A culpa dos pais
"Grande parte da nossa atividade adulta baseia-se no que absorvemos por imitação durante a infância. Imaginamos muitas vezes que nos comportamos de uma certa maneira porque ela corresponde a determinado código sublime de princípios abstratos e morais, quando, na verdade, nos limitamos a obedecer a um conjunto de impressões puramente imitativas, profundamente arraigadas e aparentemente "esquecidas". É essa imutável obediência a tais impressões (a par dos nossos instintos cuidadosamente dissimulados) que torna tão difícil que as sociedades mudem os respectivos costumes e "crenças". Mesmo perante novas idéias, excitantes e brilhantemente racionais, baseadas na pura aplicação objetiva da inteligência, a comunidade ainda se manterá agarrada a antigos hábitos e preconceitos caseiros. Esta é a cruz que temos de suportar se vamos atravessar a nossa fase vital de juventude, que funciona como um verdadeiro "mata-borrão", que absorve rapidamente a experiência pelas gerações precedentes. Somos forçados a transportar as opiniões preconcebidas juntamente com os fatos válidos."
- Desmond Morris, O Macaco Nu, Ed. Record, 16ª Ed., 2006. p. 133.
Se os jovens absorvem toda a experiência das gerações anteriores como uma esponja ou "mata-borrão", cabe aos adultos separar o joio do trigo e serem honestos com cada nova geração. Infelizmente, o que vemos, pelo contrário, são adultos que acham "bonitinho" que seus filhos acreditem em Papai Noel (quando tal engodo, na melhor das hipóteses, enche um jovem potencialmente inteligente de dúvidas e desconfiança a respeito dos adultos, uma vez que a verdade é revelada). Pior, quando cada incerteza (como a religião), é passada como certeza para os jovens, somos condenados a repetir milenarmente os mesmos erros e preconceitos.
A loucura
A loucura? Só tenho loucos ao meu redor. Os normais não são os menos dotados de espírito? A loucura é quando o espírito, chama, combustível -- transborda. Ser normal é moldar-se pelos outros. A que ponto chega a necessidade de aceitação da besta humana: à auto-anulação! Conheci muitos que dizem (e acreditam) que sua vida sexual não é da conta de ninguém, como se pudessem escondê-la. Preferem ser "assexuados" públicos do que indivíduos completos -- loucos, certamente, mas completos. A fuga, a fuga!
Homo escapismus, não é o seu Deus a maior das fugas? E falam tão mal de um simples baseado! Escapismo... não é escapar fugir para as sombras dos outros, temer a opinião alheia? Não ter coragem de duvidar, de manter uma posição, ser diferente? Loucura! Onde reside, afinal?
Bolhas meméticas num universo de espuma
- Deus induz ao conformismo e à subordinação. É para isso que foi inventado. Acredite se quiser.
- Tem quem bote a culpa na Internet sobre os alunos hoje fazerem trabalhos Ctrl+C, Ctrl+V. Com todas as portas que a Internet nos abre, não é mais justo criticar o professor, que poderia argüir alguns alunos sobre o assunto do trabalho (e nem precisa ser na frente dos outros) e condicionar a nota final ao seu aprendizado do assunto; no mínimo ter realmente lido suas fontes?
- A falta que o conhecimento biológico faz às humanidades fica mais evidente quando se desenha utopias. Todos temos ideais de um futuro justo, próspero e factível. O que é justiça e o que é prosperidade podem ser entregues à subjetividade das ciências humanas; mas o que é factível é muito provavelmente melhor descrito pelas ciências biológicas. Afinal, acreditar que o humano seja infinitamente moldável e adaptável é de uma crueldade e ignorância sem limites, e que já pontilhou a história de inúmeras manchas amargas.
- Por que ser bom? Deus não existe. Diga às crianças: "Deus não existe, mas se você for mau, as pessoas vão saber, e você não terá amigos. Os amigos são a coisa mais importante na vida, por isso somos bons. Viu? A bondade não depende de Deus."
"Nós, seres humanos, somos animais numa selva."
Assim você consegue entender o mundo, não com Deus. Com um Deus bonzinho e todo-poderoso, nada faz sentido. Como animais, tanto o bem como o mal estão explicados: são instintos sociais.
