Thursday, August 13, 2009

Cultura

Eu ia escrever que "crença é ignorância" em relação ao monoteísmo, que por ignorar que é um mito como outro qualquer, é a ignorância mais perniciosa que conheço. Mas me lembrei que a própria ignorância é melhor que a crença, uma vez que aquela está aberta ao aprendizado, ao contrário desta. Quem "crê" acha que sabe e por isso não procura mais saber. Esse sentido de "crença" é interno e exclusivo do monoteísmo, uma cola mental, um cimento ou durepox jogado dentro de um sistema vivo, emperrando-o até matá-lo. O organismo continua funcionando, mas uma parte dele está morta. Qual parte? A curiosidade, o gosto pelo desconhecido, a vontade de aprender, a vertigem do risco, da iniciativa, o orgulho do debate, a felicidade da dúvida, a redenção das perguntas, o improviso, só aceitar como melhor um melhor temporário, cientes de nossa completa incompletude. Perfeição, eternidade, Deus - tornam-se todos substantivos abstratos indesejáveis, sem nenhum contraponto no mundo real, e pior, apropriando-se da definição de coisas reais, concretas e importantíssimas: nossas origens, bem, virtude, destino, propósito...

O basilisco

O basilisco estava chegando. Todos se desesperavam e buscavam se esconder, embora não houvesse como. Sua promessa rondava o reino há gerações, e quando a besta surgia até os pais se desorientavam de tal forma que nem se preocupavam em esconder suas crianças. Seu hálito maligno era conhecido como um corta-mundos, e sua presença nefasta já bastava para cegar velhos e jovens.

A profecia se cumpria sempre com rigor, e lá vinha a coisa não se sabia de onde. Buscamos nos preparar, saímos às ruas, armas! Precisamos de armas! Preparamo-nos: eu tinha uma longa lança, meus companheiros se viraram com facas e guarda-chuvas, pedras e coragem. Permanecemos à rua até altas horas, um bando oscilante e trêmulo, íamos e voltávamos sem saber de onde a ameaça viria. Mandávamos entrar as crianças, que não conheciam o grande mal, mas as ingênuas mentes fracas queriam ficar ali para ver - seus pais já não podiam proibi-los, o medo era geral. Mesmo nós, ali na rua, no sereno da madrugada, não tínhamos confiança total em nós mesmos. Como se preparar para um mal desconhecido, cuja fama atravessa oceanos com a imagem de um demônio alado e invencível?

Por fim, nos reunimos numa escola. Ouvimos de longe o rugir bestial, aproximando-se pelo corredor até a sala onde aguardávamos. Quando entrou, primeiro nos decepcionamos um pouco com seu tamanho, mas em seguida ataquei. Perfurei-lhe a face repetidas vezes, enquanto meus companheiros apenas olhavam. Afastei-me, esperando uma reação, e a besta falou! Falava com uma voz suave como uma flauta doce, aveludada e sincera, tão sincera que a peguei no colo e me desculpei - não pretendia fazer mal a uma criatura tão divina, se ao menos soubesse...

Mas onde há um, há vários. Onde estava sua família? E de onde vinha tal medo, tamanho furor e revolta e apreensão que até os pais se esqueciam de seus filhos? Não, aquilo era apenas um disfarce, uma isca, uma distração. Pros diabos com esse filhote inofensivo, vamos nos armar. Fomos atrás de armas, encontramos alguns terçados e enxadas, punhais e mais guarda-chuvas, muitos guarda-chuvas, guarda-chuvas demais, estamos numa fábrica de guarda-chuvas? Onde pode chover tanto?

Voltamos à escola. Finalmente o monstro se aproximava. Seu brilho radioativo podia ser visto por trás da esquina, seu ruído demoníaco fazia o solo se retorcer, sua proximidade queimava as flores e calava as aves do céu. De repente, vi minha equipe se dissolver. Alguns se escondiam, outros deitavam-se despreocupados próximos à janela e dormiam. Seria mais um truque da criatura, ou o medo produzia esses delírios? Pelos corredores e cortiços, crianças brincavam e seus pais não eram vistos. Escondam-se! Escondam-se! Onde pensam que vão? A criatura vem aí! Mas agora, que os passos já eram ouvidos a poucos metros, o medo parecia se dissolver como num transe hipnótico.

