Thursday, February 17, 2011

Metafísica sem sombras

No ônibus hoje um senhor contou a uma mulher que falava com alguém sobre Jesus, quando o ouvinte mudou bruscamente de assunto. "Deve ser do demo!", respondeu a mulher, ao que o senhor não argumentou. Claro, se alguém não é de Jesus, só pode ser do demo. Assim como se eu não sou brasileiro, só posso ser estadunidense. E se não nasci em janeiro, só posso ter nascido em dezembro. Que tempos! Houve uma época em que o sentimento trágico era reverenciado em obras de arte, óperas e livros. Antígona e Creonte são um bom exemplo. Creonte defendia o estado, Antígona defendia a família (ou seria o contrário?). De qualquer forma, ambos estavam certos, cada um a seu modo. Porém, como precisavam escolher, surgia o "sentimento trágico", fruto da impossibilidade de se obter o melhor de dois mundos. Hoje esse tipo de pensamento mal é conhecido. Os personagens dos filmes e principalmente das novelas são, em geral, ou terrivelmente bonzinhos e puros, ou terrivelmente maldosos. Não há meio termo, não há gradações.

Da época da tragédia grega até hoje, o que mudou, além do monoteísmo ter dominado quase o mundo inteiro? Sim, o monoteísmo implica a existência de um único deus, todo bom e poderoso, e um demônio que encarna completamente o mal. Não há gradações. Não há divindades com interesses conflitantes. Não há conflitos onde os dois lados mereçam ser ouvidos. Ainda que a justiça secular escute os dois lados, a mídia não o faz, nem os espectadores, nem os policiais. Domina hoje a noção de bem contra o mal. Se alguém não segue um certo estereótipo de comportamento e de moda, então deve ser um drogado, um delinquente, um assassino ou coisa pior. Deve ser não, é! Outro dia uma notícia mostrava uma população linchando um SUSPEITO de assalto. E vemos pessoas de boa família aplaudindo tal decisão "democrática". A própria mídia mostra o rosto de suspeitos pobres e falam como se mostrassem o verdadeiro culpado, acima de qualquer dúvida. E depois de absolvida a vítima, fica por isso mesmo, uma reputação já foi estragada, mas ora! Quem tem reputação é artista! A própria polícia aumenta as acusações contra um "vagabundo" - esquecendo-se que o desemprego não é culpa dos desempregados - pois acha que assim está contribuindo para a bondade e a justiça gerais. E ai do pobre-coitado se não tiver uma testemunha que tenha visto o que de fato aconteceu. E se o tal "vagabundo" se recusar a assinar abaixo das falsas acusações, pode ter certeza que a mentira vai aumentar. Que tempos! E quer saber? Ainda vai piorar.

Tuesday, February 08, 2011

Tao Te Ching 51-60

51

O Tao cria todas as coisas
a virtude as alimenta,
a natureza lhes dá forma,
o ambiente as completa.

Por isso todas as coisas sem exceção
estimam o Tao e valorizam sua virtude.

O respeito ao Tao e o valor à virtude
não vêm de uma ordem,
mas se expressam naturalmente.

Portanto, o Tao cria as coisas,
a virtude as alimenta,
jntos fazem-nas crescer, as educam, completam,
amadurecem, apóiam e protegem.
Cria sem se apossar,
age sem depender,
guia sem interferir|determinar.
Eis a chamada virtude profunda.


52

O universo tem início, a que podemos chamar mãe de todas as coisas.
Conhecendo a mãe, conhecemos seu filho,
seguindo e protegendo a mãe de todas as coisas,
livramo-nos dos perigos.

Feche a boca, tranque a porta,
e por toda a vida não terá dificuldades.
Abra a boca, empenhe-se em seus assuntos,
e por toda a vida dificilmente encontrará ajuda.

Observar os detalhes revela o brilho,
guardar o suave e gentil produz a força.

Use sua luz, retorne ao seu brilho,
assim não perderá sua vida em desastre;
a isso se chama buscar a constância.


53

Basta um pouco de conhecimento,
para seguir pelo Caminho,
temendo apenas não segui-lo.

O caminho é fácil, mas as pessoas gostam de se desviar.

