De heróis, aberrações e mentiras
A comunicação deve ser feita, mas como fazê-la quando as pessoas não querem?
Se uma rede de telecomunicações como a Globo tem poder de proibir no país a reprodução pública de um filme como Além do Cidadão Kane, podemos nos chamar livres? Ou melhor, livres para quê, senão para seguir? Por que tão poucos criam? Por que tão poucos pensam?
Atualmente estamos atolados de mentira até o pescoço! Papai do céu! Guerra às drogas! Castidade de menores! Atentado ao pudor! Pedofilia! Vamos botar os pingos nos is. Com quantos anos os meninos começam a se masturbar? E as meninas? E como se dá sua iniciação sexual? Quantos porcento da população tem ou teve problemas quanto a isso? Problemas graves? Eu já li sobre povos onde as crianças aprendem cedo sobre o sexo, na prática, e não poucas vezes com participação de pessoas mais velhas. Antigamente, antes das cidades, a juventude aprendia na base do famoso troca-troca. Cadê nossos doutores? Alô, Brasil! Aqui tem dúvidas! E se os pedófilos forem os meninos que começaram tarde? E se forem os que começaram cedo demais? Não deveríamos saber disso, ao invés de simplesmente demonizar a pedofilia (que varia desde aberrações até um rapaz de 18 com uma menina de 15)? Onde exatamente começa a pedofilia? Quantos dos condenados cometem realmente aberrações com vítimas inocentes? Será que as sequelas são piores que as deixadas pela privação do sexo até os 16, 18 e até mais? Muitos meninos de 13 anos desse Brasil vão atrás de adultos que acham úteis - quem está se aproveitando de quem? Uma palavra chinesa para aberração é 越轨 yue2gui3 ou "além dos trilhos" ou "excedendo a regularidade", parecido com o "outlier" da estatística: um ponto distante da média e da maioria dos outros pontos. Ora, um outlier pode ser apenas um eremita. A evolução cria a partir de mutações. Um juiz é um outlier na população, assim como um presidente. Por quê, então, tanto medo de "aberrações"? Há também 奇 qi2 ou 1 strange, queer, rare, unusual, 2 unexpected, surprising. O ocidente que se lambuza no progresso permitido por "aberrações" como Newton, Lavoisier e Pasteur é o mesmo que bate palmas quando alguma aberração fora da lei é linchada nas emissoras de televisão. Tiradentes foi um fora da lei, hoje é herói nacional. Como saberemos quais aberrações de hoje podem ser heróis amanhã? E no entanto vemos olhares que brilham quando alguém é declarado culpado não importa de quê. O que digo! Bastam suspeitas, e a televisão consegue destruir a honra de qualquer um impunemente! As fogueiras que matavam "piedosamente, sem derramamento de sangue" agora são igualmente piedosas. O local da fogueira foi substituído pela televisão; de resto, não se conversa mais à sua volta. Quanto mais só essa mudança afetou? O "efeito borboleta" é aquele segundo o qual uma borboleta que bate asas no Peru pode causar uma tempestade tropical na Tailândia. Coisas ínfimas podem ter consequências devastadoras. Já a mudança comportamental causada pelo advento da TV não tem nada de ínfimo. Suas consequências também são devastadoras. Bill Waterson, o genial criador de Calvin e Haroldo, resumiu maravilhosamente bem a situação numa de suas tiras: Calvin conta ao seu tigre Haroldo sobre o que lê num livro - 'Carl Marx escreveu que a religião é o ópio do povo' - 'Uau!' ele diz 'o que será que isto quer dizer?', e o aparelho de TV, ligado, pensa 'que ele ainda não tinha visto nada...'
Por que ouvimos tanto o que pastores e padres dizem sobre o ser humano? Tanto o que médicos e psicólogos dizem sobre o ser humano? E nada sobre o que antropólogos dizem sobre o ser humano! (Antropologia = estudo do homem, do latim ánthropos = homem, lógos = estudo). Ou mesmo biólogos (bíos = vida)!
Ao fim de um longo processo evolutivo, vemo-nos com dez dedos (desde bem cedo entre os mamíferos), duas pernas (já mais recentemente entre primatas), dois olhos (desde os primeiros peixes), duas narinas e dois ouvidos (desde os anfíbios?), duas orelhas (desde os primeiros mamíferos - o ornitorrinco tem orelha?), cérebro, coração, fígado e rins (desde os peixes), pulmões (desde certos peixes pulmonados), dois braços (desde os primeiros tetrápodes, ou pré-anfíbios, embora tenham tido já diversas formas, como asas nas aves e nadadeiras dianteiras nos mamíferos aquáticos), intestino (desde antes dos peixes, quando nossos ancestrais eram vermes marinhos sem e depois com notocorda), e assim por diante. Apenas nossa razão é bem mais recente, e por isso mesmo é usada via de regra para justificar e defender os interesses dos demais instintos. E, assim mesmo, a zoologia evolutiva é simplesmente ignorada por muitos que acreditam estar aprendendo sobre o ser humano. Pior: quer-se "limpar" a humanidade de nosso pano de fundo animal, como se precisássemos desse tipo de progresso. Como se, ao perder nossos instintos profundos, pudéssemos nos tornar seres humanos melhores - ao invés de transtornados, traumatizados e escravizados. Claro que isso vem de uma ideologia onde fomos feitos à imagem e semelhança de um deus machista que, além de não ter esposa, jamais foi um animal! Conhecer o ser humano e ignorar seu lado animal é como acreditar que um iceberg é apenas o que se vê fora d'água. O que foi fatal para o Titanic ainda não conseguiu derrubar nossa civilização. Ainda!
Ainda que médicos estudem o corpo humano em detalhe, talvez justamente pelo excesso de detalhamento afastam-se de uma visão mais completa (que deveria incluir pelo menos conceitos como iatrogênese e doenças psicossomáticas, ecologia bacteriana, psicologia de paisagens e etnomedicina), sem falar que hoje cada vez mais a medicina vira mero braço da indústria farmacêutica, quando deveria ser o contrário. E psicólogos, estudiosos da mente, também distantes da visão completa, que deveria incluir (para um estudioso, bem lembrado) outras culturas e outras espécies, no mínimo! E quanto a pastores e padres, o que dizer? Pelo menos que ajudaram a desacreditar todo o conhecimento que os povos indígenas tinham da Natureza, de seus corpos e mentes, de sua história, e assim por diante. Já foram denunciados repetidas e gloriosas vezes, esses padres e pastores, mas quantos têm coragem de ler e pensar sobre Lao Zi, Voltaire, Thoreau, Nietzsche ou qualquer um dos divulgadores do pensamento de hoje? A maioria não tolera quem os faça pensar. Seu orgulho e vaidade são maiores que sua vontade de aprender. Sabe-se lá quantos traumas não guardam desde que entraram no espremedor de cérebros conhecido como "escola"? Ah, a tradição! Se até tão pouco tempo nossas freiras espancavam crianças em nome de um bem maior! Quão cedo nos livraremos de tanta miséria?