Desrazão
O conceito de
desrazão.
Infelizmente, não tenho mais ferramentas à mão nesse instante do que a tinta e o papel. E claro, meus pensamentos. Porém, os pensamentos são tão fortes que os chineses a que se referiu chamam a palavra de "o crime da boca", como se as idéias fossem espadas manejadas pela mão, com a diferença de alcançar inúmeras mentes.
A sociedade que imagino a mais feliz é aquela com o mínimo de razão desnecessária. A razão, como a linguagem, também é uma arma, que pesa e sobrecarrega a sociedade como um todo, por mais benefícios que traga. O que imagino é que deveríamos reduzir a razão ao mínimo de leis máximas, diminuindo as exceções que atribulam nosso sistema legal, por exemplo, não apenas tornando difícil seu conhecimento e aplicação justa, mas também abrindo espaço para os que enriquecem à sua custa - ou melhor, às custas dos outros.
Sugeri que o sistema legislativo seja decomposto pela participação mais direta da população envolvida em cada caso. Como plebiscitos mais ou menos locais, que abrangeriam desde a instalação de usinas hidrelétricas até a legalização do aborto ou das drogas.
Não quis dizer que transformaremos nossa sociedade num idílio aborígene nem muito menos "irracional". A razão é nossa mais poderosa ferramenta, e como toda boa ferramenta, deve ser usada com precaução e responsabilidade. O maior problema de nossa sociedade, a desigualdade social, só é possível pela acumulação dos símbolos que mantêm o
status quo, como o sistema legal hiper-racionalizado (no sentido de volumoso e complexo, exigindo décadas de formação para produzir bons juristas, o que ainda assim não costuma acontecer). A desigualdade social aumenta também na medida em que nossa juventude é entupida de conhecimentos gerais, antes mesmo que tenha aprendido a viver. A maior parte do que se ensina na escola é lixo: a que interessa à criança ter a obrigação de saber o nome de Pedro, o descobridor da Ilha de Santa Cruz, ou o dia em que ele aportou em nossa costa, se a curiosidade natural já foi eliminada muito antes disso? Às crianças não é permitido duvidar, hábito e alimento primordial da razão. Observe nossos jovens nas escolas, no ambiente urbano de máquinas e asfalto, e compare sua curiosidade com a da criança do campo, que pode correr livre pelo ambiente natural rico de diversidade e desafios.
Em tudo o homem aprendeu com a natureza, e hoje não lhe damos o devido valor. As pessoas arrotam suas religiões e matam e morrem por elas, ou pelo dinheiro, ou por drogas ou por um sistema de governo, mas não percebem que estão deixando para trás a natureza que nos formou e que é ainda hoje nossa fonte de vida e de conhecimento. Todas as grandes descobertas, a roda, o avião, a eletricidade, os fármacos, já estavam na natureza. Quando defendo uma sociedade do instinto, não faço mais do que seguir a antiga máxima do "Conhece-te a ti mesmo". Toda razão que não é usada nisso, ou seja, que é desperdiçada na criação de uma sociedade mais tecnológica, industrial e descartável, terá, por isso mesmo, ampliado mais ainda a ignorância e o fosso da desigualdade.
Em seu primeiro parágrafo, acho que você quis dizer que a consciência
precede a razão. Realmente seríamos mais felizes com menos consciência. Mas assim como os problemas científicos (e como um dos últimos grandes problemas científicos, inclusive), também a consciência pode ser desmembrada em partes. Há uma consciência instintiva e uma consciência de quem estudou demasiado determinado aspecto da realidade. Um cientista biológico tem sua consciência fisiológica animal individual mais desenvolvida que o cientista social, que se prende à sua consciência social e histórica.
Nietzsche fez uma crítica mordaz ao ensino da história, na medida em que a juventude aprende primeiro todos os caprichos, as injustiças e as desgraças da história, antes mesmo de aprender a vida por experiência própria. Isso parece exaurir, nas cabeças em formação, toda a sensibilidade em relação ao mundo presente, a esperança em ideais - pois prova-se que nenhum ideal jamais "funcionou" - formando uma geração de cínicos que só vem aumentando cada vez mais.
Quando forçamos toda a juventude de um país a saber exatamente a mesma lista de fatos, como se devessem todos ser enciclopédias ambulantes, o que estamos fazendo é amordaçar o instinto, e isso não acontece sem propósito. A Igreja foi a primeira a destruir os instintos básicos dos povos que conseguiu alcançar com suas teias e patas de aranha. Antes isso era feito não por uma educação rigorosa, mas pela observância a comportamentos rígidos, que desviassem todos de seus prazeres e trivialidades do corpo (transformados, por uma longa e talvez fortuita cadeia de eventos, em coisas sujas e pecaminosas - talvez por se apresentarem opostos à superioridade do espírito
imaterial, como se queria a essência de Deus). É bem verdade que assim Deus permanecia externo ao mundo, distante, acessível apenas a uns poucos iniciados, que com isso garantiam seu poder terreno, sempre em meio às barbas do Estado. Hoje, depois da industrialização e da vulgarização dos grandes núcleos urbanos, da ciência e do acesso à informação, a sociedade foi afastada ainda mais de seus instintos, primeiro pelo afastamento da natureza presente no campo, depois pelo anonimato e pela especialização técnica dos estudantes nas cidades, cada vez mais especialistas, mais restritos e mais míopes para o quadro geral da vida.