- Teme-se que o mal tome conta da sociedade se acabássemos com a idéia de Deus. Mas a insistência em um Deus (em sacerdotes) que ditam o certo e o errado coloca o poder nas mãos de poucos. Daí nascem as injustiças. Deus é o remédio amargo para o povo engolir e tolerar. Uma nação sem Deus poderia ter muito mais pessoas críticas e curiosas, o que é um passo fundamental para a verdadeira democracia. Cabe às leis humanas manter a ordem. E se for uma ordem informada, tanto melhor.
- Depois que as galinhas dormem, os bacuraus despertam. No ápice de uns está o não de outros. É assim que o mundo gira, e enquanto uns se casam outros atingem a maturidade. Infeliz daqueles para quem os dois eventos são um só -- terão perdido 1/3 da vida?
- A palavra esperança devia ser duas, pois existem dois tipos primordiais de esperança: um, o do guerreiro que luta acreditando possível vencer; outro, o de quem espera um presente sem lutar. Como o escravo que espera que o patrão canse de lhe bater (ignora a psicologia do prazer no verdugo) ao invés de fugir. Esta é a esperança do catolicismo (mas toda religião só funciona quando se ignora a psicologia subjacente). A primeira, a esperança do protestantismo (nossas igrejas evangélicas). Está explicado porque os mais pobres tendem a ser evangélicos (querem e acabam melhorando de vida) e os mais ricos tendem a católicos (não querem nada, a não ser que a brisa divina continue soprando).
Modificar, melhorar a sociedade não está no vocabulário de quem não busca entendê-la.
- O cristianismo começa na culpa e termina no arrependimento. Silencia-se sobre a
invenção da culpa e sobre a reparação dos erros cometidos.
Dizer que só algumas pessoas não precisam de religião para serem boas é afirmar que Deus errou em sua obra.
O ser humano é melhor do que isso.
- Para melhorar a sociedade:
-- Fazer as pessoas pararem de ler Veja e assistir Globo (com a ajuda da Internet?)
-- Descobrir e divulgar se a pequena propriedade rural produz mais que o latifúndio, e cobrar do governo incentivos justos
-- Buscar a informatização dos cartórios
-- Os intelectuais, jornalistas e professores usarem as ferramentas existentes de comunicação (páginas web, blogs, fóruns de discussão, etc.) para divulgar e debater suas idéias. Isso ajudaria a acabar com a hegemonia da mídia (os EUA têm seus defeitos, mas fazem isso bastante)
-- Combater o progresso pelo progresso. Para onde queremos ir?
Os funcionários e seus aviões
Miguel pegou o avião que o deixaria em duas horas na cidadezinha onde trabalha. De barco a viagem levaria quatro dias, e Miguel se considerava um homem ocupado. Gestor público, suas ações repercutiam na vida de muitas pessoas, mas Miguel não conhecia o princípio taoísta da não-ação (無為); Miguel não lia muito. Como gestor, acreditava que já sabia o que devia ser feito. Ora a realidade para ele era bem simples -- existe a lei, existem os que estão do lado da lei e os que estão do outro lado. A linha a separá-los sempre fora fina, e embora os ricaços precisassem sempre de bons advogados para situá-los do lado mais adequado (entre eles o certo e o errado são sempre mais relativos), com os pobres era mais fácil atuar. Miguel gostava de um trabalho simples, e a bem da verdade, nem o seu trabalho era assim tão simples. E justamente por ser um trabalho delicado, de grande responsabilidade, ele precisava ir logo de avião para chegar logo. Precisava
trabalhar. No barco, gastaria quatro dias (incluindo um sábado e um domingo) convivendo com o populacho -- ora, o que aprenderia com eles que já não soubesse? Miguel era um engenheiro, tinha anos de estudos, não era, não fazia parte daquela gentalha. E Miguel sempre poderia ler a bordo do barco, se tivesse uma lista de coisas que realmente desejasse ler. Mas não tinha. O seu trabalho justificava que não lesse, consumia todo o tempo que ele queria para si, e não gastaria o restante com atividade tão insípida. Miguel dominava mal-mal o português, e entre a "gentalha" a bordo dos recreios que ele tanto odiava estavam vários índios poliglotas. Mas para que serve alguém poliglota nessas línguas indígenas? ele se perguntava. Nessas línguas inferiores? Miguel nunca havia lido como novas línguas tornam nosso raciocínio mais rico, nem tinha qualquer interesse pela lingüística, para saber que "língua inferior" era uma idéia no mínimo simplória. Era, como dissemos, um gestor público. E engenheiro. Miguel lia, sim. Procurava se atualizar na legislação da sua área e nos avanços de seu campo técnico. Também lia os jornais de vez em quando, só para não ficar muito por fora: sabia que aquilo era tão fictício, e portanto inútil, quanto as tramas novelescas. Mas não gostava de filosofia, nunca lera Nietzsche, nem conseguia entender porque alguém leria textos anteriores ao século XX.
