como os outros animais, é porque não precisamos. Até já tivemos, mas no decorrer da nossa evolução os fomos perdendo, à medida que evoluía nossa maior arma e principal defesa: o cérebro.

A inteligência, a capacidade de deduzir, aprender e inferir, foi o que nos tornou o que somos, não mais senhores da criação, mas algozes de nós mesmos e das outras formas de vida. Cabe à mesma inteligência combater o fanatismo, distribuir sensatez para reverter o mal que começamos.

Se temos inteligência é porque precisamos dela. Ter é precisar. A ignorância deve ser erradicada como o maior de todos os males. A ignorância se prolifera mais rapidamente que a sabedoria, e é ainda orgulhosa de si: bate no peito com um sorriso e diz: FÉ! A fé é o terceiro mito a ser combatido, pois a ignorância se envergonha de si e quer diminuir; a fé não, a fé quer crescer e se copiar para cabeças alheias.

"Ter é precisar" - não se pode possuir um objeto que não se precise, hoje ou amanhã. É loucura insistir nisso. Mais vale dar para quem precise, isso é nobreza; ou esperar que o roubem, o que seria um roubo nobre.

O mal do mundo não é a pobreza, mas ter a pobreza sensibilidade para perceber a riqueza ao seu lado, e pior, muita riqueza que não se precisa. Quanto mais alto, maior a queda. Quanto maior o desnível social, maior a violência. Eis aí algo que os ricos não querem aceitar.

A herança é um direito até certo ponto. Qual a vantagem de heranças sucessivas aumentarem um império que não se teria criado numa única vida? Um proprietário de 20 casas já é algo pouco natural. Se só tem um filho, com que direito ele ganha o que o pai levou décadas para unir? Melhor seria para seu orgulho e capacidade de trabalho, que apenas pudesse herdar uma fração do todo. Ou melhor, melhor seria se o pai não tivesse como acumular tanta propriedade. Menos propriedade acumulada, menos poder na mão de poucos, menor desnível social. Eis a idéia de uma verdadeira Utopia: aplainar o terreno!

O socialismo errou ao proibir o acúmulo de capital, porque é do Instinto humano se preservar, só trabalhar o quanto precisar. Se ninguém ganha mais, por que eu me esforçaria? A tendência seria uma enorme repartição pública, onde ninguém cobra de ninguém, para que ninguém precise trabalhar. O acúmulo de capital é uma motivação para o trabalho. Se o capital vale mais que o trabalho é outra questão, e cabe estudar como o Instinto se comporta nesse caso. "Nada em excesso", nem capital, nem trabalho.

A Antropologia será a ciência principal da Utopia. Experimentos humanos não são éticos, dizemos hoje, mas a sociedade é uma grande tentativa.

"Ar" é a primeira palavra que se aprende. Dor é o primeiro nome que sabemos. O outro primeiro nome - porque na verdade são dois - é bom. Tudo que é bom está ligado ao prazer. Os mamíferos aprendem esta palavra com a mãe.

Bem e mal fazem parte da moral, que é bem diferente do bom/mau do instinto: prazer/dor.

Todo o mundo ganha nova significação. Temos em nossa cabeça um Eu mau e um Eu bom. Ou vários deles. "Devemos seguir o bom", diz o cordeiro, o do rebanho ordeiro. "Deixe-me falar!", insiste o Eu mal. "Vocês só dão ouvidos ao outro!", isso ele diz aos ouvidos. (continua)


Corpo/Mente/mentir?

O bom da infidelidade no homem é algo que só o homem conhece. O matrimônio, ou união estável entre duas pessoas, divide a vida do homem entre a libertinagem gratuita e a expensiva. Para um homem são, faz muito bem conquistar; faz muito bem para o corpo e a mente. O matrimônio fiel torna o homem conquistador em uma outra espécie: o homem conquistado! Para esse, há um esporte a menos na vida - e uma tarefa a mais. FILHOS. Com relação a eles e à biologia da espécie humana, a traição dos homens é análoga à da mulher, e não homóloga. Suas origens evolutivas são diferentes. O homem busca mais filhos; as mulheres, filhos melhores.

Como conhecer um pingüim sem entender um pouco de ornitologia? É como buscar entender os homens sem entender também de mamíferos. Por que o pingüim macho cuida do seu único ovo? Por várias razões; uma delas é que aves não dão leite. Uma vez posto o ovo, a responsabilidade dos dois pais sobre ele é a mesma. As glândulas mamárias foram uma notável criação evolutiva. Ao literalmente "se dar" como alimento à cria, a mãe não precisa mais procurar alimento para os filhotes. Mas isso pôs sobre as mães uma responsabilidade bem maior, a mesma retirada dos pais - os assim-surgidos "Ricardões". Os pais-aves são muito melhores pais que os mamíferos. O caso dos pingüins é bem mais comum no reino das penas e bicos que entre pêlos e dentes.

O cientista deve entender de ciência, antes da sua ciência particular. Não apenas o conceito de ciência, mas uma boa noção da sua história, suas áreas, as relações entre elas e os fundamentos de cada uma. É fundamental ao cientista conhecer os fundamentos de cada ciência na proporção exata da distância que cada uma está da sua em particular. Assim, para o biólogo é mais importante compreender os fenômenos químicos que a Relatividade de Einstein ou os princípios da física quântica, uma vez que a química está presente em sua área de estudo, e esses outros campos, não. Igualmente para o cientista social a Evolução responderá diversas dúvidas, ao passo que a Física e a Química estão bem mais distantes. Esse é um dos princípios da Sociobiologia.


Ser bom ou ser mau, apenas, é como ser cego de um olho: enxerga-se o mundo sem perspectiva. Falta ao bom e ao mau uma dimensão da realidade; para eles tudo é plano, raso, simples. Aos que conseguem ver o mundo com as duas lentes opostas e simultâneas, crer em um Deus perfeito e bom é tão ou mais deficiente que descer uma escada com um dos olhos tapados.

O bem e o mal estão em todos os lugares - erram os que acreditam numa justiça universal, num Deus "bom", num mundo onde o bem DEVE prevalecer; como erram aqueles que só vêem mal por toda parte.