Então surgiu. Tinha a pele multicolorida, um olho pequeno no topo da cabeça, outros de lado como os olhos de um gavião faminto. Sua pele irradiava uma luz espectral que nos lembrava a morte, e suas patas eram de ave. Apenas um companheiro lutava ao meu lado, e acertamos alguns golpes na criatura. Finquei-lhe o terçado na cabeça, e quando ia fincar o punhal em seu olho superior ela soprou seu bafo pestilento, fazendo-nos recuar entre o delírio e a moléstia. Onde estão todos os outros, que apenas temiam, e temiam sempre? Por que no momento decisivo tiravam o corpo fora? Eu já não tinha mais medo, apenas uma necessidade urgente de matar, de eliminar da face da Terra aquele mal, aquela hidra mitológica em forma de dragão.

Por fim, eu e o outro pusemos fim à maldição. Não sei dizer como, lembro-me apenas das pessoas reunidas enfim, a criatura amarrada, cega e ferida, e os preparativos de uma grande comemoração. Alguns cogitaram soltá-la, agora que aprendera a lição, mas eu estava resoluto - para isto, a morte! Acenderam uma fogueira e alguém disse: "você só vai matá-la para provar sua superioridade", ao que respondi que era preciso, ou se corta o mal pela raiz ou ele volta a nos assombrar. Acaso não lembravam todo o medo, rancor e desespero de apenas poucas horas antes? Castrem-na então, sugeriu alguém, e soltem-na. Não podemos nos igualar aos nossos inimigos! E a isso, respondi que não conhecíamos sua natureza. Há peixes que mudam de sexo e escorpiões que têm filhos sem copular. As intrincadas artimanhas da vida nos exigem a solução definitiva: o fogo.

E assim foi. Mas acordei antes de ver agonizar nas chamas a besta maldita. De tudo isso, apenas uma certeza tenho: o basilisco ainda vive e aqui é conhecido como Cristianismo. Hoje seu hálito ainda destrói a vida, mas o medo foi tranformado em apatia; o desespero persiste, mas sua fonte segue ignorada. Cristianismo, por todo o seu ódio pela vida e pela beleza, pelo que é natural e vigoroso, pelo diferente e cheio de opinião, por sua insistência em manter as crianças na rua da ignorância, quando deveriam investir em si mesmas, nesta vida, a única vida, seu destino é o mesmo que outrora aplicou a tantos que discordaram: há de queimar no fogo também. É só uma questão de tempo...

Um pouco de China

"A expressão chinesa para designar amplo poderio nacional é Zonghe guoli, conceito fundamentado em recursos naturais, capacitação econômica, comércio externo e potencial de investimentos, altos níveis de desenvolvimento social, capacitação militar, um nível elevado de eficácia governamental e habilidade diplomática."

- Parag Khanna, O Segundo Mundo, p. 393.


Zonghe guoli

綜和 = zong3he2 = total; sum
綜 <- 絲 + 宗 示 = shi4 = show; notify; instruct; teach;
宗 = zong1 = school; sect; purpose; model; ancestor; family; M for itens; cases; ancestors; religion
綜 = 综 = zong4 = aggregate; sum up; synthesize;
(metade de 絲) = threads; silk; fine thread; (fio);
和 = he2 = gentle; mild; kind; harmonious; on good terms; peace; sum; draw; tie; [denoting relations, comparison, etc.]; and; Japanese;
和 = han4 = and;
和 = he4 = join in the singing; compose a poem in reply to a friend, using the same rhyme sequence;
和 = huo2 = mix (powder) with water, etc.;
和 = huo4 = mix; [measure word];

国 = 國 = guo2 = country; state; nation;
力 = li4 = power; strength; ability; force; physical strength; do all one can; make every effort;
立 = li4 = stand; erect; set up; found; establish; exist; live; upright; vertical; immediately;
利 = li4 = sharp; favourable; advantage; benefit; profit; interest; do good to; benefit;
俐 = li4 = smooth; active; clever; sharp;
例 = li4 = example; instance; precedent; case; instance; rule; regulation; regular; routine;
历 = 歷 (with foot) = li4 = go through; undergo; experience; all previous (occasions, sessions, etc.); covering all; one by one;
历 = 曆 (with sun) = li4 = calendar; era;
厉 = 厲 = li4 = strict; rigorous; stern; severe;
丽 = 麗 = li4 = beautiful;
俪 = 儷 = li4 = pair; couple;