Hoje os teocratas (?) são os cientistas, os novos racionais - realmente muito mais racionais em seus métodos do que toda a baboseira metafísica que sempre confundiu, mas perpetuou, a Igreja. Como num processo de seleção natural, o pensamento científico alcançou maior sucesso junto às massas porque deu a elas a liberdade há tanto aguardada de exercer melhor seus desejos, o que de fato foi alcançado. Mas o efeito colateral do novo pensamento foi a comercialização de tudo o que antes não existia. Se a diferença antes se dava apenas entre o homem feudal e o nobre, hoje há toda uma categorização das desigualdades, passando por diferentes poderes aquisitivos, que vão desde água potável e comida suficiente até uma bicicleta e um tênis superiores, uma boa mochila e barraca de camping, moto, asa-delta, carro importado, lancha e avião - alcançando mesmo o direito de realizarmos viagens espaciais, apenas se tivermos dinheiro para tanto.
A razão em si não é um mal - é apenas uma ferramenta. O pecado de nossa era - se é que se pode falar em pecado - é usar a razão para criar necessidades, com a voracidade de uma criança curiosa e hiperativa. Em momento algum a sociedade como um todo olhou para tudo isso e pensou: desejamos mesmo tudo isso? Ou estamos só construindo uma nova torre de Babel, cujos pedaços já caem sobre as cabeças menos favorecidas?
A razão tem criado produtos antes de perguntar se queremos mais produtos.
Mais produtos geram diferenças, e "diferença engendra ódio", para citar o grande psicólogo Stendhal.
Acredito ser um fato biológico que diferença engendra ódio. Mais ainda se a diferença é criada, artificial e desnecessária - e portanto
evitável -, como um tênis Nike ou um óculos Rayban ou um relógio Rolex.
Esse tipo de razão, a razão luxuosa da tecnologia sem limites, afasta-nos do equilíbrio instintivo, daquela visão do Yin-Yang onde a razão deve ceder em ondas a uma intuição que se oponha a ela, equilibrando-a, equilibrando-nos - intuição, ou melhor,
desrazão que sucumbe aos poucos pela overdose de racionalidade, de notícias, de informação, de conhecimentos e produtos.
Faço e farei tudo que estiver ao meu alcance para deter esse processo, tanto no mundo das idéias quanto no mundo das ações. Aqui, entre as quatro quinas de monitores mundo afora, mantenho minha palavra como a arma que melhor se adequa ao meu estilo de luta. Lá fora, espero conseguir levar minhas propostas às pessoas certas, no momento certo, de maneira que consiga realizá-las ou, ao menos, levá-las adiante.
Não resisti a copiar e colar alguns trechos, comentando-os em seguida:
1. Não é "conhecimento de si", e sim conhecimento do mundo
fora de si, antes do conhecimento de si, ou antes de sabermos as conseqüências do nosso conhecimento do mundo sobre o mundo, através da tecnologia destruidora e irrefreável.
2. Para mim, "sabermos o que somos, quem somos e qual o nosso lugar no universo" seria nossa única salvação, mas antes de sabermos isso já estamos comprando vários aparelhos televisores e de ar-condicionado, telefones celulares, fixos, portáteis, computadores de mesa, laptops, máquinas de lavar roupas, de lavar louças, secadoras de roupas e de louças, ferros de passar, geladeiras, freezers, fornos de microondas, carros com vidros elétricos e milhões de outros utensílios que foram feitos para
poupar nosso tempo, e no entanto vivemos correndo muito mais do que há um século atrás.
3. "Acorda quando lhe dá vontade e tem fome, aí então precisa preocupar-se em conseguir comida" - já abandonamos esse luxo há dez mil anos, quando começamos a agricultura - e dela nos tornamos escravos, coisa que não aconteceu com as poucas tribos de caçadores-coletores que persistiram até hoje.
4. "Uma sociedade de seres assim seria mesmo inimaginável e, mais do que isso, totalmente desnecessária" - Não faz sentido falar de "sociedade desnecessária", já que toda sociedade é apenas uma experiência.
5. "A liberdade na sociedade do instinto seria total e dependeria apenas da vontade de cada um e da capacidade para poder fazê-lo chegar ali, acolá, alhures." - a liberdade nunca será total em sociedade humana alguma, pois mesmo chimpanzés devem respeitar o líder do bando. Somos hierárquicos. Buscamos diminuir o contraste hierárquico, reduzir a desigualdade entre o máximo e o mínimo que se pode alcançar, sem perder de vista que sempre existirá uma relação de poder, e portanto, de liberdades restritas. Além do mais, a liberdade hoje já depende exatamente do que você disse.