Miguel era um personagem complexo. Tão complexo que nem ele mesmo conseguia se entender. Talvez, se soubesse das máximas "conhece-te a ti mesmo" e "nada em excesso" do templo grego de Apolo, isso ajudasse, quem sabe? Mas Miguel é uma metáfora, apenas. Uma metáfora para os milhares de gestores públicos deste país, ocupados demais para perderem tempo perto do seu povo ou da história antiga, gestores que cumprem a lei sempre que podem -- e não sempre que deveriam. Espere! Sempre que
deveriam? Não! A lei é a lei, e deve ser cumprida sempre. Mesmo não sendo sempre cumprida. Um paradoxo, parece, um duplipensar orwelliano, mas para que insistir? Miguel não lera
nineteen-eighty-four. Entendia que a lei devia ser cumprida; e se não fosse, não seria por sua inação. Agia sempre que podia, mesmo que isso representasse, em mais de 80% do tempo, agir contra os pobres, os menos culpados. Não conhecia a Desobediência Civil de Thoreau, nem o seu Walden, e qualquer desafio à Instituição o colocaria em risco de perder seu precioso cargo (colocaria mesmo? Miguel sabia que não, mas ocultava esse conhecimento da própria consciência). Conseguiria outro emprego?...
(Mas eis que o barco chegou ao porto. Em outra oportunidade continuo a descrever os dilemas que não chegam a passar pelas cabeças dos cupins que compõem o nosso Estado.)
Filosofia é Virtude
A religião monoteísta é o ápice da tecnologia/engenharia social: nenhum outro instrumento retira tanto poder do povo, entregando-o de mãos beijadas aos poderosos. Por isso nenhum governo a enfrenta: ela torna a governança (bem como o desgoverno) muito mais fácil.
"Afaste-se da árvore do conhecimento", mas conhecimento é poder. Logo, afaste-se do poder, não ambicione, seja manipulável. Permita que a sociedade se erga verticalmente, afastando indefinidamente as decisões dos interesses do povo. Religião é só isso. Espiritualidade é outra coisa, uma coisa individual.
Cada livro que explica uma faceta da realidade é um tiro no muro da religião. Mas este muro, cimentado cedo numa cabeça jovem, é espesso demais, são precisos muitos livros para derrubá-lo.
Para quê derrubá-lo? Para permitir à mente cativa ver o horizonte e entender que "posso estar errado", "todos podemos estar errados"; "nenhum conhecimento é infalível", " e se eu estiver errado, como seriam as coisas? Quais seriam as conseqüências das minhas ações?"; "entre tantas crenças disponíveis, e se eu olhar outra e outra e outra... e até nenhuma? Sim, todas
podem estar certas, como podem estar erradas. O que eu sei de fato?"
O resto nasce daí.
Alguém tem culpa?
Eu só fui ver de perto, entender e apreciar os movimento sociais, quando estava na faculdade. Nem no Ensino Médio, num colégio elitista como o CEFET-MG (por isso mesmo?!), cheguei a saber sobre questões como a reforma agrária, a monocultura do agronegócio como berço de inúmeros males, o sentido do neo-liberalismo, a degradação ambiental e todas as questões que pautam a agenda para um mundo mais justo.
Por que fui ver tudo isso tão tarde? Vou me lembrar sempre do Rúbio, que era dos poucos alunos da faculdade, do curso diurno, com menos dinheiro que eu (ou tão pouco quanto), e que - provavelmente - só por isso desenvolveu essa curiosidade de tentar entender o mundo para poder mudá-lo. O resto das pessoas, hoje me dou conta, nadam no mar ideológico das elites. Pior, sem serem poderosos, mas apenas essa "classe média", média-alta, às vezes ricos de fato, que parecem ter aprendido dos mais poderosos no mínimo esse desdém quanto às questões sociais.