綜和國力 = amplo poderio nacional

"O verdadeiro milagre do desenvolvimento chinês ainda está, na verdade, dando seus primeiros passos. Em 1980, a China era uma terra devastada pós-Revolução Cultural, com dois terços de sua população vivendo em territórios áridos e ressequidos de terrível desolação (...). De um universo inicial de 500 milhões de pessoas ivendo na pobreza absoluta, restam hoje 50 milhões sobrevivendo com 1 dólar por dia, e a China já não aceita ajuda internacional para reduzir a pobreza. Mas, na realidade, o país não precisa soerguer 1 bilhão de pessoas, é mais ou menos como se estivéssemos falando de balsas, cada uma simbolizando uma família. Em cada balsa, os membros da família cuidam uns dos outros, daí resultando níveis muito mais reduzidos de populações sem teto e de mendigos - além de muito mais ordem e dignidade - do que num país típico do Terceiro Mundo como a Índia.
"As províncias litorâneas da China vêm recebendo até hoje uma proporção esmagadora - quatro quintos - do total de investimentos estrangeiros, mas essa impressionante estatística é intencional: o capitalismo foi chegando à China por etapas, para poder ser gerido gradualmente. No entanto, o custo dessa abordagem é a desigualdade. Contingentes de migrantes aparecem nas grandes cidades litorâneas como se chegassem a um novo mundo cujas características nem sequer poderiam imaginar. Muitos reviram montes de lixo para ganhar mais dinheiro do que ganhariam como agricultores, enquanto as elites tratam simplesmente de ignorá-los como se fossem manadas. Como acontece no Brasil, a desigualdade está diretamente ligada ao aumento da criminalidade. A prefeitura de Cantão mobilizou centenas de policiais a mais para o patrulhamento das ruas. Entretanto, como a China está atacando de frente seu problema de desigualdade em vez de ficar emperrada na questão da criminalidade, transformou-se no modelo que o Brasil acompanha mais de perto. (...) Em vez de ficar debatendo as estatísticas, os dirigentes chineses sabem que, embora o topo dessa sociedade dispare como um foguete, o fundamental é soerguer a base."

- Parag Khanna, O Segundo Mundo, pp. 399-400. (Grifo meu.)

"Xangai está se transformando na maior metrópole do mundo, deixando para trás Nova York, Londres ou São Paulo. A administração municipal faz planos com 50 anos de antecedência*, o que significa que, apesar de sua população de 26 milhões de habitantes (13 milhões de nativos e um número igual de migrantes), sempre aumjentando, ela não cairá no tipo de amontoado caótico das megalópoles latino-americanas, devendo permanecer entre as cidades ordeiras, como Tóquio.

- Parag Khanna, O Segundo Mundo, p. 404

"O confucionismo justifica amplamente os pilares gêmeos do capitalismo de Estado e da democracia social adotados pelo partido, enfatizando a estabilidade, o respeito à autoridade, a meritocracia e a liderança pelo exemplo. (...)
"Quaisquer que sejam os ajustes ideológicos promovidos pelo partido, permanecem de pé vários tabus invioláveis: nada de liberdade religiosa para os estimados 40 milhões de cristãos e 30 milhões de muçulmanos (conhecidos como hui) da China, o que jamais foi permitido por qualquer imperador. A China sabe muito bem o que é o vício do ópio em proporções de massa, e não permitirá que o "ópio das massas", denunciado por Marx, se dissemine livremente. Nenhuma concessão será feita em matéria de integridade territorial, inclusive no que diz respeito a Taiwan, ao Tibete e a Xinjiang - e em todos esses casos, é maior do que nunca o poder do governo de subjgar. O maravilhoso filme de propaganda Herói, um dos mais vistos em toda a Ásia nos últimos anos, traduz de forma artística a importância da unidade através dos reinos da China.
"O partido é mais poderoso, sofisticado e complexo que qualquer dinastia chinesa da história. Em vez de imperadores infantis para os quais a própria nação era uma propriedade pessoal, temos imperadores com MBAs que pensam em termos de planos de negócios - e estão cooptando as elites empresariais para funções de assessoria. Na era pós-Deng, não existem mais figuras totêmicas estendendo sua aura a acólitos obsequiosos, e sim uma nova geração de tecnocratas competindo por influência de forma mais ou menos meritocrática - e com mais obrigação do que nunca de prestar contas. É possível que logo os funcionários do partido passem a ter mandatos de duração preestabelecida."