6. "Aquele que tudo questiona, não pode ter um padrão fixo, ele terá padrões variáveis ao longo do tempo, ainda que seguindo uma linha comum derivada diretamente a partir de sua natureza biológica e, mais especificamente, de seus genes e da interação destes com o meio ambiente e sua sociedade." Faltou dizer o principal: a linha seguida derivará principalmente da filosofia ensinada. Assim surgiram as diferentes religiões, eis nossa Torre de Babel. O que sugiro é ensinar o mínimo possível, ou para ser mais claro: aproveitar em nossos ensinamentos o máximo da filosofia que a natureza já dá ao homem, em toda área do conhecimento onde isso for possível, ou na ordem em que se fizer disponível em nossa lenta mudança social.
7. Por fim: "quais seriam as modificações-chave a serem feitas nesta atual sociedade que temos para levar-nos mais diretamente à sociedade do instinto que imagina?" Algumas mudanças, todas inviáveis imediatamente:
- mudança do legislativo representativo para um legislativo consultivo onde o máximo de cidadãos envolvidos seja consultado.
- diminuição do papel da justiça, abrindo espaço para que grupos específicos resolvam seus próprios problemas sempre que isso for possível. Um exemplo disso acontece hoje no Brasil, quando indivíduos de etnias indígenas, morando em terras indígenas legalmente constituídas, praticam no interior dessas terras atos considerados ilegais pela nossa legislação, como, por exemplo, o assassinato. São impunes a nossa lei. O mesmo deveria ocorrer, por exemplo, se um indivíduo é morto por outro, e ninguém se queixa do assassinato.
- diminuição das leis restantes ao mínimo necessário e suficiente, num procedimento semelhante ao de simplificar um algoritmo computacional.
- diminuir a educação à oferta de cursos livres para quaisquer idades, e ao pagamento justo de mestres em suas profissões, para que possam servir como professores nestes cursos.
- limitação do direito à herança de bens materiais, para que o herdeiro aprenda a conquistar a própria independência, e também para que não exista tanta cobiça em acumular bens.
Acho ainda que a liberalização que proponho não se estenda à economia, que deve depender da proteção do Estado de forma a proteger os interesses do povo e da nação. Antes comêssemos bananas e dirigíssemos fuscas produzidos por nós mesmos, do que essa carnificina chamada mercado que hoje devora continentes.
II Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida
"(...) e se é verdade, como alguém disse, que uma virtude hipertrofiada - tal como é, na minha opinião, o sentido histórico (
historische Sinn) da nossa época - pode, assim como um vício hipertrofiado, provocar a ruína de um povo, então, que me permitam falar sobre isso. (...)
"1. (...) O animal, de fato, vive de maneira
a-histórica (
unhistorich): ele está inteiramente absorvido pelo presente, tal como um número que se divide sem deixar resto; ele não sabe dissimular, não oculta nada e se mostra a cada segundo tal como é, por isso é necessariamente sincero. O homem, ao contrário, se defende contra a carga sempre mais esmagadora do passado,
que o lança por terra ou o faz se curvar, que entrava a sua marcha como um tenebroso e invisível fardo.
"(...) A mais ínfima felicidade, quando está sempre presente e nos torna felizes, é incomparavelmente superior à maior de todas que só se produz de maneira episódica, como uma espécie de capricho, como uma inspiração insensata, em meio a uma vida que é dor, avidez e privação. Mas, tanto na menor como na maior felicidade, há sempre algo que faz com que a felicidade seja uma felicidade: a faculdade de esquecer, ou melhor, em palavras mais eruditas, a faculdade de sentir as coisas, durante todo o tempo em que dura a felicidade, fora de qualquer perspectiva histórica.
reproduzo aqui, na íntegra, a sétima parte:
"7.