Cuidam bem dos palácios, enquanto ervas daninhas se espalham pelos campos,
e os armazéns seguem vazios; suas roupas novas e coloridas,
a espada afiada na cintura, comem e bebem até se empanturrar,
têm tantos bens que podem desperdiçá-los;
esses agem como ladrões.

Evidente que esse não é o Caminho (Tao).


54

O Tao está bem plantado, quem o abraça não o perde,
e será comemorado por filhos e netos sem parar.
Corrija|Endireite|Repare o Tao em seu corpo, sua virtude será verdadeira;
construa o Tao em sua família, sua virtude será abundante;
fixe o Tao em sua comunidade, sua virtude aumentará;
conserte o Tao de seu país, sua virtude será imensa;
repare o Tao do universo, sua virtude será universal.

Por isso,
pelo corpo observe o corpo,
pela família observe a família,
pela comunidade observe a comunidade,
pelo país observe o país,
pelo universo observe o universo.

Como eu sei que o universo é assim?
Intuitivamente!


55

Aquele cuja virtude é generosa é como o bebê recém-nascido
Insetos venenosos não o picarão, feras e aves de rapina não o atacarão.
Seus ossos são fracos, seus tendões moles,mas sua mão segura firme.
Ainda não conhece a união sexual, mas seu pênis já fica ereto, o que mostra sua vitalidade.
Chora o dia todo sem ficar rouco, o que mostra sua harmonia.

Quem conhece a harmonia alcança a constância,
quem conhece a constância, alcança a iluminação.


56

Quem entende o Tao não prega;
quem prega não entende.
Quem conhece o Tao não pode explicá-lo.
Quem o explica não o conhece.

Elimine suas pontas afiadas,
simplifique os problemas,
reduza o seu brilho,
seja um com o pó do mundo.
Isso é chamado "a união profunda".
Quem a alcança
não sofre com a intimidade
nem com a distância.

Não se beneficia nem se fere,
não é nobre nem plebeu.
É, portanto, de grande valor para o mundo.


57

O país pode ser governado com retidão,
o exército pode ser empregado com táticas surpreendentes,
mas só sem envolvimento pode o mundo ser guiado.

Como eu sei que é assim? Por isto:

Encha o mundo de tabus, e a pobreza se espalhará;
dê às pessoas bens e utilidades, e a confusão se multiplicará;
dê às pessoas técnicas engenhosas, e coisas estranhas aparecerão;
faça leis e decretos bem claros, e surgirão muitos ladrões e criminosos.

Portanto o sábio diz:
"eu não ajo, e o povo por si só se modifica;
almejo a tranquilidade, e o povo por si só se corrige;
eu não me preocupo, e o povo sozinho enriquece;
eu não busco desejos,
e o povo encontra sozinho a vida simples."


58

Quando o governo não aparece, as pessoas são honestas e satisfeitas.
Quando o governo está por toda parte, as pessoas ficam insatisfeitas.

A desgraça traz a sorte ao seu lado,
Atrás da sorte a desgraça se esconde.
Quem sabe como isso acabará?
Não há certeza.

A correção se transforma em estranheza.
A bondade imposta se transforma em vício.

A confusão das pessoas vem de longa data.

Por isso
o sábio é rígido mas não corta,
é honesto mas não fere,
é direto mas não descontrolado,
brilha mas não cega.


59

Ao governar os assuntos humanos e naturais,
não há nada como precaução.

Ter apenas precaução, chama-se "controle desde o início".
Ter controle desde o início, chama-se ênfase no acúmulo de virtudes.
Enfatizar o acúmulo de virtudes elimina toda restrição.
Elimine as restrições e não conhecerá limites.
Quem não conhece limites está apto a comandar uma nação.
Comandando a mãe da nação pode-se manter esta posição por um longo tempo.

A isso chamamos raízes profundas e fundação firme.
O aminho da vida longa e visão de longo alcance.


60

Governar uma grande nação é como assar um pequeno peixe.

Com o Tao presente fantasmas não passarão por deuses,
não apenas fantasmas não passarão por deuses,
mas os próprios deuses não prejudicarão as pessoas,
mas também o sábio (governante) não as prejudicará.

Quando um não prejudica o outro, a virtude retorna.