- Parag Khanna, O Segundo Mundo, p. 408

"Um século atrás, Theodore Roosevelt proclamava que 'a era do Atlântico encontra-se em seu auge e logo terá esgotado os recursos à sua disposição. A era do Pacífico, destinada a ser a maior de todas, está apenas alvorecendo'. A era do Atlântico foi liderada pela Europa e depois pela América. A era do Pacífico será liderada pela China - e por mais ninguém."

- Parag Khanna, O Segundo Mundo, p. 335

"A expressão 'ascenção pacífica' (heping jueqi) foi criada por Zheng Bijiang, da Escola Central do Partido. Oficialmente, a doutrina seria posteriormente rebatizada de 'desenvolvimento pacífico', para ficar parecendo mais benigna e enfatizar a maior atenção da China com sua política interna, sem enviar qualquer sinal ambivalente de tolerância quanto à independência de Taiwan. Essa política subentende a idéia de que o excesso de consumo e a poluição são perigosos e ineficazes, de que a expansão e a agressão, em última análise, são contraproducentes, e de que o desenvolvimento econômico e social deve ser equilibrado."

- Parag Khanna, O Segundo Mundo, p. 338

he2ping2 jueqi

和平 = peace; mild;
和 = he2 = gentle; mild; kind; harmonious; on good terms; peace; sum; draw; tie; [denoting relations, comparison, etc.]; and; Japanese;
平 = ping2 = flat; level; even; smooth; on the same level; in a draw; equal; fair; impartial; calm; peaceful; quiet; average; common; pacify; put down; suppress; equal;

崛起 = rise (as a political force); (of a mountain, etc.) rise abruptly; suddenly appear on the horizon; rise suddenly; stand out;
崛 = jue2 = rise abruptly;
山 = shan1 = hill; mountain; anything resembling a mountain;
屈 = qu1 = bend; crook; subdue; submit; yield to; be in the wrong; wrong; injustice; submit, humiliate; (屈原 = Qu Yuan - Warring States poet who committed suicide to protest government policies);
原 = yuan2 = primary; original; former; unprocessed; raw; excuse; pardon; level; open country;
起 = qi3 = rise; get up; grow; appear; begin; start; remove; extract; draft; build; set up; case; batch; group;
起 = qi3 = [used as a complement after a verb indicating upward movement or beginning of an action]; [used after a verb together with 得 (possibility) or 不 (not) as meaning "can afford" or "cannot afford"];


"A Europa é um mercado maior para as exportações asiáticas do que a América, e os asiáticos vêm aumentando a participação do euro em suas enormes reservas cambiais para fazer frente à desequilibrada economia americana. Em toda a Europa se encontram acadêmicos, estudantes, jornalistas, músicos e turistas chineses. Verdadeiras ondas de empresários chineses hospedam-se em hotéis baratos da Alemanha e da Europa Oriental, passando semanas em busca de parcerias para exportar ainda mais produtos chineses.
"Mas a China e a Ásia estão apenas absorvendo conhecimento ocidental para acelerar a construção de uma ordem oriental. Os céticos americanos argumentam que um 'concerto asiático' é impossível, em virtude da persistência de uma série de rivalidades, mas a confiança dos asiáticos já evoluiu de tal maneira que a América só pode se manifestar quando convidada: em 2005, os Estados Unidos simplesmente não foram convidados para a primeira Reunião de Cúpula do Leste Asiático, realizada em Kuala Lumpur. À medida que essa comunidade evolui de um clube geográfico para a condição de principal foro para o debate das prirodades asiáticas, a maioria dos protagonistas regionais passa a encará-la como uma chance de se descartar, de uma vez por todas, da influência ocidental. Como dizia um veterano diplomata malásio sem sarcasmo: 'Criar uma comunidade é fácil entre amarelos e pardos, mas não com os brancos.'"

- Parag Khanna, O Segundo Mundo, p. 341. (Grifo meu.)