O sentido histórico, quando reina
sem freios e leva até o fim todas as suas conseqüências, desenraíza o futuro, pois destrói as ilusões e priva as coisas existentes da única atmosfera na qual elas poderiam viver. A justiça histórica, mesmo a verdadeira e praticada com boa intenção, é uma virtude terrível, porque ela sempre solapa e destrói os seres vivos: o seu julgamento é sempre aniquilador. Quanto a atividade do instinto histórico não prepara a atividade de um instinto construtivo, quando não se destrói e não se aplaina o terreno para soerguer no espaço assim liberado um futuro já vivo de esperança, quando somente a justiça reina absoluta, então, o instinto criador se vê enfraquecido e desencorajado. Uma religião, por exemplo, que se quisesse transformar num saber histórico regulado pela pura justiça, uma religião que se quisesse submeter inteiramente ao conhecimento científico, se encontraria, ao termo de uma tal operação, reduzida a nada. A razão disso é que a pesquisa histórica traz à luz tanto erro, grosseria, desumanidade, absurdo, violência, que acaba matando inevitavelmente a indispensável pia ilusão, onde unicamente pode viver tudo aquilo que quer viver; porém, o homem cria somente quando ama, quando se banha na ilusão do amor, quer dizer, quando acredita incondicionalmente em algo que seja justo e perfeito. Quando se obriga alguém a não mais amar de maneira incondicional, se cortam as raízes da sua força: por conseguinte, este ficará absolutamente ressecado, quer dizer, tornar-se-á indigno. Por causa desses efeitos, os estudos históricos se opõem à arte: somente quando admite ser transformada em obra de arte, ou seja, numa pura criação da arte, é que a história pode eventualmente preservar ou mesmo despertar os instintos. Uma tal historiografia se chocaria, no entanto, contra o caráter analítico e prosaico da nossa época, que só veria naquela falsificação. Mas uma história puramente destrutiva, uma história que não seja habitada e guiada por algum instinto de construção, com o tempo, torna os seus servidores seres corrompidos e artificiais: estes homens, de fato, destróem as ilusões, e "aquele que destrói a ilusão em si e nos outros, a natureza o castiga com o mais tirânico rigor". É verdade que se pode, durante um certo tempo, lidar com a história de uma maneira totalmente ingênua e superficial, como se tratasse somente de uma ocupação entre outras. A nova teologia, em particular, parece ter se envolvido com a história por pura inocência e somente agora se dá conta, certamente contra a sua vontade, de que, assim fazendo, ela se pôs a serviço da divisa voltairiana do "
écrasez l'infâme" ["esmagai a (Antigüidade) infame", Voltaire defendendo o que é moderno]. Que ninguém ouse aventar que possa haver aí novos e voigorosos instintos de construção, a menos que se queira considerar a suposta "Liga protestante" como sendo a matriz de uma nova religião, ou tomar o jurista Holtzendorf (editor e prefaciador da suposta Bíblia dos protestantes) como um São João nas margens do Jordão. Talvez a filosofia hegeliana, que ainda embriaga alguns velhos cérebros, facilite momentaneamente a propagação de uma tal ingenuidade, na medida em que ela distingue a "idéia do cristianismo" das suas numerosas e imperfeitas "formas fenomenais" e na medida em que ela quer convencer de que "o diletantismo da Idéia" adora manifestar-se sob formas cada vez mais puras, para encontrar finalmente no cérebro do atual
theologus liberalis vulgaris [teólogo do liberalismo vulgar] a sua forma mais pura, uma forma seguramente tão transparente que se torna quase invisível. Mas quando ouve estes cristianismos totalmente imaculados se pronunciarem a respeito dos cristianismos impuros do passado, o espectador imparcial tem freqüentemente a impressão de que não se trata absolutamente do cristianismo, mas... de que se trata então? Quando vemos o "maior teólogo do século" descrever o cristianismo como a religião que permite "compreender intuitivamente todas as religiões existentes e algumas outras que são apenas possíveis" e quando se diz que a "verdadeira Igreja" deve ser "uma massa fluida, sem contornos definidos, onde cada parte se encontra ora aqui ora lá e onde tudo se junta pacificamente" - mais uma vez, em que poderíamos pensar?
O cristianismo nos mostra como, sob o efeito do ponto de vista histórico, ele próprio se tornou corrompido e artificial, até que finalmente um tratamento inteiramente histórico, quer dizer, justo, o dissolveu numa pura ciência do cristianismo, com o que ele ficou destruído como religião. O mesmo fenômeno pode ser estudado em todos os seres vivos. Eles deixam de viver quando são dissecados até nas suas mais recônditas entranhas e levam uma existência somente dolorosa e doentia, logo que se começa a submetê-los à dissecação histórica. Algumas pessoas, que acreditam na virtude curativa, no poder reformador e transformador da música alemã entre os alemães, constatam com ódio que homens como Mozart e Beethoven acham-se já sepultados sob a douta obscuridade das biografias e obrigados a responder, submetidos ao aparelho de tortura da crítica histórica, a milhares de questões indiscretas. Eles vêem aí uma injustiça contra o que é mais vital da nossa cultura. Não seria destruir, ou pelo menos esgotar prematuramente, uma fonte ainda rica de vida, dirigir a curiosidade para uma multidão de detalhes microscópicos das obras ou das vidas dos seus autores e procurar os problemas do conhecimento lá onde se deveria aprender a viver e a esquecer todos os problemas? Então, transportai pela imaginação alguns destes biógrafos modernos às origens do cristianismo ou da Reforma luterana: a sua curiosidade sóbria e pragmática só trouxe como resultado tornar impossível qualquer
actio in distans [ação à distância] espiritual. Assim observamos que o menor animal pode impedir o nascimento do carvalho mais poderoso, devorando as suas glandes. Todo ser vivo tem necessidade de estar envolto numa atmosfera, num véu de mistério; caso se queira privá-lo deste envolvimento, caso se queira condenar uma religião, uma arte ou um gênio a gravitar como os astros privados de atmosfera, então, não se deve ficar admirado ao vê-los logo mirrar, ressecar e se esterilizar. Como disse Hans Sachs em
Os Mestres Cantores, assim ocorre também com todas as coisas grandiosas, "que jamais medram sem alguma ilusão".