Friday, February 04, 2011

Lendo nas entrelinhas

Nosso Desafio Energético
National Geographic Brasil - Edição Especial: Recarregando o planeta - Energia para o futuro. Ed. 110-A

Por Bill McKibben

"Estamos imobilizados - entre uma rocha inviável e um ambiente superaquecido. E é uma questão em aberto se vamos conseguir nos libertar. E essa questão vai definir se o século 21 será marcado pela manutenção do progresso ou pelo início de um declínio longo e debilitante. O que está em jogo é a salvação do planeta em que vivemos."


- como assim "entre uma rocha inviável e um ambiente superaquecido"? A rocha inviável se refere a quê? À vida na Terra sem tanto consumismo?
- reparem como o autor nos dá duas opções apenas: 1) manutenção do progresso (manutenção dá a entender no ritmo e estilo atuais) e 2) declínio longo e debilitante. Acredito que a maneira mais eficiente de corrigir a economia atual é diminuir o consumismo e eliminar o supérfluo. Isso implicará numa perda relativa de luxo para os mais ricos, mas será isso tão cruel assim para ser chamado de "declínio longo e debilitante"? A propaganda subliminar aqui é que ou voltamos à idade da pedra ou continuamos como hoje. Maneira sutil de evitar outras alternativas.
- O que está em jogo não é nem nunca foi a salvação do planeta, mas da nossa própria qualidade de vida (e de outras espécies, é claro, mas se não ligamos nem pra nossa qualidade de vida enquanto espécie, não é a preservação dos animais que vai comover os desperdiçadores de recursos).

"A energia, claro, não é apenas mais um aspecto da nossa economia. Para todos os fins, ela é nossa economia. O grande economista John Maynard Keynes certa vez afirmou que as condições de vida da maioria dos seres humanos haviam, na melhor das hipóteses, dobrado de qualidade ao longo dos milênios desde o alvorecer da história até a virada do século 18, quando aprendemos a usar o carvão para mover máquinas. Em um curto espaço de tempo, as condições de vida, no Ocidente beneficiado por essa fonte de energia, passaram a ter sua qualidade de vida dobrada em intervalos de poucas décadas. (Há motivo, afinal, para que as expressões 'mundo industrializado' e 'mundo desenvolvido' sejam quase equivalentes.)"


