Saturday, June 30, 2007

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A cada dia os momentos caem como se de uma árvore plantada pelo vento nas reentrâncias do tempo.

A memória vaga sem demora pelo campo de árvores douradas repletas de fatos e eventos,
ludibriada pelo mesmo farto vento que passeia em silêncio entre verdes folhas tenras saciadas de fomento.

E quem vagueia aqui, nesse desolado e calmo campo, entre as sombras frondosas de verdes folhas e memórias, senão aqueles que em vão vagam atrás da velha e voluntariosa visão de valor e vitória?

Vagamos nós, frutos da seiva da vida que goteja intermitente entre milênios de escuras memórias, escusas estórias de escórias passadas, arrastadas pelo vento que também esquece.

A torpe rede adormece empedernida de sonho e dor, de exílio e cor.
A doce aura silvestre embevecida de suor e ardor - de saudade e amor.

Como você olha os outros?

Sempre encaro transeuntes sujos e mal-vestidos dentro dos olhos. Vários deles já me olharam com um ar sincero e afetuoso, como quem agradece minha boa vontade em encará-los e ao menos retribuir-lhes um cumprimento honesto e tranqüilo. Será que até isso desaprendemos a distribuir?

Ingênuo

Escrever é muito misterioso.

Quando cada palavra vem, você não sabe direito de onde ela vem, ou para quê. Sabe que ela vem como verdade, como palavras que você sinceramente diria.

Pensei em escrever sobre as mentiras que se aceita como necessárias na vida pública em nosso país, como pensei em escrever sobre como modifiquei há pouco minha concepção pessoal sobre o que eu acreditava verdadeiro até então, ou sobre o que eu nunca tinha pensado. Mas não.

Escrever é tornar sólido o gás da mente.

É preciso um cuidado todo especial para fazê-lo. Como se, ao escolher uma palavra para conduzir uma idéia, você tivesse depositado nela sua honra e seu direito de levar adiante você. Um perigo compensado pela oportunidade de se entender.

Há no mundo pessoas e pessoas. Cada uma tem uma parte da visão do mundo, como se visto pela direita ou pela esquerda, mais de cima ou de baixo. Alguns têm uma variedade de pontos de vista, outros são teimosos em sua própria perspectiva. Alguns acedem gentilmente sobre a opinião alheia, desde que sustentada sobre uma lógica asseada. Outros até seguem a lógica, mas exigem evidências. E outros ainda simplesmente não se importam, ou não percebem.

Talvez todos estejam errados, a não ser aquele que diga apenas o que viu. E o mundo é muito maior do que todos vêm.

É o caso do metropolitano que não conhece o ponto de vista do ribeirinho, e do ribeirinho que ignora o do metropolitano.

Ou do livre-pensador que despreza o padre que entende o pobre que não entende o rico. E do rico que, muito menos, entende o pobre.

Chamar amazonense de pobre? No meio da floresta mais rica do mundo? Pura ingenuidade.

Monday, June 25, 2007

Desenvolvimento e reducionismos

Sempre tive preguiça desse papo de que as ciências modernas (como a biologia e a sociobiologia) são reducionistas e mecanicistas. Há uma infinidade de fenômenos que só passamos a compreender através dessa abordagem reducionista/mecanicista, compreensão que jamais teríamos alcançado de outra forma. Porém, a ciência ficou presa ao método, e também a um ideal de desenvolvimento onde o conhecimento em si atrai novos pesquisadores a cada ano, como a minhoca atrai os peixes. Avança-se na ciência por hábito, por profissão ou por mera curiosidade, nunca ou quase nunca colocando como prioridade a ética de duas perguntas simples: avançar para quê? Para onde?

A ciência tem impulsionado a técnica, e esta o nosso avanço predatório sobre o meio-ambiente. Assim, o mal do reducionismo não está na metodologia científica em si, mas no fato desta estar ilhada, desvinculada de um bom senso social, onde caberia decidir quais avanços são desejáveis, no sentido em que melhorarão não apenas o nosso conforto, mas principalmente nossa sobrevivência e dignidade, e quais avanços são supérfluos, dispensáveis, uma vez que tenhamos tomado a iniciativa de regular nossos avanços em benefício das gerações futuras.

O trecho a seguir complementa essa idéia:


A idéia de desenvolvimento continua ainda tragicamente subdesenvolvida, porque presa à racionalidade econômica. Essa idéia de desenvolvimento foi e é cega às riquezas culturais das sociedades arcaicas ou tradicionais, que só foram vistas através das lentes economistas e quantitativas. Ela reconheceu nessas culturas apenas idéias falsas, ignorância, superstições, sem imaginar que continham instituições profundas, saberes milenarmente acumulados, sabedorias de vida e valores éticos atrofiados entre nós. Fruto de uma racionalização ocidental-cêntrica, o desenvolvimento foi igualmente cego ao fato de que as culturas de nossas sociedades desenvolvidas comportam dentro delas, como todas as culturas, mas de formas diferentes, ao lado de verdades e virtudes profundas, idéias arbitrárias, mitos sem fundamentos (como a ilusão de termos chegado ao auge da racionalidade e de sermos os depositários exclusivos desta), cegueiras terríveis (como as do pensamento fragmentado, compartimentado, redutor e mecanicista).