Também o universo social tem o seu bem e mal. As piores doutrinas são as que querem nos convencer da NECESSIDADE do bem, como se ele não fosse natural, e do terrorismo do mal, elevando-o a um patamar assustador, muitas vezes sobrenatural, e do qual covardemente se sugere fugir, afastar-se, puni-lo. O que se faz, então, é fechar os olhos. Paga-se a polícia para que escondam o mal, para que o encarcerem longe de nossas famílias e de nosso entendimento. A fuga predileta da sociedade do bem é fugir do mal, ignorando sua origem. Mas o equilíbrio natural parece EXIGIR a mesma medida de bem e de mal, ou um ligeiro desequilíbrio na direção do bem - afinal, temos instintos de preservação social - e a cada excesso de bem conseguido numa nação, há alguém pagando o preço e desenvolvendo um excesso equivalente de mal em algum lugar do planeta. A suíça não existiria sozinha.

A maneira mais segura de equilibrar o bem e o mal na sociedade deve ser equilibrando-os em cada um de nós. Não há uma terceira visão, apenas uma segunda.

Nas relações sociais não deve haver bem e mal, mas respeito. Deve-se respeitar e honrar os amigos, como os inimigos. Um inimigo indigno de respeito não é digno de ser chamado inimigo. Não existem relações sociais fora o respeito, apenas distância.

Acreditou-se por muito tempo que dos bons seria o Reino dos Céus, de Deus, Paraíso; enfim... coisas que não existem. Na Terra, a lei da Natureza diz algo bem diferente: diversidade. Onde há constância, onde tudo é igual, há decadência e morte. Jamais existirá um mundo de todos os homens bons, porque a Natureza se aproveita disso; os homens "bons" são como esterco para o mal, como o são os maus para o bem. No Homo sapiens a Estratégia Evolutivamente Estável (EEE) é haver razões semelhantes de bem e de mal, com o primeiro levando certa vantagem. Façam apenas bem a uma criança, e se criará um tirano. Maltrate a vida demasiado a alguém, e nascerá um "santo", um homem "bom" ou uma mulher "boa".

Dê-se o poder a um homem mau, e sua tirania varrerá o mundo. Deixe o poder ao homem bom, e os espertos o manipularão como a um fantoche. Os espertos são os que compreendem as leis da Natureza e as do homem. Conhecem o suficiente da lógica do bem e do mal para a qualquer momento virarem o jogo a seu favor. No fim, esperteza é poder, e o mundo é mesmo dos espertos. Sem poder ganhar este mundo, por não ter bastante esperteza, muitos apostam no mundo futuro, para o qual bastaria serem "bons"...

"Livrai-nos dos bons e dos justos" - assim falava Zaratustra.

Respeitar é não subestimar; é dar ao outro o direito a que seu orgulho diga "Eu existo". Pois apenas um orgulho alto e vigoroso pode equilibrar sobre si o bem e o mal. Respeitar é querer que no outro se equilibrem o bem e o mal. É querer o bem do outro, sem ser bom; é esperar o mal, sem ser pessimista. O pessimismo é mau; o otimismo pode ser bom, mas o mais equilibrado, o melhor, é o realismo.

O Eu é muito pequeno perto do todo que sou. Nossas máquinas estão cheias de demônios - "daemons" - rotinas automáticas que cuidam das nossas tarefas mentais. A própria consciência não é mais que um conjunto de tais daemons - um que levanta as palavras do lado do bem e do lado do mal, outro que pesa as contradições segundo o prazer que trazem, outro segundo o que acarretarão aos outros, outro que relembra o passado, unindo o Eu de agora com o Eu de antes, tornando-os um só, e assim por diante. Quase sempre os nossos daemons decidem sozinhos o que nos interessa, sem que precisemos VERBALIZAR aquela situação, ou seja, pensá-la com palavras. Isso é o chamado inconsciente. Os daemons nascem prontos a equilibrar o bem e o mal, mas podem ser treinados para fazer pender a balança, para viciá-la. Pois o bem e o mal, sozinhos, são vícios. Eis a especialidade das religiões: formar viciados no bem.

Todo o processo do conhecimento é também um processo de auto-conhecimento. Temos duas mãos, duas pernas, dois olhos, dois ouvidos, dois hemisférios cerebrais - duas metades. Não são o homem e a mulher duas metades, mas cada um deles. Por isso DICOTOMIZAMOS o mundo. Para nos situarmos nele. Quente e frio, alto e baixo, duro e mole, claro e escuro, certo e errado, tudo é visto pela nossa perspectiva, como coisas aquém e além de nós - QUE ESTAMOS SEMPRE EM ALGUM PONTO ENTRE DOIS EXTREMOS. Esse é o conceito do inabsoluto. Ninguém é "bom" ou "baixo" ou "claro" apenas. Tem-se determinado temperamento e caráter, cor e estatura. Mas dividir o mundo em dois extremos e querer em um quem não está no outro é tão triste como corriqueiro. Para Pascal, o grande pensador cristão, o sábio é aquele que consegue apreender todos os extremos, para se situar no lugar mais adequado, ainda que insólito, em cada eixo de valores.

Quanto mais coisas conhecemos, mais níveis temos entre cada par de extremos, e melhor nos situamos e aos outros. "Todo processo de conhecimento é também um processo de auto-conhecimento." Por isso o "Conhece-te a ti mesmo" e o "Nada em excesso" dos gregos. Pode-se concluir daí que sequer o auto-conhecimento deve ser buscado em excesso; mas também que o próprio auto-conhecimento é a adição de tonalidades a todos os pares dicotômicos, para que saibamos o que é excesso e possamos nos situar melhor longe dele. Mas ATENÇÃO! Extremo não é o mesmo que excesso. Ser bom é diferente de ser bom em excesso; como ser alto e ser excessivamente alto. Também o centro geométrico entre dois extremos não é sinônimo de virtude. É, na verdade, ser moderado, e moderação em excesso é tão ruim como qualquer extremo.

Há dois conceitos importantes em biologia, que também se aplicam à sociedade, e servem para melhor situar a Utopia. Um deles é a diversidade.

A vida na Terra surgiu com o processo de replicação dos primeiros ácidos nucleicos (RNA/DNA). Sua DIVERSIDADE foi o princípio da evolução, e é a lei superior da vida, que vai contra a idéia de igualdade, de que os homens e mulheres seriam iguais, ou os homens ou as mulheres entre si. Para o bem e para o mal, não o são.

O outro conceito é o de HOMEOSTASE. Sistemas complexos, como formigueiros e corpos humanos, possuem mecanismos intrincados para manter o equilíbrio interno, seja de temperatura, nutrientes, unidades de defesa, etc. Também a sociedade humana mantém seu equilíbrio pelo próprio instinto de cada indivíduo que conhece inatamente os conceitos de justiça, bom, mau, verdadeiro e falso.