- Sobre a frase de Keynes, a América tinha milhões de nativos que viviam muito bem segundo suas próprias culturas, assim como Ásia, África, Oceania e até mesmo a Europa. Claro que a definição de "qualidade de vida" que ele usa é a de um economista que considera que um urbanóide com carro na cidade está mais FELIZ que um índio na floresta com caça, pesca, açaí, caxiri e rede. E como o urbanóide na cidade não está feliz, a não ser que compre um carro novo por ano, a sua felicidade acaba destruindo a felicidade do índio - eis aí, bem resumida, a história dos últimos 500 anos.
- Mundo desenvolvido pode ser sinônimo de mundo industrializado, se a visão de qualidade de vida que se deseja vender (literalmente) for essa. Nem todos os povos concordam com isso, e não é por outro motivo que esses povos simplesmente odeiam os EUA e a Europa. O problema é que as elites desses países (por consequência também as nossas elites) não conseguem enxergar que a vida num ambiente tropical, sem ar-condicionado e na área rural, é uma coisa que outras pessoas gostam e preferem sobre a cidade. Acreditam (essas elites) que o êxodo rural acontece porque todos concordam (e devem concordar) com o ideal deles, e não porque o homem do campo é expulso devido à concorrência desleal, à falta de apoio do governo para essa categoria (ao contrário dos industriais e latifundiários que vivem de subsídios), ao desmatamento e as doenças que se sucedem, à falta de instruções e medicamentos sobre essas novas doenças, à valorização da terra e aumento dos preços, falta de conhecimento sobre oportunidades políticas e econômicas, etc.
- Em última instância, quando as elites finalmente percebem que o seu luxo é o responsável pela expulsão do homem do campo para a cidade, via de regra pagando mais por menos (se ele soubesse não teria nem ido, mas agora não há volta) - quando finalmente as elites percebem isso, qual a sua reação imediata? "QUE SE DANE! Eu estou feliz, isso é o que importa." Conhece alguém que pensa diferente?
- Mais uma coisa a se considerar é a propaganda e o "efeito demonstração"* (de J.S. Duesenberry), chamados por economistas mundo afora, na maior cara de pau, de "criação de demanda". Em bom português: "vamos fazer as pessoas acreditarem que precisam do que de fato não precisam, pois embora emporcalhemos o mundo e incitemos o ódio entre irmãos, nosso lucro assim será maior".
- As consequências de tudo isso? O consumo de petróleo (que está acabando) será trocado pelo de carvão mineral (que contribui ainda mais para o efeito estufa). Podemos também mudar de ambas as fontes para a chamada "energia limpa", uma das quais é o biocombustível. O problema é que o consumo é tão grande que áreas gigantescas serão utilizadas apenas para o plantio de cana, dendê, mamona ou qualquer planta semelhante. É preciso, de certa forma, ser um "gênio" para supor que isso não acarretará nem um aumento no preço dos alimentos nem em mais desmatamento (diz-se que serão utilizadas terras hoje improdutivas. Se estão improdutivas deve ser porque sua fertilidade já foi esgotada. Logo a plantação nessas áreas - no modelo monopolista a que estamos acostumados - exigirá cargas imensas de fertilizantes e agrotóxicos, causando ainda mais poluição - para não falar em linhagens transgênicas, monopólio de sementes e redução da diversidade agrícola dessas plantas. A alternativa seria a silvicultura, que dispensa o uso de venenos pois utiliza os serviços proporcionados pela biodiversidade - mas o apoio a esse modelo ainda é escasso, exigiria reforma agrária e prejuízo para indústrias de insumos já bem estabelecidas). Outras fontes de energia são hidrelétricas, usinas eólicas, solares e nucleares, todas exigindo mineração, inundação, expulsão de comunidades de suas terras (para outras via de regra piores), instalação de painéis e hélices com efeitos nocivos sobre a fauna e flora, manejo de material radioativo, risco de acidentes nucleares, acúmulo de lixo radioativo (que muita gente sugere - a sério - que seja levado para o interior de terras indígenas), entre outros problemas. Tudo isso VAI acontecer - a diferença é que quanto mais economizarmos energia, MENOS acontecerá. Infelizmente os seres sedentários e preguiçosos de hoje só aceitam economia de energia via tecnologia. Transporte público, caminhada e suor ainda não estão na agenda (mesmo com o culto ao corpo nas academias - será porque pagar uma academia contribui para o PIB, enquanto andar não?). E por que não estão na agenda? Porque andar para economizar parece coisa de POBRE, pegar ônibus pior ainda, e obrigar as pessoas a parecerem POBRES seria coisa de comunista, logo é uma proposta da qual as pessoas não têm pudor de rir nos workshops conservacionistas (realizados em paraísos turísticos do lado de dentro de salões com ar-condicionado por pessoas que, em sua maioria, jamais foram pobres, e que não sentem prazer algum em passar um final de semana que seja com pobres felizes - aqueles do samba, praia, cachaça e amigos). Inclusive porque pobres não lêm a National Geographic, como poderiam saber de alguma coisa?



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* "De acordo com o exposto no recente [em 1953] livro de J.S. Duesenberry, Income Saving and the Theory of Consumer Behavior, a hipótese de que as funções de consumo individuais relacionam-se entre si em vez de serem independentes contribui para explicar certos fatos que pareciam enigmáticos. A interdependência das preferências dos consumidores pode afetar principalmente a escolha entre consumo e poupança. O motivo pelo qual, por exemplo, 75% das famílias dos Estados Unidos não poupam virtualmente nada não é porque são demasiado pobres ou porque não queiram poupar; a principal razão é que vivem num ambiente que as leva a necessitar cada vez mais de novos bens de consumo. Isso é o que Duesenberry chama de 'efeito demonstração' dos padrões de consumo mantidos pelos 25% da população que constituem o topo da pirâmide [5% no Brasil, mais as páginas da Veja, as novelas da Globo, os outdoors e os comerciais da TV]. Quando os indivíduos entram em contato com bens ou padrões de gastos superiores, podem sentir certa tensão e inquietação - e sua propensão ao consumo aumenta."

- Ragnar Nurkse. Alguns aspectos internacionais do desenvolvimento econômico. In: A.N. Agarwala & S.P. Singh (orgs.) A economia do subdesenvolvimento. Contraponto/Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. 2010.