Modificado de MORIN, E.; KERN, A.B. Terra Pátria. Porto Alegre: Sulina, 1995 apud BECKER, D.F. Sustentabilidade: Um novo (velho) paradigma de desenvolvimento regional. In: BECKER, D.F. (org.). Desenvolvimento Sustentável: Necessidade e/ou Possibilidade? Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2002. pp. 31-97.

E ainda:


Graças a seu caráter fluido e a seus objetivos humanistas, o termo desenvolvimento assimilou uma conotação positiva, de pré-julgamento favorável: ele seria em si um bem, pois "desenvolver-se" seria forçosamente seguir em uma direção ascendente, rumo ao mais e ao melhor. Aqui, a analogia com o desenvolvimento dos organismos biológicos aparece claramente: desenvolver é crescer, difundir potencialidades para atingir a maturidade.

Esta analogia, no entanto, é falsa e enganosa pois cada desenvolvimento biológico é a repetição de um desenvolvimento precedente inscrito geneticamente. É, portanto, o retorno cíclico de um passado, e não a construção inédita do futuro. Sob essas bases há uma ruptura com a noção "oficial" de desenvolvimento, aquela que vê o desenvolvimento sócio-econômico voltado necessariamente para a construção do futuro.

ALMEIDA, J. A problemática do desenvolvimento sustentável. In: BECKER, D.F. (org.). Desenvolvimento Sustentável: Necessidade e/ou Possibilidade? Santa Cruz do Sul, EDUNISC, 2002. pp. 21-29.

Tuesday, June 12, 2007

Religião != Mitologia

É interessante como os índios costumam valorizar o corpo masculino, sua força.
Não como os brancos das metrópoles.
Não como Eva, que poderia ter sido feita depois de Adão, como para melhorá-lo.

Como se a reprodução fosse melhor que a força.

Sociedades guerreiras (e portanto necessariamente - virtuosas) no máximo dariam igual valor aos dois princípios.

Nós, o ocidente cristão,
nós, que usamos roupas e obrigamo-nos a tapar a nudez,
que temos vergonha do próprio corpo, e de sorrir com ele,
nós parecemos mesmo não ter alma.

Uma religião que privilegia a reprodução sobre a força só poderia ter feito sucesso num mundo de fracos.

Hoje, muitos dos índios que se dizem religiosos nunca engoliram doutrina alguma.
A maioria deles ainda sabe jogar, e jogam bem.

Friday, June 08, 2007

Livre-arbítrio

Penso que muitos filósofos filosofam de mais e vivem de menos. A discussão sobre o livre-arbítrio, por exemplo, é uma das mais belas e contenciosas distrações estéreis de que já ouvi falar. De um lado, o universo pode ser completamente mecanicista, toda causa desencadeando um efeito específico e previsível, tudo lógico e matematizável. De outro lado, pode haver espaço para o acaso, para espontaneidades sub-atômicas que - talvez - insiram no universo a possibilidade de múltiplos destinos, de histórias abertas a diferentes possibilidades; em outras palavras, a chance de sermos responsáveis por nossas próprias ações.

Como dúvida inicial, considero-a estéril porque, seja o universo 100% determinístico ou não, NÓS jamais saberemos qual neurônio vai disparar causalmente qual neurotransmissor, ou qual evento se seguirá a qual causa. A dúvida, portanto, é se existe ou não, DE VERDADE, essa coisa metafísica que se convencionou chamar livre-arbítrio. Ora, tenho dúvidas que me parecem bem mais interessantes. Por exemplo, se pensarmos que o consumo de combustíveis fósseis está aquecendo o planeta, e que nossa qualidade de vida e conforto respondem pela necessária desigualdade social, que misturada à falta de educação e oportunidades, junto ainda com o descaso oficial do governo que cobra impostos excessivos e é todo dia flagrado em espetáculos impunes de corrupção, tudo isso resulta na violência que vemos todos os dias, e que podemos esperar apenas piorar. Diante desse quadro, existe o livre-arbítrio de se fugir do sistema? Ainda que não fiquemos totalmente alheios aos seus efeitos, podemos ao menos agir diferente, queimar menos combustíveis, consumir menos luz, desperdiçar menos comida, exibir menos requinte e sofisticação, não exigir essa "classe especial" - que divide o mundo entre quem tem e pode e quem não tem e não pode - ?

Temos o livre-arbítrio para considerar que uma sala com sofás brancos e caros vale tanto quanto uma sala sem sofás, desde que haja cadeira para todos? Ou se não houver cadeiras, temos o livre-arbítrio para decidir que podemos nos sentar no chão, sem diminuir com isso nossa honra, e aproveitando do encontro apenas o que realmente interessa, ou seja, as pessoas?