Há uma intrincada lógica entre a sociedade, o poder, o bem e o mal. A sociedade se assemelha a um mapa de relevo, onde o poder se concentra naturalmente em algumas pessoas - os fortes - cumes de serras que se complementam na paisagem com os vales e abismos - os fracos - os que não têm poder, os que obedecem. Há montes mais altos e mais extensos, como vales amplos e estreitos; a diversidade é a lei. Algumas pessoas trazem em si carisma e força o bastante para comandar milhões. Enquanto há equilíbrio entre quem manda e quem obedece - enquanto as relações de poder são pautadas pelo Instinto, há um equilíbrio maior entre o bem e o mal. Quando o líder nato morre, o Instinto manda que seu reino seja dividido entre os novos líderes, segundo a capacidade de cada um. Quando o Estado, através das leis, CRISTALIZA o grupo que obedece, desrespeitando sua relação natural com aquele que está no poder, foge-se da homeostase; o bem e o mal saem do equilíbrio. Quanto maior e mais artificial for a hierarquia entre os que mandam e os que obedecem, maior o conflito e a separação entre o bem e o mal; tanto mais alguns gozam do luxo e dos benefícios, e outros sofrem abusos e refletem isso no que chamamos crime e violência. Eis um dos problemas da democracia, do voto: dar o poder a quem tem maior simpatia e a melhor propaganda. É preciso outro tipo de Instinto para mandar. E quando o que tem o poder não manda, assumem os espertos ocultos, aumentando ainda mais o desnível topográfico da paisagem social. São os tempos que vivemos, com as megacorporações e o megacapital que comanda todo o planeta, como nunca antes sucedeu - não em tamanha escala. Espera-se bem e mal em semelhante desvario, mas ai! que lhes roubam o poder, a ambos. O poder já não quer saber do bem e do mal. Tranca-se em seu apartamento e condomínio e deixa o resto com a polícia.

Quanto mais o mal se revolta, mais o bem se torna piedoso e desesperado, fanáticos religiosos. Quanto mais o bem se esconde na inação da fé religiosa, em desespero, mais o mal se vê na obrigação de reagir, de devolver o poder às mãos dos que o merecem - os fortes. Porque os bons já há muito deixaram de ser fortes. Entregaram o poder para fantasmas.

JUSTIÇA é deixar o poder fluir naturalmente.

Teleologismo é pensar que o fim antecede o meio, como quem diz "as árvores existem PARA nos dar ar" ou "a abelha leva o pólen com a intenção de alimentar suas irmãs", ou "as flores existem PARA embelezar o mundo". A natureza não prevê. Todo o seu curso é necessário, é tão necessário e contingente quanto as curvas de um rio. Como um rio, que não vira à esquerda por nenhum motivo; apenas a água é atraída pela gravidade da Terra e abre sulcos nos pontos mais fracos das rochas pelo atrito da erosão. Há quem pense, por exemplo, "que engraçado eu ter nascido justamente no Brasil do século XX, quando poderia ter nascido em qualquer época ou lugar. PARA QUE nasci eu aqui?" E assim nasce um conceito estranho de destino. Teleológico. Como se o indivíduo precedesse o nascimento, já como espírito. Como se o espírito pudesse ter escolhido outro corpo onde se alojar. A loucura por trás desse tipo de pensamento é que não existe evidência que o suporte. Muito pelo contrário. Nossa existência toda reflete apenas o que temos conhecimento, e isso já vai depois do nascimento, um bocado depois. Só sabemos que fomos bebês porque vemos outros bebês crescendo. Não podemos inferir algo que ninguém viu. Nem precisamos.

O erro do teleologismo também é sentido no senso comum sobre a justiça: "a justiça tarda mas não falha", como se o mundo existisse PARA QUE a justiça seja feita. Mas como nós apenas nascemos, e só então passamos a ser EU, também o mundo apenas é; quem viu a justiça onipotente em algum lugar, como exploradores de séculos longínquos que documentaram pela primeira vez a existências dos duvidáveis gorilas? (Tudo isso me parece tão banal, como se não valesse sequer o trabalho de ser escrito. Mas a maioria das pessoas que conheço pensa teleologicamente sobre a justiça, apenas porque cedo lhes disseram que Deus é bom, justo, onipotente e onipresente. Como pode alguém se cegar a tantas contradições? Como se todos os hindus e budistas, que pensam o mundo de uma forma milenar e diametralmente oposta, estivessem necessariamente errados. Na verdade, não interessa tanto quem está errado - interessa que toda religião PODE estar errada. A humildade, nesse caso, é mais justa que qualquer deus pode ser.

Em 1984, Orwell escreve sobre o "duplipensar": manter conceitos contraditórios, excludentes, sem grandes problemas. Realmente, o cérebro humano tem essa capacidade... mas será ela necessária? Mesmo aos fracos? Como Matrix viola uma lei da Termodinâmica e pouca gente se deu conta? As pessoas decoram as leis do universo para as provas, mas não as retêm. Nem mesmo os cientistas. Não se pensa em leis ou em lógica, mas principalmente em episódios, anedotas, casos isolados e exemplos. Não me estranha que não percebam contradições, não estão acostumados a destrinchar fatos em busca de leis. Bastou um punhado de decifradores do cosmos para nos darem muitas de suas leis, mas o seu trabalho até hoje não é honrado o suficiente.

O que é honra? É não se sentir envergonhado na frente dos outros. Houve tempo em que se matava por um adultério, para preservar a honra. Hoje nem sempre se chega a tanto. Estamos melhor do que antes? O conceito de honra não mudou - apenas os tempos...


"A democracia é a legítima exclusão das minorias".

O senso comum funciona como alguém que faz um croqui de uma casa andando nela apenas uma vez. É forçoso que os últimos cômodos não se alinhem com os primeiros, a não ser por sorte. É preciso ir e voltar várias vezes ou andar com uma trena para acertar. Mas como não é possível esquadrinhar todas as palavras com uma régua, para acertar-lhes o significado, o melhor bom senso só pode ser alcançado redefinindo algumas delas, à medida que se completa o quadro.