Wednesday, February 02, 2011

Egito

As revoluções no Egito são apontadas por alguns especialistas como coisa grande. Vejamos, em todo o mundo Árabe, o Egito era o único país a apoiar EUA e, consequentemente, Israel. Alguns apontam a Irmandade Muçulmana como potencial protagonista no conflito, com riscos inclusive de tomar o poder. Uma das coisas que esta Irmandade deseja é a aplicação da Sharia, a Lei Islâmica. Se isso acontecer, não sei se seria exagero pensar que pode haver escalada semelhante em outros países árabes, com a deposição dos atuais reis, príncipes, xeques, aiatolás e sua substituição pela mesma Irmandade, que poderia iniciar um processo de união desses países semelhante ao que aconteceu na União Europeia. Ainda que isso não aconteça agora, é um sonho antigo calentado em muitos corações por lá.

E quais são as manchetes dos jornais brasileiros?

Globo (G1): Confrontos deixam mais de 600 feridos no Cairo, diz governo do Egito
Terra Brasil: Vice pede a manifestantes que voltem para casa no Egito
NoticiasBR: Manifestantes entram em conflito no Egito (depois de dias de conflitos!)
Paraná-Online: Netanyahu acusa Irã de querer 'outra Gaza' no Egito
Estadão: Vice-presidente do Egito diz que diálogo depende de fim de protestos
Correio do Brasil: Violentas batalhas de rua marcam escalada dos protestos no Egito
BBC Brasil: EUA condenam violência e mostram preocupação com imprensa no Egito
Yahoo: Bolsas dos EUA operam com sinais opostos, entre protestos no Egito ...
Terra Brasil: Revolta do Egito é laica e não afetará cristãos, diz especialista
JB: Mudanças no mundo árabe podem criar paisagem menos favorável aos EUA
Euronews: Situação no Egito divide comunidade internacional
Terra Brasil: Egito sustenta preços do petróleo, apesar da alta de estoques nos EUA
O Globo: Petróleo recua em NY, mas avança em Londres
Estadão: Crise no Egito faz barril do petróleo passar de US$ 100
Terra Brasil: Bombas incendiárias são lançadas em área de protestos no Egito
Zero Hora: Crise política no Egito pode prejudicar comércio com Brasil no ...
Record (R7): Violência entre manifestantes deixa 600 feridos e um morto no Egito

O preço do petróleo, as bolsas dos EUA e o número de mortos e feridos são mais importantes do que os múltiplos significados geopolíticos do conflito. O fato de o ditador Mubarak estar no poder há cerca de 30 anos - nos quais manteve o país atrasado e com uma péssima distribuição de renda - não é suficiente para que a mídia brasileira apresente a notícia com o mínimo de otimismo. Fica parecendo que os manifestantes são marginais arruaceiros que mereceriam mesmo levar porrada da polícia. Em tempo: o exército está nas ruas mas não faz nada contra os manifestantes. Acompanhemos.

No meio do caminho, um outro caminho...

Sempre andei muito. No pré-primário, com cinco anos, caminhava no trajeto de ida e volta da escola mais de 500 metros por dia, de segunda à sexta.

Depois, durante o primário (da primeira à quarta séries), andava de segunda à sexta cerca de 1,5km diariamente para ir e voltar da escola. Lembro como se fosse hoje o cheiro maravilhoso de comida que saía de uma certa janelinha quebrada e suja na esquina da minha rua - ainda longe de casa uns 400 metros ladeira acima. Acho que não era só a fome do meio-dia.

Depois, no ginásio (da quinta à oitava), não andei tanto todos os anos. Na quinta série estudei numa escola particular (pelo único ano da minha vida, o suficiente para jamais esquecer a diferença entre uma elite rica e desinteressada e os pobres que queriam aprender mas não tinham bases boas o bastante em casa para acompanhar os alunos e alunas mais produtivos da classe, e por isso acabavam quase sempre tratados como lixo por boa parte dos professores). Nesse ano os ônibus paravam bem perto da minha casa e da escola. Andava só uns 400 metros todo dia letivo. Umas poucas vezes, quando as provas acabavam mais cedo, andava sozinho o percurso de 2,4km até em casa. Gostava da liberdade que a solidão propicia, de sentir o calor do sol da manhã, do verde e marrom enrugado das árvores, dos pássaros que animavam as ruas bem mais que as pessoas.