Para alcançar a maturidade, um povo, ou mesmo um homem, tem necessidade deste véu de ilusão, deste invólucro protetor, mas hoje se detesta o amadurecimento sob todas as suas formas, pois se respeita mais a história do que a vida. Proclama-se inclusive vaidosamente que "a ciência começa a dominar a vida"; pode acontecer talvez que ela um dia consiga isso, mas o que é certo é que uma vida assim dominada não valeria grande coisa, porque seria muito menos vida e porque garantiria menos vida para o futuro do que a vida tal como era antigamente dominada, não pelo saber, mas pelos instintos e por poderosas ilusões. É verdade, como já o disse, que esta época não quer absolutamente ser aquela das personalidades maduras e realizadas, das personalidades harmoniosas, mas quer ser a época do trabalho coletivo e da produtividade a todo custo. E isto significa somente o seguinte: os homens devem ser treinadso de acordo com as necessidades da sua época, a fim de poder o mais cedo possível ir para o trabalho; eles devem trabalhar numa fábrica de utilidade pública antes mesmo de terem alcançado a maturidade, ou melhor, para jamais chegarem à maturidade - pois isto seria um luxo que privaria o "mercado de trabalho" de uma grande quantidade de forças. Há pássaros que são cegados para assim cantar melhor. Não acredito que os homens de hoje cantem melhor do que os seus ancestrais, mas sei bastante bem que ficaram cegos muito cedo. Porém, o meio, o meio infame que se emprega para isto consiste em submetê-los
a uma luz demasiado crua, demasiado brutal, demasiado oscilante. Os jovens são levados debaixo de chicote através dos milênios: adolescentes que ignoram tudo o que seja uma guerra, uma manobra diplomática, uma política comercial são tidos como aptos para serem iniciados na história política. E, da mesma maneira como os jovens passam pela história, assim também nós, os modernos, passamos pelas salas dos museus e dos concertos. Percebe-se bem que uma coisa não tem o mesmo som da outra, que uma coisa não produz a mesma imperssão da outra: mas o sentido histórico e a cultura histórica consistem precisamente em perder pouco a pouco este sentimento de estranheza, em não mais admirar-se com absolutamente nada, em tudo aceitar. Para falar sem eufemismos: a jovem alma está submetida a um tal desatrelamento de fatos estranhos, bárbaros, brutais, "fundidos em blocos hediondos", que não lhe resta senão refugiar-se numa apatia deliberada. Ao lado de uma consciência refinada e vigorosa, este procedimento produz um outro sentimento, um sentimento de desprezo. Os jovens se viram assim tão desenraizados, que acabaram por duvidar de todos os costumes e de todas as idéias. Eles sabem agora: pouco importa o que tu és, já que nunca duas épocas viram as coisas da mesma maneira. Numa melancólica indiferença, eles vêem passar diante dos seus olhos um cortejo de opiniões e compreendem então a obra e o sentimento de Hölderlin, ao ler a obra de Diógenes Laércio sobre as vidas e as doutrinas dos filósofos gregos:
"Muitas vezes experimentei algo que me impressionou, ou seja, que os aspectos efêmeros e flutuantes dos pensamentos e dos sistemas humanos me ferem de maneira quase mais trágica do que os destinos aos quais se atribui habitualmente toda a realidade."
Não, a juventude não tem certamente necessidade, como demonstra o exemplo dos antigos, de que tudo seja remetido à história de maneira tão brutal e tão cega; isto é inclusive, como o demonstra o exemplo dos modernos, extremamente perigoso para ela. Mas examinemos agora especificamente o estudante de história, herdeiro de uma apatia prematura, surgida provavelmente já na adolescência. Desde cedo, ele deve já assimilar o "método" que usará no seu trabalho, os truques e o tom superior do seu mestre; ele recortou cuidadosamente do passado um pequeno capítulo, sobre o qual empregará a sua sagacidade e o método apreendido. Ele já produziu, ou para usar uma palavra mais ambiciosa, ele "criou"; a partir de então, com o seu trabalho, ele se transformou num servidor da verdade e passou para o campo da história universal. Se, quando era ainda adolescente, ele já se sentia "realizado", eis que agora ele se sente mais do que realizado: basta apenas sacudi-lo para fazer cair estrepitosamente os frutos da sua sabedoria; mas esta sabedoria está podre e cada maçã tem já o seu verme. Creia-me: se os homens fossem obrigados a trabalhar e a produzir na fábrica da ciência antes de alcançarem a maturidade, a própria ciência estará logo arruinada, assim como os escravos prematuramente utilizados nesta fábrica. Lamento que seja preciso recorrer ao jargão dos senhores de escravos e dos patrões para tratar de assuntos dos quais a utilidade e a necessidade material deveriam estar ausentes, mas as palavras "fabrica, mercado de trabalho, oferta, produtividade" - junto com toda a terminologia usual do egoísmo - vêm inevitavelmente aos lábios, quando se quer descrever a nova geração de eruditos. A mediocridade constitutiva se torna cada vez mais medíocre, a ciência se torna cada vez mais lucrativa do ponto de vista econômico. Na verdade, os eruditos mais recentes não