Temos o livre-arbítrio para dizer que não precisamos de presentes nas datas comemorativas, e que não precisamos trocar de roupas ou aparelhos eletrônicos, consumindo algo mais novo e moderno, apenas para nos sentir melhores?

Temos livre-arbítrio para dizer ao governo que não queremos sua proteção, que preferimos não ter governo algum, ao menos para que ninguém venda as concessões públicas de radiodifusão para o pastor ou bispo ou senador que pagar mais? Ou que não nos interessa os contratos que fazem com as indústrias farmacêuticas e com as indústrias de comida industrializada e cheia de alimentos transgênicos, sem aviso, levando pouco a pouco a saúde que restava, isso quando a maioria das pessoas ainda sabia que saúde era esforço físico e amor, e não comprimidos e injeções? Que saúde é comer bem, e não refrigerantes cheios de açúcar, enlatados cheios de conservantes, engolir a comida por falta de tempo!... Quando escrevemos tudo isso já pensamos que nossos melhores amigos sabem todas essas coisas, mas vemos eles criarem seus filhos e repetir, contra sua vontade? contra algum livre-arbítrio? os mesmos erros que já acreditávamos remediados.

Que há algo podre no mundo já é sabido há milênios. O novo fedor, contudo, este que arde nas narinas que já aprenderam a distinguir-lhe o cheiro, é uma novidade que está no mundo há pouco mais de um século, e ainda não aprendemos a nos defender. Terá a indústria dado o golpe de misericórdia nessa quimera filosófica que chamamos livre-arbítrio?

Wednesday, June 06, 2007

Show de horrores cotidianos

Requiem para um sonho - EUA, 2000 - "Requiem for a dream"


Esse filme não é só mais um mergulho no mundo de drogados que se ferram, a exemplo de Christiane F, Trainspotting ou Kids. Paralelos aos delírios narcotizantes da cocaína, heroína e afins são apresentados vícios menos populares, como a eterna busca da auto-estima perdida, que se pretende inabalável pela idade, pelo excesso de peso e por uma vida metropolitana, sedentária e vazia. A grande sacada do filme é colocar lado a lado a síndrome de abstinência típica de viciados privados de suas drogas - e toda podridão que daí costuma resultar - e o desespero de uma senhora aparentemente idônea, que busca nos remédios uma forma de retornar à glória do passado, nem que seja numa única noite em um programa de TV, onde sonha em apresentar-se em seu melhor (antigo e estreito) vestido vermelho.

O filme reflete sobre diversas mazelas de nossa sociedade capitalista ocidental. O que temos em comum, a ponto de merecermos nos destacar da outra metade do mundo, são os tipos de sonhos que escolhemos, ou que acreditamos, sem poder falar propriamente de escolha. Sara, a personagem central do filme, seguiu sua vida com dignidade, até perder o marido e o afeto do filho, que se envolve pesadamente com drogas ilícitas. A mensagem central da trama podia até girar em torno do filho e da namorada que se vende em troca de drogas, como no velho Christiane F. Contudo, vemos que a perda do filho (um braço necrosado e amputado depois de repetidas aplicações de heroína) é bem menor que a da mãe (que acaba sendo submetida a uma lobotomia ?? depois de perder a razão devido a uma overdose de remédios para emagrecer).

Trocando em miúdos, não importa a idade, a classe social, o sexo ou a religião, TODOS temos um vazio que lutamos para ocupar, para dar sentido. Trata-se, no fundo, do sentido da vida. E o "sonho" ocidental exaustivamente repetido a cada 30 segundos pelos meios de comunicação de massa, os sonhos de sucesso, beleza e prazer, acabam funcionando como um tiro pela culatra, ao diminuir ainda mais aqueles que já sofriam o bastante por não terem tudo o que sempre sonharam.

Esta é uma das mensagens do filme: que o erro (do capitalismo) é fundamentar-se apenas na superexposição do lúdico, belo e perfeito, sem contabilizar a agressão psicológica que isso significa para o cidadão comum, ainda que passe despercebida. Poderíamos achar que só conhecemos uma ou outra pessoa que teve sua vida frustrada por abusos dessa natureza, mas observando bem, veremos que são milhares, que são quase todos os lares do país. Eu mesmo tenho parentes que investiram a vida toda numa casa bonita, algo de que se orgulhar, e que, chegado o momento da tão esperada "ascenção" social, perceberam apenas que o investimento material acabou por dispersar a família. Talvez a família teria se dispersado de qualquer forma, mas então, como se sentirá o pai ou a mãe solitários, em suas casas luxuosas, com os filhos distantes e ocupados, pensando que poderiam ter gasto tanto dinheiro para viajar, se divertir, dar churrascos, comprar presentes?

Requiem para um sonho é um soco no estômago que merece ser dado em todos os que estão passivos diante do mundo, todos que não se questionam os sonhos em nós inculcados, que não atentam para o verdadeiro sentido da vida.