Na sexta série passei a estudar numa escola pública mais perto de casa, economizava o dinheiro do ônibus e andava apenas 900 metros nos dias letivos. O que seria de mim sem o Google Earth para saber hoje todas essas distâncias? Para ir à padaria era preciso caminhar um quilômetro, ida e volta somadas, o que às vezes era bom (sair de casa) e outras vezes não (sair de casa?!).

Na sétima nos mudamos para um bairro mais afastado, mas continuei na mesma escola. De início contratamos um serviço de ônibus especial que me pegava em casa, mas na oitava série preferi a independência dos ônibus comuns. Com isso, muitas vezes eu ia almoçar na casa de um amigo (vezes até demais, talvez), e costumava andar o trajeto de 1,8km da escola até a casa dele e de lá para o ponto de ônibus. Assim podia economizar o dinheiro de uma das passagens e me lambuzar depois com produtos industrializados doces e gordurosos (coisas que outras crianças faziam com as mesadas que ganhavam de seus pais).

Quando comecei o Ensino Médio me mudei novamente, de casa e de escola. O maior problema é que a casa ficava num extremo da cidade e a escola no outro. Nas épocas em que os motoristas de ônibus faziam o "minhocão" (uma espécie de greve onde os ônibus funcionam mas não ultrapassam uns aos outros, formando filas quilométricas nas avenidas - o minhocão) buscando melhores salários, eu costumava demorar três horas para chegar em casa e raramente ia sentado. Depois ainda precisava caminhar a distância do ponto de ônibus até em casa, que era de 1,26km, somando mais de 2,5km todos os dias letivos (além do fato de se tratar de um Ensino Médio técnico, que tinha aulas durante quase todo o dia, de segunda a sexta. Por sorte, durante o segundo ano, conseguimos ajustar os horários de tal forma que não tínhamos aulas às sextas-feiras. Que período fantástico esse! Ainda que os amigos já não morassem tão perto quanto antes - e bote longe nisso -, pelo menos esta casa tinha piscina e eu tinha um irmão que em geral era companhia suficiente.)

Depois veio o trabalho, a faculdade, e as andanças se tornaram mais dispersas, menos obrigatórias. Mas ainda assim, longas. Talvez até mais longas com o acúmulo dos hormônios (não se encontravam gays em lugar algum - exceto bichas horrorosas - o que tornava a sexualidade mera taração voyeurística que só terminava em punhetas silenciosas no banheiro de casa). Havia, é claro, as boates gays, mas quem gosta daquilo?

Acredito que toda essa andança foi crucial para a formação do meu caráter. E me pergunto como essas crianças - que são deixadas pelos pais ou ônibus escolares no portão da escola e na garagem de casa durante toda a vida escolar - enxergam a vida? Conheço muitas pessoas que acham loucura andar 1km. Considerando que não existe algo como "energia limpa", que até o biodiesel trará um impacto ambiental escabroso para os biomas brasileiros (considerando que há planos de nos tornarmos abastecedores do produto em nível mundial), a única solução é usarmos menos automóveis, mais transporte público (que não é tão ruim assim) e, claro, mais do movimento das próprias pernas, que sai mais barato e é mais interessante que academias de ginástica. Mas do jeito que estamos tratando nossas crianças e jovens, será que chegaremos lá?

Tuesday, February 01, 2011

Sobre a ciência do nosso tempo

"Quem não usa certa linguagem e adota certos modelos é desqualificado, independentemente do que tenha a dizer. A ciência institucionalizada é sempre conservadora. Tome-se qualquer revista de economia "classe A" de língua inglesa: seus padrões de seleção dos artigos a publicar comportam um visível conteúdo ideológico."

Mas "a ciência é construída por aqueles que são capazes de ultrapassar certos limites que hoje são definidos pelo mundo universitário."

"Nenhuma sociedade consegue livrar-se completamente da ação de heréticos, e nada tem mais importância na história da humanidade do que a heresia."

- Celso Furtado, O Capitalismo Global. Pg. 10-12.