Uma pessoa quando cresce vai aprendendo as palavras segundo o senso comum, e depois de adulta tem na cabeça um croqui mal acabado, repleto de contradições e imprecisões. A verdadeira filosofia é a borracha e a régua que substitui conceitos do senso comum por medidas mais exatas, mais coerentes com o quadro geral que se acumulou durante a vida e durante a história do conhecimento humano.


Pretender que o homem e a mulher foram "feitos um para o outro" é um dos melhores exemplos de Wishful Thinking que conheço, uma forma de forçar a realidade para que ela se encaixe dentro de nossas expectativas. A verdade é que o homem e a mulher subsistem APESAR um do outro. Toda a vida de ambos é dirigida por princípios antagônicos, ou pelo menos bem diferentes, para não dizer os pequenos detalhes do cotidiano, como preferência televisiva, gosto pelo silêncio, círculos de amizades, entretenimento fora de casa, atitudes com as crianças, relação com os sogros, etc. A natureza só criou os sexos como forma de propagação e vantagem competitiva para espécies antigas (o que acabou servindo para aumentar muito a diversidade). Afinal de contas, alguém deve propagar as linhagens. Ou não! Eu aposto que Adão no Éden teria preferido um outro Adão, se é que precisava de companhia. A convivência entre pessoas do mesmo sexo é muito melhor; se assim não fosse os homens teriam mais amigas que amigos. E mesmo o sexo entre pessoas homossexuais pode ser considerado mais pleno, no quesito satisfação (embora não no quesito reprodução) - pois cada um entende o que se passa no corpo e na mente do outro. Esqueça as teorias sobre forma e função. Órgãos sexuais não são plug e tomada. Isso é teleologismo. Outro conceito da biologia é o de Exaptação: quando uma estrutura com um uso inicial passa a ser usada também com outro propósito. É bem possível que todas as criações da seleção natural tenham surgido por exaptação. Apesar de que o pênis e a vagina tenham evoluído em conjunto, quem provará que não evoluíram também junto com o ânus? Afinal, o sexo anal sempre foi muito popular. Não se normatiza tais relações. O instinto em cada um diz do que se gosta e do que não.

Uma coisa interessante que corrobora o "ajuste" dos homossexuais uns aos outros é o fato de existirem homens que preferem penetrar e outros que preferem ser penetrados. Ativos e passivos, não apenas em uma relação, mas na maioria delas, e às vezes por toda a vida. E há também os versáteis, que dançam conforme a música e sentem prazer das duas formas. Que sejam ainda necessárias mulheres e homens heterossexuais, para continuar a povoar o mundo de novos gays, jovens e belos, ótimo.

Aumenta o número de mães solteiras na medida em que a sociedade aceita mais as vontades e diferenças individuais. Há hoje um pouco menos de hipocrisia, e assim assume-se que homens e mulheres NÃO foram feitos um para o outro. Como, aliás, os gregos antigos e os chimpanzés bonobos já nos haviam demonstrado. (As fêmeas de bonobos - Pan paniscus - masturbam-se em grupo, fortalecendo seus laços de amizade e garantindo a união das fêmeas contra a tirania dos machos dominantes, situação comum nas duas espécies vizinhas: Pan troglodytes, o chimpanzé comum, e Homo sapiens.


Superação - "o homem deve superar-se a si mesmo". Isso temos feitos em diversas áreas; nas ciências, na filosofia, nas artes, na tecnologia. O que me deixa duvidoso é a política. É verdade que com o sistema democrático conseguimos a liberdade individual de uma forma que talvez seja inédita na história da humanidade. Mas como a felicidade artificial e não-criativa do Admirável Mundo Novo, de Huxley, de que vale uma liberdade parcial, como a que temos? De que adianta a liberdade do homem quando ele não sabe se perguntar "livre para quê?". Ou, ainda, quando tem liberdade para pensar, mas não pensa, pois perdeu o gosto?




O Instinto Humano não muda, pois está inscrito em nosso DNA. Não que nossa evolução tenha parado, mas ela é tão lenta que mil impérios se erguerão e cairão antes que uma mudança notável se tenha feito em nosso instinto. Assim, nós somos os mesmos, em essência, em instinto, daqueles que lutaram em Constantinopla, ou dos que ergueram as pirâmides, ou ainda daqueles que muito antes vagavam nômades e analfabetos pelas planícies da África. Em seu Instinto o homem não se pode superar (a não ser pelas mãos da Engenharia Genética - Nosso Futuro Pós-Humano). As diferentes sociedades experimentaram várias leis, várias formas de governo, vários níveis de democracia e liberdade. Mas a sociedade continua sendo uma grande tentativa, e, na minha opinião, jamais superamos o nível alcançado pelos gregos antigos. Eles tinham uma educação voltada para o corpo e a mente, liberdade de expressão consumada na Ágora, liberalidade sexual e cidades-estados independentes, com liberdade de ir e vir. Prova da eficiência de seu sistema foi terem os gregos criado os fundamentos que até hoje usamos na música, na ciência, filosofia, matemática, arte literária, entre outras. Nenhum outro povo ocidental depois dos gregos antigos viveu tão plenamente. Talvez hoje tenhamos alcançado um nível de educação bastante bom, se comparado à média ao longo da história. Talvez hoje a proporção de pessoas com algum conhecimento e alguma liberdade seja bem maior. Mas a mesma industrialização que permitiu isso está esgotando rapidamente os nossos recursos naturais. Saímos dos "mil anos a dez" da idade média e adentramos os "dez anos a mil" da modernidade. Com o fim do petróleo, das grandes florestas, com a escassez inevitável de água potável, entraremos numa era bem distante do Aldeia Global's Way of Life. Se não aproveitarmos hoje o conhecimento que acumulamos para desenhar o perfil de uma nova sociedade, fundada no Instinto Humano, universal e equilibrado, para o bem do indivíduo e da coletividade, é possível que o próprio conhecimento seja novamente perdido durante longas e sombrias eras - como, inclusive, já aconteceu antes.


A natureza que contemplo não está ao alcance da maioria dos homens. Nu em uma cachoeira, quilômetros distante do próximo homem, entre animais, plantas e a música do universo, sinto-me o mais afortunado humano a contemplar o mesmo imenso céu azul. O progresso deveria ser permitir a todos presenciar a soberania natural ao menos uma vez. Sentir-se parte do todo, sem barreiras físicas, sem roupas, sem guias ou roteiros - apenas o corpo e a natureza, nus e sinceros - esta é a Revelação, este o verdadeiro sentimento religioso.