"Os 'valores asiáticos' de liderança unificada, consenso e harmonia social dificilmente poderiam ser mais desacreditados do que a democracia, o capitalismo e o individualismo americanos hojue, aumentando a oferta de modelos alternativos para o restante do Segundo Mundo. (...)
"'Nós estamos vendo como o materialismo levou ao excesso de consumo e ao desgaste da democracia americana', afirmou um estudante chinês que é líder de uma organização da juventude do partido. 'O que queremos é um sistema de governo po meio do consenso e do império da lei.' No Leste Asiático, as tentativas de democratização empreendidas pelo Ocidente bateram num muro ainda mais alto do que no mundo árabe. Os estudiosos ocidentais prevêem que a abertura econômica levará à democratização, mas não só os governos asiáticos se alinham com as elites para impedir qualquer desafio ao seu controle sobre os bens públicos e a lei, como a democracia está em demanda ainda menor, pois muitos países asiáticos efetivamente contam com bons líderes (junzi), que não querem se transformar no príncipe daquela parábola confuciana, que está errado mas não é contestado, levando o país à ruína.
"O 'pacto asiático' oferece sociedades abertas mas organizações políticas fechadas, recolocando a democracia em seu devido lugar de meio para alcançar um fim - não a mais alta virtude, mas simplesmente um dado entre muitos outros na agenda. Não deixa de ser irônico que o grande rival do Ocidente venha de uma meritocracia de elites de inspiração confuciana, já que essa idéia está firmemente assentada na República de Platão, que preconiza o governo de sábios reis filósofos.

- Parag Khanna, O Segundo Mundo, pp. 345-346

君 = jun1 = monarch; sovereign; supreme ruler; gentleman; Mr.;
子 = zi3 = son; seed; egg; person;
君子 = junzi = a man of noble character; gentleman;

Citações de Mao Tse-Tung

"A nós, compete-nos organizar o povo. É a nós que cabe organizar o povo para abater os reacionários na China. Tudo o que é reacionário é sempre igual: se não o golpeias, não cai. É como quando se varre o chão: como é normal, ali onde a vassoura não passa, a poeira não desaparece por si mesma."

- 13 de agosto de 1945.

"Dogmatismo e revisionismo, ambos são contrários ao marxismo. Seguramente, o marxismo tem de avançar, desenvolver-se com o desenvolvimento da prática, não pode ficar parado. O marxismo deixaria de ter vida se ficasse estagnado, estereotipado. Contudo, os princípios básicos do marxismo não devem ser violados; violá-los seria cometer erros. Constitui dogmatismo abordar o marxismo de um ponto de vista metafísico e tomá-lo como algo rígido. Constitui revisionismo negar os princípios básicos do marxismo, negar a sua verdade universal. O revisionismo é uma forma da ideologia burguesa. Os revisionistas apagam a diferença entre o socialismo e o capitalismo, entre a ditadura do proletariado e a ditadura da burguesia. Na realidade, o que eles propõem não é a linha socialista mas sim a capitalista. Nas circunstâncias atuais, o revisionismo é mais pernicioso que o dogmatismo. Uma das nossas importantes tarefas atuais na frente ideológica é proceder à crítica ao revisionismo."

-12 de março de 1957.

"O revisionismo ou oportunismo de direita é uma corrente burguesa de jpensamento ainda mais perigosa do que o dogmatismo. Os revisionistas, os oportunistas de direita, defendem de boca o marxismo e atacam também o 'dogmatismo'. Na realidade, porém, o que eles atacam é a própria essência do marxismo. Eles combatem ou deturpam o materialismo e a dialética, combatem ou tentam enfraquecer a ditadura democrática popular e o papel dirigente do Partido Comunista, tanto como combatem ou tentam enfraquecer a transformação e a construção socialistas. Mesmo depois da vitória de base da revolução socialista no nosso país, ainda existem pessoas que sonham em restaurar o sistema capitalista, e combatem a classe operária em todas as frentes, incluída a frente ideológica. Nessa luta, os revisionistas são os seus melhores ajudantes."

- 27 de fevereiro de 1957.


As relações entre "revisionismo" e "pós-modernismo" ainda escapam aos meus horizontes.


"A Primeira Guerra Mundial foi seguida do nascimento da União Soviética com uma população de duzentos milhões de habiantes. A Segunda Guerra Mundial foi seguida pela formação de um campo socialista com uma população que atinge um total de novecentos milhões de indivíduos. Se os imperialistas insistem em desencadear uma terceira guerra mundial, com toda a certeza várias centenas de milhões de homens mais passarão ao socialismo, não ficando então muito mais espaço na terra para os imperialistas, e sendo até possível que a estrutura imperialista se desmorone completamente."

- Sobre a justa solução das contradições no seio do povo, 27 de fevereiro de 1957.