dão prova de sabedoria senão num único ponto, mas neste ponto, eles são mais sábios do que todos os homens do passado, enquanto que em todos os outros pontos, por outro lado, eles são somente - para falar com prudência - infinitamente diferentes de todos os sábios da velha cepa. No entanto, eles reclamam honrarias e privilégios, como se o Estado e a opinião pública fossem obrigados a avaliar com os mesmos pesos as novas moedas e as antigas. Os carroceiros fizeram entre si um contrato de trabalho e decretaram que o gênio era supérfluo - e marcaram cada carroceiro com o selo do gênio: sem dúvida, uma época posterior verá nas suas construções que elas foram obra de carroceiros, e não de arquitetos. Àqueles que têm constantemente na boca o grito de guerra e a invocação sacrificial dos modernos: "Divisão do trabalho! Entrem no jogo!", a estes é preciso dizer alto e clarametne: se quiserdes estimular a ciência a todo custo, estareis também prestes a arruiná-la, assim como levaríeis à morte uma galinha forçando-a com meios artificiais a chocar com uma rapidez excessiva. É verdade que a ciência progrediu, durante as últimas décadas, numa velocidade extraordinária, mas olhai também os eruditos, estas galinhas exaustas. Não são verdadeiramente naturezas "harmoniosas". Elas cacarejam mais do que nunca, pois chocam com mais freqüência: os seus ovos, em compensação, são cada vez menores - embora os seus livros sejam cada vez mais volumosos. O resultado último e natural deste processo de aceleração é a "vulgarização" tão apreciada pela ciência (assim como a sua "feminização" e "infantilização"), quer dizer, o infame ajustamento da roupa da ciência às medidas do "grande público" - para aplicar a uma atividade de alfaiate uma linguagem de alfaiate. Goethe via nisso um abuso e exigia que as ciências não agissem sobre o mundo exterior senão pela via
de uma prática superior. As antigas gerações de sábios julgavam, aliás com boas razões, que um tal abuso era grave e molesto. Por todas estas boas razões também, este abuso parece não pesar nos jovens eruditos, que, para além de um pequeníssimo domínio do saber, fazem eles mesmos parte do "grande público" e compartilham das suas necessidades. De fato, basta a eles apenas se instalar bem confortavelmente nas suas poltronas para, em seguida, abrir a sua pequena especialidade à curiosidade faminta do grande público. Este gesto cômodo seria depois qualificado de "modesta condescendência do erudito para com o seu povo", embora, na verdade, o erudito, na medida em que é "plebe" e não sábio, somente tenha condescendido para consigo mesmo. Criai para vós o ideal de um "povo": não poderíeis jamais concebê-lo tão nobre e tão elevado. Se fizerdes uma elevada idéia do povo, seríeis misericordioso em relação a ele e evitaríeis lhe oferecer o vosso ácido histórico como sendo um elixir de força e de vida. Mas, no fundo de vós próprios, tendes por ele uma baixa estima, pois não podeis ter pelo seu futuro um verdadeiro respeito, fundado em sólidas razões. Agis pois como pessimistas de fato, quer dizer, como homens que, pressentindo uma catástrofe, se tornam apáticos e negligentes em relação à felicidade dos outros, inclusive a de si mesmos. Na suposição de que a terra continue a nos suportar! E quando ela não nos suportar mais - isto não será pior. Estes são os sentimentos que eles nutrem - eles levam assim uma existência
irônica."
em: Friedrich Nietzsche. Escritos Sobre História. Ed. PUC-Rio, Edições Loyola. Tradução de Noéli Correia de Melo Sobrinho.
Manchete de domingo: a perfeição existe.
Numa manhã de sábado um rapaz levantou cedo e com fome. Vestiu qualquer coisa, calçou as havaianas, apanhou umas moedas e saiu à rua de terra, ainda molhada da chuva gostosa da noite. Caminhou os duzentos metros que separam sua casa da padaria, esta de madeira e teto de zinco, pintada de verde pelo zeloso dono, amazonense do interior, que decidiu viver a vida mantendo seu pequeno negócio ao lado da imensa praia de areias brancas e água doce.
O pão ainda não estava pronto, então o rapaz foi até a esquina, atravessou a rua e caminhou pela praia mais oitenta metros até alcançar a água escura e límpida. Deu um mergulho. Mijou na água, tirou suas melecas, limpou a remela dos olhos. Deu uma cambalhota para trás, dentro da água, e mergulhou um pouco mais, para comemorar.
Depois saiu, voltou pela areia fofa e brilhante, comprou seu pão, que estava quentinho, pão de massa fina, e também queijo e manteiga. Contou as moedas, devolveu o queijo e foi para casa, molhando o pão na manteiga, mastigando, saboreando e deglutindo seu desjejum. Os pássaros cantando e as altas copas das árvores pelo caminho distraíram seu pensamento, ... até que chegou em casa de novo, terminou o pão com manteiga, bebeu água e saiu novamente à rua, contente pela vida ser, em certos momentos, simplesmente perfeita.
Pérolas da vida
Máximas da programação: não existe essa coisa de "Organizar ícones". Os caminhos devem se solidificar pela via mais rápida, aquela em que foram criados. A não ser em listas extensas, o que raramente é o caso, se as pastas, por exemplo, forem melhor organizadas.