Passou o tempo dos grandes pensadores que se debatiam com a Metafísica e a Ontologia. O "ser", "Deus", "aquilo que é", tudo isso são termos imprecisos para algo que era percebido, mas ainda não tinha explicação. Quantas páginas foram preenchidas ANTES de se CONHECER o problema real!

É claro que ALGO é; algo precisa ser, mas o que é o SER, e como este se relaciona ao homem, é algo que não se poderia abordar, a não ser por opiniões impossíveis de serem testadas. Apenas com o avanço atual da ciência, e digo de 50 anos pra cá, de uma maneira que Aristóteles jamais suspeitaria, foi possível perceber que o que de fato É é tudo quanto existe, em cada grau da matéria, e tudo se mostrou composto da mesma matéria. Mas a partícula fundamental ainda não foi encontrada; este átomo ideal - sejam supercordas ou elementos ainda mais abstratos - talvez sequer exista, e só o que temos até o momento são INSTÂNCIAS do SER, estáveis em diferentes níveis, quarks, átomos, moléculas, com propriedades inerentes à sua composição, emergentes em cada novo nível de associação, de complexidade, e sempre obedientes à mesma macroestrutura, às mesmas leis, elas próprias emergentes na física, na química, na biologia e adiante. Não se trata mais, portanto, do SER, mas de ARRANJOS, NÍVEIS ou PASSOS que a matéria toma para TORNAR-SE algo. Assim, o que existe são partículas, átomos, moléculas, células, organismos, homens, nações. Ainda que o átomo admita menos variação que o homem, devido à estrutura de ambos, todos seguem leis, que lhes são próprias e cada qual traz uma essência, descritível pela lógica que é a mesma de toda a matéria, de tudo quanto foi observado no universo visível; a lógica material comum às galáxias e às pedras, aos vaga-lumes e às estrelas. Que o próprio Homem seja assim tão material, isento do sobrenatural que se lhe atribuía, é ainda mais divino e espetacular que o sonho mais ousado do mais louco profeta. E o que é, pois, a essência do Homem, o que é o SER no Homem? Em uma palavra - Instinto.

O Instinto é aquela raiz genética, tão variável quanto invariável, isto é, variável na população, pela própria diversidade genética, mas restrita aos limites invariáveis dessa própria diversidade, que o Projeto Genoma Humano busca mapear. Quem poderia imaginar o SER que tanto roubou o sono dos filósofos, mapeado! O Instinto flexível pela cultura, em cada indivíduo, mas inflexível como a mola que não se deforma; o instinto sempre pronto a reverter para o estado primitivo em presídios, guerras, pestes, ilhas remotas, e onde mais que a cultura se evapore, mostrando o homem como ele é de fato, desnudo.

"O Instinto é um conjunto de comportamentos que mantém a homeostase social". Uma espécie de ratos tem programada como ideal uma certa densidade da população. Aumenta-se a densidade e sua agressividade cresce. Eis seu instinto. O aumento da agressividade dispersa o bando e faz a densidade retornar ao ideal - isso é homeostase, equilíbrio. Uma densidade baixa é aumentada pela reprodução. Instinto gera homeostase. Observem os ratos em gaiolas; aumente o seu número e observe novamente. Qualquer semelhança com nossas metrópoles não é mera coincidência.

Agora que o homem pode finalmente conhecer o SER, abre-se o caminho para um novo humanismo, para a nova Utopia.

Em milhares de anos de história, todo o conhecimento reunido foram círculos traçados sem se saber onde situar-lhes o centro. Tudo era instável - deuses, o espaço cósmico, o homem, a história. Agora fixou-se a origem. Não importa que não saibamos a estrutura profunda do átomo, sabemos que somos feitos deles, e que eles são os mesmos até em outras galáxias; sabemos a estrutura do DNA, e a maneira como ele opera nosso comportamento é cada vez melhor compreendida. O CENTRO de nosso conhecimetno está, finalmente, sendo fixado. Tudo flui daí. Agora podemos dizer Homem e História, com agás maiúsculos - pois agora sabemos O QUE somos. Não mais o incognoscível; não me interessa! Que mistério há, afinal? A origem de tudo é não haver origem alguma; o resto já está nos livros, o que não está falta-nos preencher. E como toda essa revolução do pensamento ocorreu em tão pouco tempo! Como agradaria aos maiores pensadores estarem vivos agora e poder saber o que nós sabemos! Mas o privilégio é nosso. Nós, órfãos dos pensadores, herdamos sozinhos todo o conhecimetno que os antigos dariam a vida para adquirir, e cabe a nós, portanto, traçar o caminho para a futura evolução da sociedade, para o futuro do Homem, para a Utopia!

Thursday, May 17, 2007

1997-2007: Dez anos de sexo, drogas e roquenrol

A memória é uma faca de quatro gumes afiados. Lembra-nos certas coisas úteis, mas mantém um acervo de preciosidades inúteis. Esquece alguns detalhes incômodos, medos, perdas e fracassos, mas em sua roleta do esquecimento acaba jogando fora também pérolas passadas que, tivéssemos controle absoluto sobre os demônios de nossas mentes, preferiríamos manter.

Há dez anos eu começava a beber e aprendia a fumar, embora não tenha deixado o cabelo crescer. Muito. Há dez anos eu conheci o primeiro amor, que por capricho do destino não deu certo. Tivesse dado, e o que teriam sido esses dez anos? Andei, como andei. Sem rumo, propriamente dito, apenas uma impressão sobre o vento, que sempre admirei seguir. E se... eu não tivesse bebido, ou fumado, ou me perdido e me achado em tantas reentrâncias do mundo, onde estaria agora? E como? Tenho um amigo que se casou com a menina que já namorava muito antes daquela época. Não bebiam nem fumavam. Creio que se conheceram por volta de 1992. Quinze anos com a primeira namorada, e recebo, tanto tempo depois, um convite para o casamento na outra metade do país. Sim, era um grande amigo, e talvez seja o melhor esboço do que eu seria caso minha história tivesse sido essa outra. Monogamia, estabilidade, tradição, todos valores que eu vinha desprezando, dos quais me afastei como o andarilho que caminha sem rumo atrás de um ideal de que já não se lembra mais. Ideal? Um céu estrelado, uma praia de rio, nada demais. Ou talvez seja só o caminhar, como nesse poema supostamente escrito por um marginal de sangue índio, com o qual me identifico:


"Existe uma raça de homens que não se adapta,
Uma raça incapaz de sossegar;
Por isso partem os corações de amigos e parentes;
E andam pelo mundo afora ao deus-dará.