"Provocar desordens, fracassar, voltar a provocar desordens, fracassar de novo ... até à sua própria ruína - eis a lógica dos imperialistas e de todos os reacionários do mundo com relação à causa do povo; jamais eles marcharão contra tal lógica. Essa é uma lei do marxismo. Quando dizemos que 'o imperialismo é feroz', nós queremos dizer que a sua natureza nunca mudará, que os imperialistas jamais abandonarão o seu facalhão de carniceiro, jamais se tranformarão em budas, e seguirão assim até à sua própria ruína.
"Lutar, fracassar, voltar a lutar, fracassar outra vez, lutar de novo ... até à sua vitória - eis a lógica do povo, contra a qual ele, igualmente, jamais marchará. Essa é uma outra lei marxista; lei seguida pela revolução do povo russo, e que tem sido também seguida pela revolução do povo chinês."

- Abandonai ilusões e preparai-vos para a luta, 14 de agosto de 1949. (Grifo meu.)

A filosofia é a arte de pensar corretamente.

Confúcio - Os Analectos:

Livro XV. 3. O Mestre disse: "Ssu, você acha que eu sou o tipo de homem que aprende muitas coisas e que depois armazena na mente cada uma dessas coisas que aprendeu?"
- "Sim, acho. Não é assim?"
- "Não. Tenho apenas um único fio que liga todas elas."

Livro IV. 15. O Mestre disse: "Ts'an! Uma única linha amarra todo o meu pensamento".
Tseng Tzu assentiu.
Depois que o Mestre tinha saído, os discípulos perguntaram: "O que ele quis dizer?"
Tseng Tzu disse: "O caminho do Mestre consiste em dar o melhor de si e usar a si próprio como medida para julgar os outros. Isso é tudo."

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Ao contrário do que propunha o sábio chinês, o conhecimento hoje tende a ser absorvido não como um todo coerente, mas pela memorização de partes desconexas. Em biologia, por exemplo, a questão pode ser resumida ao aforismo clássico de Dobzhansky: "Nada em biologia faz sentido a não ser à luz da evolução." Antes de Darwin, Lamarck apresentou uma proposta de teoria evolutiva, que entretanto não sobreviveu aos fatos. Hoje, o darwinismo dá sentido aos fatos biológicos, que passam a ser "coisas amarradas por um único fio", e não mais fatos dispersos a serem memorizados.

Também na vida e na filosofia certas idéias e pensamentos organizam melhor do que outros a variedade da experiência. Este é o objetivo da filosofia: resumir nossos paradigmas a um mínimo que dê sentido ao restante da experiência, de forma a liberar capacidade mental para outras necessidades. A maneira certa de pensar não é A maneira certa de pensar, mas uma que, comparada a outras, nos forneça menos contradições, nenhuma apreensão, poucas dúvidas e a capacidade de investigar o desconhecido, debater o conhecido e mudar de idéia sempre que necessário.

What indigenous mythology got and you don't

Confucius used to say that his first attitude if he had the power should be to rectify the words. Few things could sound more reasonable. Words model thoughts, thoughts model actions. So, focus at the basis.

The word "religion", for instance, usually points to things as far apart as confucionism and christianism. The main difference between them, I suppose, is that the first is just a coherent aggregate of moral suggestions based in their reflex over society. The second being an aggregate of overnatural dogma that, of course, also seeks reflex over society. Confucius never talked about ghosts, and had affirmed so explicitly. There's nothing to be said about something that lacks any safe evidence (for those who are fond of walking on solid ground, naturally).

Christianism is a religion in the sense we're used to - us at America Latina of XXI century in Christ's time - or you believe in their unprobable mysteries, or you're out. Salvation depends on faith, and the whole of society lean towards a dubious moral beyond reason. Confucionism seems the extreme opposite, its advices never get far from common sense. It's a system that, to work properly, does not imply our disconection from rationality. Even mystery is not perceived as a "delirium tremens" (as with "God") but as nature itself. The same can be said about taoism - although this encompasses metaphysics, it calls mystery mystery and makes no conjecture beyond what common sense would admit. Even a scientific-informed one.

Confucionism and taoism therefore are not religions in the sense of christianism and islamism. Thus, many prefer to call them "philosophical systems".

What about indigenous mythology, what is this? Yet better, indigenous mythologies?