Ainda chove.
Diamantes sagrados da programação: não há maior elegância que a simplicidade. - www.micosyen.com
Pérolas da vida: Não há segundo melhor gasto que o segundo pensando.
Pérolas da vida: Não há segundo melhor gasto, em verdade vos digo, que o segundo agindo.
Pérolas da vida: O pensamento é o elástico que impulsiona o estilingue da ação.
12:04h - Pérolas... - Pensamento não enche barriga.
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Adelante
Força de vontade de um lado,
apatia do outro,
descaso, preguiça e acomodação.
Pão e circo já dado,
cobiça do ouro,
soberba, pressa e desinformação.
Sossego, eu quero,
silêncio de mouro,
distância, paz e reflexão.
Um dia, quem sabe,
eu desco do muro,
e diga: - Pare! - ou talvez não.
Digo, sim, espero dizer,
reflita do futuro;
depois de refletir, ação.
Em nome da paz,
da luta, da força armada, nação.
(PS> Anelante (dicionário Houaiss): que respira de modo apressado e com dificuldade; ofegante)
2005 - 2007... Agora sim.
Deixa o meu amor chegar que ele já vem, deixa o dia nascer, deixa a vida vir e passar, deixa o tempo correr a alegria o prazer deixa o dia todo dia curtir o dia me deixa viver Lá vem a banda deixa ela passar sem deixar silenciar a orquestra dentro de ti lá vem o amor da minha vida lá vem ele que alegria lá vem a banda a sorrir, cantando e encantando a multidão a cantar Lá vem a noite estrelada confete de estrelas no carnaval estelar Deixa a noite sambar deixa o dia chegar deixa a viola tocar o samba do alvorecer Da madrugada que vira manhã do meu amor que veio chegou numa casinha de madeira com rio açaí japiim É festa de carnaval é dia de feriado é a alegria do grande encontro é cheiro de comida no ar é gosto de sal e de mar é bicho de pé japurá rio purus e maiá é rio preto é praia é passarinho é meu amor que chegou numa manhã de carnaval da floresta que não dorme da cidade que explode de festa até o dia raiar.
Acomodar-se
Acomodar-se é não aprender os hábitos epicuristas, seu desprendimento material, sua indiferença à morte, sua busca pelos prazeres simples da natureza, incluídos aí a degustação dos sentidos e da sexualidade. Sua despreocupação com os costumes e a busca da individualidade, para nela, no prazer em si mesmo, na liberdade em si mesmo, aprender o sentido do prazer e da liberdade nos outros. O homem já traz em si a semente do instinto, que ensina a viver em grupo.
Hoje o sistema precisa nos forçar a aceitar outro "viver em grupo", totalmente diferente do ancestral e instintivo "viver em grupo". Naquela época a violência era tolerada como a forma de controle que mantinha o mundo pré-progresso. O progresso só foi possível a partir do momento em que a indústria desenvolveu um novo mundo: asfalto, concreto, plásticos, vidros, ferro, metais, vigas, edifícios. A concentração humana, empurrada para o alto de arranha-céus, transformou a humanidade numa espécie de rato enjaulado. A violência deve ser reprimida pelo estado, a diversidade deve ser diminuída para instigar menos violência. Ritualizamos os conflitos, as disputas, e o canal do esporte passa o futebol de todo dia. Tudo por que acreditamos que são bons os produtos da indústria, o plástico, a música e a imagem eletrônicas, a comunicação instantânea e à distância.
Acreditamos que o progresso nos trouxe a um lugar melhor, apenas por que não sabemos mais viver sem seus produtos.
Mas eu vivi alguns anos afastados de vários desses produtos, e voltei mais forte, mais alegre, mais vivo. As pessoas que vivem longe desses produtos me parecem mais espertas, mais atentas, são muito mais vigorosas.
O progresso significa você deixar de usar seus músculos, seu corpo, para fazer uma determinada tarefa. Antes, caminhava-se, hoje, se vai de carro ou ônibus. Poucos são os que usam bicicleta, ao contrário da Europa e do interior do país. Por outro lado, viver numa cidade grande significa as boas universidades, o grande conhecimento, a grande história, a grande vida. Sim, sim, mas a grande vida, mesmo, está lá fora. Pegue sua boa escola, sua excelente universidade, e vá já correr pelo mundo. Muitos vivem do primário à pós-graduação dentro dos mesmos muros; certamente aprenderão menos da vida, por melhor que sua escola seja. Eu, pelo contrário, acredito que o fato de ter estudado também em turmas
ruins me deu uma idéia bem mais clara do que é o mundo.
Crianças não devem ser protegidas do mundo. Como dizia Thin Lizzy, as crianças são bem mais sábias
depois das guerras.
Mas caminhamos para um futuro do homem cinzento, pálido, fino, míope e sedentário, que terá todos os serviços a seu dispôr, pagos com o ganho por seus esforços intelectuais. Criaremos duas raças distintas, uma pensante e outra trabalhadora. Uma, cérebro forte num corpo fraco, a outra, um corpo forte numa mente simplória. Não criaremos, não - já fizemos isso há muito tempo. As duas raças jamais se misturam, a não ser nas novelas, e uma explora a segunda como sempre fez.