Atravessam os campos e as enchentes,
E sobem à crista das montanhas;
Neles atua a maldição do sangue cigano,
E não sabem como descansar.

Se andassem em linha reta podiam chegar longe;
São fortes e destemidos e sinceros;
Mas estão sempre cansados do que existe,
E desejam o estranho e o novo."



Assim, acho que um número redondo como 10 é uma boa marca para uma nova mudança, uma tentativa de buscar algo ainda mais novo.

Quando comecei esse blog, tinha claro que sexo é muito bom, e drogas também. Drogas são todas essas coisas que assimilamos para tentar encher o vazio da vida. Não o enchemos, evidentemente, mas as drogas nos ajudam a seguir em frente, embora tudo isso tenha seu preço. Drogas, é bom explicar mais uma vez, não são apenas as drogas ilícitas, maconha, ecstasy, LSD, Psilocybe, Ketamina, cocaína, heroína, paricá, etc. (das quais não cheguei a experimentar todas, mas não direi quais). Também são drogas o cigarro, a cerveja, a televisão, a música, a leitura, o trabalho, a fé, os remédios, tudo que supre certas deficiências nossas e nos ajuda a viver, mas que, por outro lado, nos obriga a deixar para trás as alternativas - tudo que faríamos, e que poderia ser bom ou ruim, caso não nos preocupássemos em preencher nosso vazio daquela maneira.

Já o rock and roll, bem, rock and roll will never die! É um estilo de vida e pensamento, liberdade, independência, dizer não às hipocrisias da sociedade e à alienação. Já é alguma coisa.

Agora, o que percebo é que nem todo rock and roll é rock and roll propriamente dito. Tem muito rock por aí que vive apenas de usar drogas para afirmar uma identidade que não saberia se afirmar de outra maneira. E é difícil abandonar um hábito arraigado, ainda que se afirme que não vicia, que não faz mal, etc. Tem muito rock aí que acha lindo, da boca pra fora, ser contra o sistema, ser revolucionário, "meus heróis morreram de overdose" - foi o hino de uma geração, e ainda é de muitos de nós. Aqui em Manaus ouvi uma banda, certa vez, que cantava algo como "seus heróis morreram de overdose, seus heróis já eram, olhe em volta, o mundo gira, o mundo é novo, e falta tanto por fazer".

Meus heróis agora são outros. Como Thoreau, que já nutria o espírito rock and roll muito antes do rock nascer. Ou como Jesus, que muito antes já era revolucionário, e é mesmo uma pena que os ditos cristãos de hoje não tenham aprendido sua mensagem. Confúcio, ainda antes, já disse o básico: viva e deixe viver.

Nos últimos anos me embrenhei nas selvas burocráticas da conservação da natureza. Que infame! Trata-se de permitir que o governo compre, a cada contracheque, nossa alma e esperança; de servir ao sistema que desmata e corrompe, multando um e outro miserável em troca da paz de consciência, deixando o trem desgovernado seguir em frente, em silêncio respeitoso pela tradição, entre jogos de interesse, sede de poder, ganância, intrigas, troca de favores e de posições, e nada mais.

Estou convicto de que não há conservação possível sem uma mudança global de consciência. Unidades de conservação, uma aqui, a outra ali, pode ter funcionado na Mata Atlântica e no Cerrado, mas não acho que funcionará na Amazônia, essa deusa verde que me alimentou por alguns anos, apenas o suficiente para me tornar seu súdito e admirador. Pelo simples fato que o desmatamento diminuirá a umidade que vem da própria floresta - ao contrário das matas litorâneas que recebem a chuva do mar. E nessa sede de progresso e modernidade, de eletrônicos e descartáveis, apenas posso dar o exemplo que Thoreau deu 150 anos atrás, quando se mudou para uma cabana no meio do mato, para mostrar o que realmente importa. Leia Walden, se puder (Walden ou A vida nos bosques, de Henry David Thoreau), e me diga se a mensagem jamais foi tão atual. Isto é, se você não estiver ocupado demais servindo ao sistema.

A lógica do ódio e da competição já está escrita no sistema natural dos animais, embora a cooperação também esteja. O que torna nosso mundo injusto, e que acende algum ideal pelo qual vale a pena lutar, é que o animal, hoje, é dono do mundo, e não apenas de seu território de caça. Dizer não ao grande, às megacorporações, aos governos, legisladores, juízes e policiais corruptos, à propriedade da informação, ao espetáculo da mídia, ao egoísmo capitalista, é dizer sim aos pequenos, à diversidade e àqueles que não tinham voz para contar sua história. Há uma longa fila de histórias por serem ouvidas, e a Internet torna isso possível pela primeira vez na história humana. Ouçamos, então.

Mas não aqui. Que este blog recebe seu último ponto final.

Thursday, May 10, 2007

"Please don't you rob my bones
Because I don't want my bones to be robbed
Oh, can't you see?
I like it like this.
Satisfy my soul"
- Bob Marley.

A guerra sempre ceifará filas e filas de jovens vidas
senão na morte, na indiferença,
senão no vício, na incombustão,
senão na dor, na insensatez,
senão na graça, na estupidez.

tornado

O tempo voa em círculos, como um urubu numa espiral ascendente.

Como a galáxia, vamos espiralando pelo universo rumo ao desconhecido,
sem saber aonde vamos, de onde viemos, apenas seguindo em frente.

Certo dia, chega até cada um de nós um entendimento que até então não tínhamos;
é como uma volta completa, mais um arco, um elo uma espira.

Estamos agora exatamente onde estávamos antes, mas um nível acima;
compreendemos agora por outro ângulo o que antes só era visto em parte.

Agora, ainda, apenas vemos em parte, e jamais será diferente.

O que vemos, o que entendemos, será sempre o que procurarmos
entender, e estiver ao nosso alcance.

Com o tempo, sempre alguém estará mais certo, e outro irrefutavelmente errado.
E não é o mundo que vai girar sempre
para adaptar-se aos pensamentos que se julgam, apenas, atrasados.