Each people in the planet have developed its own system of values based in their experience - this applies to both religion and mythology. The crucial difference, as I see it, is that religions are monotheists (I exclude from that concept even hinduism), while mythologies (mythologys?) are usually polytheists (and can be atheists). Never existed that white-man's-creation called Tupã (or the name it might have in english speaking countries). It's nothing but a lure to make us think that "God" is a natural entity - since even indigenous peoples would have something similar. In many amazonic societies creators were a couple, not only a "male" or "something" alone - what is infinitely more logical. Nothing in the universe comes alone. Nothing is one. The Sun may look only one to us because of distance, but it's only a star among stars. The Moon is the only big natural satellite of Earth, but is a satellite of a planet like other satellites in other planets. Something so complex as life, exists only because it reproduces and evolves, adding complexity step by step. To exist a creator, it would have to have evolved first, and so it is natural - like mythology. "God" therefore rests as an anti-natural creation that throws us against nature. (It's the monotheist mythology - that one who doesn't accept to be called "mythology", or even "seita" - who states that man shall "rule" over nature, instead of live together with it as preconize the indigenous mythologies.)

Now comes other concept to be modified: the "postmodern" relativism, the habit of thinking that every truth is valid, that each person has its "own" truth, and that it should be enough (of course it makes sense only inside monotheism, which actively turns off some portions of our mentalware).

Aristotle already gave us a satisfying definition of truth as correspondence with reality. Being reality - the world out there - external to us, how can we have internal "truths"? We have beliefs, aspirations, ideals, thinkings, and we can be right or wrong. Postmodernism looks to me a creation of this individualistic society who tries to enthrone and root this individualism inside human nature, as if we have been always like that. But we are not, and we have not always been like that. There are cultures that put value also in collectivity, equal or even above the individual. We may feel tempted to reject this idea when we remember totalitarian states, slavery and historical abuses, but total individualism is not an option. However, this is what's implied when one says "each one holds its truth". It's a temerarious use of the word "truth", and today, more than ever, is indispensable that we think profoundly about this.

Indigenous mythology seems to me a synonym for wisdom. Our society has divided wisdom in many fields, such as science and religion, making them uncommunicable. Some of our exponent intellectuals had recognized the mistake and alerted us (like Abraham Maslow), but few have heard. An "indigen" is, thus, able to hear lessons from confucionism and taoism and translate them inside his/her own values (not beliefs) system. He/she is able to learn from hinduism, and I believe the opposite is also true. Listening about a religion (in this strict sense of monotheism), that it is the "belief of someone", like something somebody *choose* to believe, a wise "indigen" wouldn't hold a light condescendent smile, knowing that this someone decided to cut off his/her potential wisdom, accepting as "Truth" one myth among many, and finding pain in discussions and intellectual queries where others find pleasure.

Religions have been eliminating myths, slow but relentlessly. Their finality is to reign over the whole species, insensitive to the loss of sociocultural and biological richness day by day. Religion is not a good, but an abuse. Is not a need, but an imposition. Is no relief, but a wound. We get used to it, like we get used to anything else that stinks. But attention! It will come the day when we'll regret of our complacency, or our sons, or grandsons, and those will blame us for being so credulous, ingenuous and foolish, letting others sell nature in exchange of something intangible, illusory and vain.

O que a mitologia indígena tem que vocês não têm

Confúcio dizia que a primeira atitude que tomaria se tivesse o poder seria corrigir as palavras. Poucas coisas poderiam ser mais sensatas. As palavras moldam o pensamento, e este molda as ações. Logo, concentremo-nos na base.

A palavra "religião", por exemplo, costuma designar coisas tão díspares quanto o confucionismo e o cristianismo. A maior diferença entre ambos, acredito, é que o primeiro é apenas um conjunto coerente de sugestões morais baseadas em seu reflexo na sociedade, enquanto o segundo é um conjunto de dogmas sobrenaturais que, claro, também busca ter reflexo na sociedade. Confúcio não falava sobre espíritos, e afirmou isso explicitamente. Não há o que dizer sobre algo cujas evidências nunca foram bastante seguras (para quem gosta de andar em terra firme, naturalmente).

O cristianismo é uma religião como estamos acostumados a ver - nós na América Latina do século XXI do tempo cristão - ou você acredita no mistério improvável, ou está fora. A salvação depende da fé, e toda a sociedade se curva sobre uma moral duvidosa além da razão. O confucionismo parece o extremo oposto, ditando conselhos sensatos que não se afastam da razão. É um sistema que não exige que desliguemos nossa racionalidade para funcionar. O mesmo pode ser dito do taoísmo: embora este abranja a metafísica, chama o mistério de mistério e não faz nenhuma suposição além do que o senso comum admitiria. Mesmo um cientificamente informado.

Confucionismo e taoísmo, portanto, não são religiões no mesmo sentido em que o cristianismo e o islamismo. Muitos preferem, assim, chamá-los de "sistemas filosóficos".