Assim, a violência é culpa da impunidade e falta de cadeias, não de um sistema míope e opressor; o índio é um empecilho ao desenvolvimento, não uma cultura valiosa porque diferente e sábia; a felicidade está no dinheiro, não na sabedoria; o trabalho deve ser cumprido, mais que sua criatividade cultivada.
Entre tantos revezes, me espanta os tantos que ainda "cultos" se rejubilam na religião (e ganham o sinal verde dos que apenas a toleram e respeitam). Os temas do mundo estão além do seu discurso porque seu discurso está no além do mundo.
Em busca do novo
Para construir algo é sempre preciso destruir outra coisa. A mudança exige destruição. Mas é a mudança necessária? Não, ela apenas é. O mundo muda a todo instante, o rio nunca é o mesmo rio. Se tudo muda, então o que destruir? O conservadorismo não é nem nunca foi uma opção. É antes uma negação, um fechar os olhos para o que deve ser destruído; uma mentira. Querer manter as coisas como são -- em oposição a aceitar o curso da mudança ou mesmo favorecê-la através da destruição -- é o objetivo das mentes apegadas, cômodas e sem vitalidade. A vida parece buscar o novo.
Mas toda mudança envolve um risco, as coisas podem melhorar ou piorar. A sociedade em seu eterno conflito entre os jogadores talvez esteja fazendo as perguntas erradas. Não devemos nos perguntar o que manter, mas o que destruir. Destruir a fome, a desigualdade, a corrupção -- isso já foi dito, é incessantemente repetido, na mesma medida em que não é alcançado.
Quando um homem não suporta discutir suas crenças, é porque teme perdê-las. Para ele, o mundo sem essas crenças é cruel demais, selvagem, sem sentido. E, entretanto, é possível criar sentido a partir da ausência de sentido. Melhor, apenas o sentido criado é melhor que o sentido dado. Cada pessoa deve estabelecer o seu próprio sentido do mundo, e quando esse sentido entra em contradição com o sentido de outrém, nada poderia ser mais desejável que isso, nada mais digno ou sagrado. "O paraíso é o lugar onde argumento e veneração são a mesma palavra."
Não existe ganho maior que a perda convencida de uma convicção. A criação de novas convicções, igualmente provisórias, pode e deve acontecer por toda a vida, e nenhuma convicção é tão sólida que deva ser mais apreciada que a possibilidade de ser posta em xeque.
A maior parte da história da nossa civilização tem sido justamente o contrário, tem sido a afirmação e a defesa de dogmas improváveis, o repúdio à discussão, um eterno e retumbante NÃO ao crescimento e à mudança, um não à própria vida. A sociedade ideal será aquela onde as pessoas terão prazer em questionar, duvidar, argumentar, concluir, mudar de opinião, aprender, aprender a duvidar. Só em tal sociedade estaremos livres dos sacerdotes das verdades improváveis sustentadas pelo medo e pela culpa, aliados do Estado corrupto e irmãos siameses da má-educação e da crítica aleijada e incompleta.
Falta dizermos: Basta!
A lei da selva
Quando cheguei aqui a primeira impressão foi a umidade. O ar abafado e quente quando saí do aeroporto foi como o golpe de uma divindade brincalhona, a noite não era para se temer, mas para viver. Pelas ruas, pessoas de outras raças, outras peles, cores, roupas coloridas, faces mais serenas, eu quase poderia dizer uma alegria guardada calma em cada olhar, se soubesse tanto. E as carnes, a opulência das carnes em cada desconhecido foi para mim como sair do limbo e adentrar finalmente o paraíso.
Poderia estar em outro país, e meu assombro provavelmente não seria maior. Anos depois, sinto ainda parte desse assombro por estar num lugar que não é o meu. Por mais que admire estas terras, não sou delas filho, talvez adotivo, mas não, somos diferentes demais. Manaus, terra dos manaós e demais tribos que resistiram ao assédio civilizatório -- ao grande estupro histórico -- resistiram o quanto puderam, e ainda hoje resistem, rodeados pela sociedade sem alma que não os entende, nem a si mesma.
Para entender essa gente é preciso entender aqueles primeiros nativos que preferiram afogar-se nos rios que viver uma vida de escravidão. A vida aqui não tem esse valor intrínseco e subjetivo, incalculável, dos cristãos. Uma vida não é uma moeda -- isso talvez sirva bem aos tocadores de rebanhos. Aqui, não. Aqui a vida vale o quanto é vivida, a vida precisa ser plena, rica de sonhos e conquistas, transbordante de liberdade. Cada segundo tem valor, e só assim se poderia medir o que aqui não é medido, apenas vivido.