O conhecimento límbico

Nosso cérebro funciona em diferentes níveis, que podem ser vistos se cortarmos nosso órgão como uma laranja.
Por fora, como se fosse a casca colorida e o tegumento branco interno, que separa a polpa do exterior, temos o córtex. É o córtex quem raciocina o pensamento consciente, fazendo operações que envolvem a visão e os demais sentidos, a memória e diversas capacidades cognitivas (chamadas daemons, pois são numerosos e agem por conta própria, sem a nossa contribuição, como pequenas criatura não dotadas de inteção; pequenas máquinas feitas de neurônios especializados num determinado tipo de tarefa burocrática sobre o tecido nervoso e, por conseguinte, sobre nós).
Abaixo do córtex, temos aproximadamente o volume da polpa alaranjada e macia de nossa fruta cítrica: o sistema límbico. É nessa parte, igualmente desenvolvida nos demais mamíferos, que acontecem as descargas elétricas relacionadas às nossas sensações primitivas compartilhadas com nossos primos de pêlo - frio, fome, medo, sono e sonhos, etc. Nessa parte acontece a vida privada do cérebro, onde ele se defende de nossa curiosidade natural em desvendar seus segredos. Se fosse interessante que os mistérios da mente já estivessem todos decifrados, isso já teria sido feito e incorporado à nossa genética há muito tempo, dadas as maravilhas que a seleção natural é capaz de realizar ao longo das eras. No entanto, boa parte de nossa psicologia permanece oculta, e o "conhece-te a ti mesmo" da época dos gregos precisou ser balanceado com outra máxima de igual relevância, lado a lado com a primeira no templo de Delfos em Atenas: nada em excesso. Por isso, psicólogos precisam se tratar. Tentar desvendar a máquina é como tentar medir a velocidade e a posição do elétron, quando buscamos um, deslocamos o outro. A máquina não é imune a falhas, e não foi feita para desnvendar a si própria, nem ao mundo externo, em demasia. Afundaríamos em tristeza se analisássemos a frieza do mundo mineral com muito apreço. Não há nada lá, e acabaríamos por nos decepcionar.
Talvez por isso tenha evoluído em nós a sensibilidade à ignorância calculada, também chamada auto-engano. Boa parte de nossa vida mental ocorre escondida no que hoje chamamos inconsciente, e é exatamente aí que deve ficar. Não um deve de obrigação ou moralismo, apenas um de eficiência, de aproveitar num órgão aquilo que ele foi projetado, pela seleção natural, para executar.
Abaixo do sistema límbico existe ainda o núcleo central da máquina humana, o processador, ou ainda, o seu kernel - o centro de gerenciamento do sistema, que controla as atividades mais fundamentais, como a respiração, a circulação, o equilíbrio térmico, etc. Acesso restritíssimo.

Mas falemos de conhecimento e memória.

A memória, como a consciência, é feita em módulos. Não existe uma coisa a ser descrita como memória, trata-se de uma máquina com partes intrincadas e delicadas. Bilhões de neurônios fazendo trilhões de sinapses, e cada uma delas ligando uma coisa, um cheiro, uma cor, uma forma, um fonema, uma palavra, uma pessoa; a outra coisa, um sentimento, um lugar, uma época. Isso é a memória, e nosso Eu é a soma disso tudo, por onde temos passado, do que lembramos e do que esquecemos. Mesmo o que esquecemos não passou em vão; pelo contrário, foi o que passou por nosso cérebro que fez de nós o que somos - que moldou a rede de plugs e interruptores que é o que a gente é, por dentro e por fora.

No nível inconsciente, sensações repetidamente associadas com nossa resposta emocional permanecem guardados em estruturas (muito provavelmente neurônios) que ligam as sensações com o humor que tivemos como reação a essas sensações. Não precisamos nos lembrar o porquê de cada associação, mas o tempo todo fazemos todas as nossas escolhas baseados nesse tipo de ligação, intuitivamente.

Quando enfrentados com múltiplas percepções, a intuição consegue capturar, do fundo dessa memória inconsciente, uma resposta adequada a ela, por já ter se mostrado útil no passado. A razão, o pensamento racional consciente, apenas poderá seguir seu método afiado, porém lento, de analisar percepção por percepção, e já não poderá se lembrar de todas, para submeter cada uma delas pelo crivo estreito de seu parco regime de sistemas lógicos, tentando, em vão, justificar a intuição para dar-lhe apoio. A verdadeira intuição não roga pelo apoio da razão, é muito superior a ela. A razão é boa para determinadas tarefas, mas não pode se preocupar em tentar provar a intuição todo o tempo. Não é para isso que ela evoluiu. O segredo da inteligência está em saber usar as ferramentas que temos, nossos daemons, da melhor maneira, como eles funcionam melhor, seguindo para isso o instinto, o mesmo do pássaro que voa pela primeira vez e da girafa que já nasce de pé. Fazei como a tartaruga que sabe o melhor lugar para cavar, sem nunca ter pensado a respeito. Senti dentro de vós o chamado do inconsciente e o segui, sem esperar que a razão consiga entender por completo o que ali se passa. E admiti para vós mesmos que o Eu, na verdade, não é a razão, mas o conjunto de tudo isso que somos, do qual a razão é mera convidada, a última a chegar. Aí, nas portas da percepção, começa o auto-conhecimento.

Ciência e Política

"Corremos despreocupados para o precipício depois de haver colocado alguma coisa diante de nós para impedir que o vejamos."
- Pascal, Pensamentos, 166 (183)

Hoje é mais fácil convencer um crente da iminência do colapso ambiental - ou melhor, da nossa caminhada lenta e progressiva para um futuro apocalíptico - do que tentar convencer disso um não-crente.

Nunca houve tantos não-crentes. Ateus, agnósticos, livres-pensadores. Nem nunca houve tantos especialistas, gente formada, explicada, entendida dos assuntos do mundo - pelo menos da sua área.

Nunca o meio ambiente esteve tão prejudicado. Faça o teste com sua família, seus amigos: qual é o maior problema atual? Violência, dirão uns; desemprego, dirão outros. Uma coisa causa a outra, mas qual é a causa primeira? Dirão uns. Qual a principal, maior, etc?

O problema hoje é o problema moderno.
A sociedade veste uma roupa moderna e passa a pensar que é uma novidade no mundo. Sim, a violência é uma questão premente, mas o que a causa? Desemprego, injustiça, políticas inadequadas, corrupção. Acho que a corrupção é o maior empecilho ao nosso país. Educação é a palavra certa, mas qual? Que tipo de educação? Educarmo-nos para sermos modernos?
A ciência progride,
a cultura anda em círculos.
A própria educação vai e vem, conforme a ciência e a cultura de seu tempo. Portanto, tudo o que não se acumula é reversível; o que se acumula, como o conhecimento e a biodiversidade, é irrecuperável.