E a mitologia indígena, o que é? Ou melhor, as mitologias indígenas?

Cada povo do planeta desenvolveu seu próprio sistema de valores baseado em suas experiências - isso se aplica à religião e à mitologia. A diferença crucial, ao meu ver, é que religiões são monoteístas (excluo deste conceito até mesmo o hinduísmo), enquanto as mitologias são geralmente politeístas (e podem ser ateístas). Nunca existiu essa invenção branca chamada Tupã. É apenas um engodo para nos levar a crer que "Deus" é uma entidade natural - já que até os índios apresentariam algo similar. Em muitas sociedades amazônicas, os criadores eram um casal, e não um "macho" ou "algo" solitário, o que é infinitamente mais sensato. Nada na natureza vem sozinho. Nada é um. O Sol pode parecer único para nós pela distância, mas é apenas mais uma estrela. A lua é o único grande satélite natural da Terra, mas é um satélite de um planeta como outros satélites em outros planetas. Algo tão complexo como a vida existe apenas porque se reproduz e evolui, adicionando complexidade passo a passo. Para existir um criador, ele deve primeiro ter evoluído, sendo portanto natural - como a mitologia. "Deus" é, assim, uma invenção anti-natural que nos joga contra a natureza. (É a mitologia monoteísta - aquela que não aceita ser chamada de "mitologia", ou mesmo de "seita" - que afirma que o homem deve "dominar" a natureza, ao invés de conviver com ela como preconizam as mitologias indígenas.)

Agora surge outro conceito a ser modificado: o relativismo "pós-moderno", o hábito de pensar que toda verdade é válida, de que cada pessoa tem a "sua" verdade, e isso basta (claro que isso faz sentido apenas dentro do monoteísmo, que ativamente desliga algumas porções de nosso mentalware).

Aristóteles já deu uma definição satisfatória de verdade como correspondência com a realidade. Sendo a realidade - o mundo lá fora - externa a nós, como poderíamos ter verdades internas? Temos crenças, aspirações, ideais, achismos, e podemos estar certos ou errados. O pós-modernismo me parece uma criação da sociedade individualista que pretende enraizar o individualismo na natureza humana, como se tivéssemos sempre sido assim. Mas não somos, nem fomos sempre assim. Há culturas que valorizam também a coletividade, em pé de igualdade ou até acima do indivíduo. Podemos sentir um impulso de rejeitar essa idéia ao nos lembrarmos dos sistemas totalitários, escravidão e abusos históricos, mas o individualismo total não é uma opção. Contudo, é isso que é implicado quando se diz "cada um tem a sua verdade". É um uso temerário da palavra "verdade", e é hoje, mais do que nunca, imprescindível que pensemos profundamente sobre isso.

A mitologia indígena me parece sinônimo de sabedoria. Nossa sociedade dividiu a sabedoria em diversas áreas, como ciência e religião, e as tornou incomunicantes. Alguns de nossos expoentes intelectuais reconheceram o erro e nos alertaram a respeito (como o psicólogo Abraham Maslow), mas poucos deram ouvidos. Um indígena é, assim, capaz de ouvir lições do confucionismo e do taoísmo e traduzi-las dentro de seu sistema de valores (não crenças), é capaz de aprender com o hinduísmo, e acredito que vice-versa. Ao ouvir sobre uma religião (neste senso restrito de monoteísmo), que "é a crença de alguém", como algo que alguém *escolheu* acreditar, um nativo sábio não poderia deixar de expressar um leve sorriso condescendente, ciente de que aquele alguém decidiu aleijar sua potencial sabedoria, aceitando como Verdade um mito entre tantos outros, e encontrando dor em discussões e buscas intelectuais em que outros encontram prazer.

As religiões têm eliminado os mitos, lenta porém inexoravelmente. Sua finalidade é reinar sobre toda a espécie, insensível à perda diária das riquezas sociocultural e biológica. A religião não é um bem, mas um abuso. Não é uma necessidade, mas uma imposição. Não é um alívio, mas uma chaga. Acostumamo-nos a ela, como acostumamo-nos a tudo o que fede. Mas atenção! Chegará o dia em que nos arrependeremos de nossa complacência, ou nossos filhos, ou os filhos deles, e estes então nos culparão por termos sido tão crédulos, ingênuos e tolos, deixando que vendessem a natureza em troca de um bem impalpável, imaginário e vão.