A beleza da vida aqui não está nas posses, mas no ser. Não está na transcendência, no além-vida, na esperança, na fé, no amanhã, a beleza aqui vive, pulsa no agora, na imanência, no viver. O cotidiano aqui é verde, não cinza. O horizonte aqui é de distância e possibilidades, não de concreto e impedimentos. Manaus, terra sem lei? Não hesito em dividir os homens e as mulheres em duas categorias: os que vivem da lei, e os que preferem viver sem ela.
Para o resto do mundo, a lei. Regras, códigos, obrigações morais, sociais e éticas. Detalhes, rigores, prescrições detalhadas e uniformidade do espírito. Para o resto do mundo, todas cabeças uma virtude, todos eus um só Deus. Para o resto do mundo os caminhos estão marcados no chão, não pise na grama, não saia do previsto. Para o resto do mundo, normas.
Aqui, terra sem lei? Aqui, o improviso, o imprevisto, a necessidade momentânea, o impulso do desejo, a satisfação do próximo, reescrevemos a lei a cada instante, pois os instantes mudam. Aqui, a diversidade, o indivíduo como divindade máxima, a compreensão e o respeito, a "tolerância" (embora essa palavra nos leve a pensar que apenas toleramos o que mal podemos suportar). Aqui, a ausência dos conceitos prévios, aqui a permissividade, o instinto.
Conhecimento é poder, quem não o sabe? E ainda assim o conhecimento não é buscado, não é querido nem valorizado. Pobre mundo de idiotas! Há o conhecimento acadêmico, dos livros, bibliotecas e universidades. Hipotenusas e átomos, sistemas e conceitos. Acima desse há o conhecimento do corpo, da tradição, da experiência. Ditados, provérbios, conselhos de avós. Num mundo em mudança, a tradição perde alguns pontos, mas bem poucos. Porque no fundo o ser humano não muda, seus desejos e suas necessidades e solidões serão sempre assim, importunos. E há, por fim, acima de todos, o conhecimento da natureza, a sabedoria dos bichos, as adaptações de bilhões de anos de evolução.
Na minha janela canta o sabiá, que à noite vai se deitar. Da mesma maneira eu também sou feito de ciclos, eu tenho uma natureza como a de um mar ou uma floresta. Eu sou um sistema natural e não quero meus rios canalizados, minhas árvores substituídas por monoculturas, minha atmosfera poluída, meu solo erodido. Quem entende a natureza entende a completude, sente-se satisfeito e vivo, sente-se suficiente. Ainda que o tédio por vezes nos acompanhe, quem entende a natureza jamais vai buscar
na destruição desta o afeto de seus vícios. Quem entende a natureza a respeita, e sendo todos nós parte dela, o respeito é global, respeitamo-nos como espécie, cada indivíduo, não importa sua roupa, suas origens, seu modo de falar, seu grau de instrução. O mais humilde é o mais próximo da natureza, e por isso mesmo o maior de todos nós. Aquele que tem o carro mais caro, esse se perdeu, e encontra apenas num vício particular um sentido que não preencherá seu coração vazio.
Entre os dois mundos, fico com aquele sem leis. As leis não servem à humanidade, mas apenas aos que estão por cima. Esses, que não conhecem as periferias do mundo, os subterrâneos da experiência, sabem apenas do seu mundinho de carros caros e comidas raras, suas conversas ilustradas e desapaixonadas, sua vivência em busca de, jamais em. No mundo com leis, espera-se das pessoas que elas nos entendam, que concordem conosco, que se alinhem a nós, que formem um time, que vistam a camisa, que dancem no ritmo, que formem, com "o nosso lado", um todo coerente e homogêneo, uma máquina artificial cujo objetivo não se conhece. No mundo sem leis, as pessoas são o objetivo. Tudo aqui é mais simples, mais direto e transparente. Não se trata de esconder a verdade, nem de procurá-la, mas tão somente de vivê-la. Talvez não seja para mim tal vivência, eu que fui criado num sistema sedento de respostas. Mas aprendi aqui que a vida só vale a pena quando podemos ser nós mesmos em qualquer lugar, custe o que custar.