Parte do conhecimento é cultura, logo parte dele pode ser reconstruído. A biodiversidade não.
A diversidade genética, morfológica, bioquímica, ecológica, filogenética, comportamental... tudo isso, uma vez perdido, não tem volta.
O mundo pode ter um fim como o da Babilônia. Mas se sobrarem pessoas, elas terão tempo para reerguer suas letras e confortos; no entanto, ninguém será tão rico quanto éramos antes, quando ainda havia (um dia escreverão haveria) nomes para coisas que existiam.

Edward Wilson, que já foi chamado de "papa da biodiversidade", ou talvez tenha sido Stephen Jay Gould, o grande paleontólogo e divulgador da ciência, quem disse que atravessamos a sexta extinção. Não interessa o número exato.
Há 65 milhões de anos, aproximadamente, parece que um meteorito descomunal caiu, depositando uma camada única de metais raros nos extratos geológicos dessa idade, em vários locais do planeta, separando a fauna fóssil entre animais grandes e pequenos: fósseis de répteis gigantescos dominam as rochas mais antigas, no lado da faixa conhecido como Mesozóico. O lado mais recente da faixa, chamado de Terciário, permanece ocupado por fósseis de pequenos animais (entre eles os mamíferos e aves que deram origem à grande diversidade de espécies que esses grupos apresentam hoje).

Muito antes disso, por volta de 250 MA atrás, desapareciam do registro geológico os fósseis de cerca de 90%¨das famílias de animais conhecidas da época. Tratava-se da maior extinção de animais conhecida até então.

As eras e os períodos geológicos são marcados por esse tipo de catástrofe; palavra que, colocada no contexto adequado, quer dizer apenas... mudança.

Como disse, somos responsáveis pela sexta mudança, a sexta grande extinção de animais desde sua - nossa - origem como tais, há +/- 650 MA. Que fosse a décima ou centésima - não só pelo fato de sermos animais, mas também por comê-los, por comer as plantas que eles polinizam e dispersam, e por aproveitar deles todos, animais, plantas e microrganismos, cada vez mais remédios, fibras, combutíveis e todo tipo de substâncias químicas usadas para os mais diversos fins - é uma ignorância terrível darmos fim a tudo isso ao cabo de uma guerra injusta, cega e desprevenida pelos que engolem a cada dia outra dose, outro gole do mesmo veneno seco.

E, depois, chamam quem quer mudar de "radical".

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Como convencer as pessoas da necessidade de mudarmos?
Como disse, estamos já na sexta mudança. Talvez sobrevivamos.
A política é a única religião que não requer fé.
No entanto, a verdadeira política requer vontade, atitude e direção.
A vontade sozinha transforma-se em idealismo débil e sonhador;
a atitude apenas é rebeldia sem intuito,
e a direção é a única conseqüência possível para a inteligência;
é, certamente, a mais digna.

***

A questão ambiental não é nada além da velha luta de classes, marxismo.
Quem tem e aproveita não aprendeu a pensar no futuro.
Quem não tem aprende, com pesar, a pensar nos outros.
Ambientalismo é pensar nos outros.
Quem tem, hoje, lazer e distração não quer perder isso.
Não passa de um chiste dizer que ninguém quer perder o que tem; justo quem mais tem é quem mais se importa em perder.
Quem não tem, por outro lado, temerá o quê? Salvo os que ainda têm um pouco.

A diversão é a única coisa que torna a vida tolerável. Sim, diversão é solução pra mim. Futebol, carnaval. Mas os ricos têm ainda praia, piscina, clube; têm parques, camping, trekking e esportes radicais.
Sejamos francos: nosso passado rural era mais democrático ao menos no quesito lazer. Um lago, uma pescaria. Hoje o lazer é pros poucos que podem pagar; as balas, para os que sobram.

O que é conservar a natureza? É manter a qualidade de vida dos que não podem pagar pra viajar, pra comprar e manter cota de clube, ir pra praia, cachoeira...

Vivemos num ciclo vicioso de pobreza, urbanização e perda do acesso à natureza. O meio urbano é um ser vivo - possui a rara capacidade de se replicar e se perpetuar. Dentre aqueles que se mudam do campo para a cidade, ou das cidades menores para as maiores, poucos querem voltar.
O cidadão urbano quer geralmente cimentar o quintal, pois odeia terra; derruba árvores.
E as crianças que crescem aí têm nojo de tudo que se mexe, ou voa, e não pode ser identificado - qualquer besouro ou mariposa - criaturas inofensivas e belas.
Essas crianças vão pouco ao campo, à natureza, e não têm a perspicácia de se virarem ali; por conseguinte, não gostam. A maioria deles viverá o resto de suas vidas dependendo da tecnologia e do meio urbano, e passarão esse traço adquirido, ironicamente lamarckiano, para os seus descendentes. É a cultura lamarckiana vencendo a luta contra a natureza darwiniana.

Não que a cultura não seja também darwiniana; é. Afinal, é mais forte e está vencendo. Darwiniana, lamarckiana e marxiana; o que fazer contra tanto ímpeto, tanta razão? O que a natureza sempre fez: guerra.

Pode ser uma guerra perdida, mas quanto a isso sou espartano.

Felizmente, não se trata de uma guerra onde ou se ganha ou se perde.

A política é uma guerra mais sutil; não é categórica, mas contínua.
O que é ruim pode melhorar,
o que é bom, piorar.

A guerra convencional se dá por genocídio e estupros: cópia e eliminação de genes.
A política, seja boa ou ruim, é cópia e eliminação de idéias, de signos; para usar um termo caro a Richard Dawkins, de memes (e também de genes!).

Uma idéia pode mudar vidas. Isso para mim basta.

Só Deus pode salvar o mundo: - não há aqui contradição, visto que não existem nem Deus nem salvação - são apenas outros memes a nos confundir. Há várias coisas que poderiam receber esses nomes, mas prefiro acreditar mais em coisas palpáveis, das quais é impossível duvidar: pessoas, trabalho, exemplo, motivação, atitude e caráter são bons exemplos.

Acima disso resta a metafísica, e talvez tenhamos tempo para ela depois que fizermos nossa parte na defesa do único lar que temos como espécie.

Por quanto tempo?