Os caminhos da Ética
Deseje aos outros o que você quer para você mesmo. Se queres riqueza, distribua a riqueza que houver entre todos, da maneira mais igualitária possível. Não há outra solução para o mundo de hoje. A violência, que na TV é apenas questão de policiamento e construção de penitenciárias, é um problema de desigualdade. Isso todo mundo já sabe, mas não quer ceder seus pequenos confortos, em troca da tranqüilidade.
A humanidade urbana perdeu a tranqüilidade de espírito, do corpo, da consciência. Perdeu seu equilíbrio, aquela serenidade que conhecemos dos antigos guerreiros, os assim chamados "índios", os antigos mocinhos do faroeste. Hoje somos trêmulos e doentes, preguiçosos e acovardados. Há quem prefira a proteção do governo. Há quem goste da própria proteção. A diferença é que os primeiros têm renda, posses, justamente o que querem defender dos segundos, ou melhor, daqueles dentre os segundos que façam mesmo questão de ter algo que terão de proteger depois. Preferem pagar um governo corrupto para ter algo mais que a multidão.
Mas há quem não queira proteger nada, a não ser a si próprio, e ainda assim, mais ou menos. Esses são andarilhos e sonhadores, os antigos idealistas, hoje chamados homens e mulheres das alturas, loucos, divagadores, inúteis ou, no mínimo, curiosos. Mas que ideal pode haver para o futuro? perguntam aqueles primeiros, os que preferem o governo e a lei. Prefiro pensar em como pode ser o mundo daqui a vinte, até cinqüenta anos, e trabalhar nisso. Apenas para manter a sanidade.
Os caminhos são poucos, parecem poucos. Retirem a TV da sala, e eles se ampliarão. Substitua a TV por uma estante, e busque livros para preencher o tempo, quando a família te cansar. Saia de casa.
Chegamos a uma época em que as pessoas não saem de casa porque é "perigoso". Qual o perigo, na maioria das vezes? Perder seus bens. Seu carro, seu relógio, sua virgindade. Tudo bem, mulheres são um pouco menos autônomas, mas a mente se prende às posses, mais que o limite do saudável. O que é Ética, então? Valorizar mais as pessoas que os produtos. Vivemos num consumismo medonho, e não nos damos conta que os brinquedinhos modernos só são acessíveis para uma minoria, que polui, suja e destrói o que era, até então, o único lazer que a maioria pobre tinha. Agora, não têm nada. E ainda assim achamos que o celular do rico vale mais que a vida do pobre. Não importa quem morra, sempre serão números. Um garoto foi arrastado por um carro, vários são arrastados por camburões, nem todos inocentes. -
Ética, hoje, deve significar não querer tanto para si o que outros não têm nem muito menos.
Ética
Nossa primeira rebeldia é a acomodação.
Nossa segunda rebeldia também.
Apenas a terceira rebeldia é um desafeto.
Bem poderia ser a décima
ou a vigésima-quinta,
mas se antes tarde do que nunca,
também melhor agir depois de pensar.
O que é, então, a acomodação?
Somos todos acomodados?
Que tanto?
Como agir?
Segundo a Ética, alguém dirá.
Mas o que é Ética?
Precisa mesmo uma Ética? Ou uma ética basta? Ou...
Cada pessoa tem uma ética conforme sua posição. O soldado deve tomar, o camponês deve fugir. O esperto precisa mandar, o ignorante prefere seguir. Valores humanos sempre significaram o que significaram para quem precisa fugir. Não foram invenção do século XX nem do Iluminismo. É apenas uma ilusão de ótica, uma máscara ministrada pela pasta da Educação. De qualquer forma, hoje a juventude que não conhece a história não pensa sobre o mundo como um
resultado. Sequer pensa sobre o mundo. Mas quando pensa, é através dos olhos da moda e da mídia, que encaram tudo o que vem do passado, dos anos 50, 60, 70, 80 e até 90, como ultrapassado e vencido. Como quem diz, olha essa banda, os caras eram muito bons para a época!
Como fã de rock, sou suspeito para falar. Mas ninguém chegou perto de Led Zeppelin, Black Sabbath, Deep Purple, Jethro Tull, Pink Floyd, Beatles, Doors... A história toda são ondas, um sobe e desce, e estamos passando pela parte baixa agora, em termos musicais. Há quem diga que não, que sempre há bons músicos por aí, e de fato há, mas onde estão?
A cultura das massas, como uma indústria, nunca foi tão grande, tão forte, centralizadora, concentrada, e rica como é hoje. Poderosa. Acho que a Internet tenha uma responsabilidade em democratizar o acesso à cultura, para que não sejamos vítimas do gosto musical das cabeças da Globo, FOX, CNN, e outra meia-dúzia de famílias que decidem o que é cultura para nós. Mas a Internet, no Brasil, ainda é para poucos. Pirataria ou rediscutir os métodos de distribuição?
Por que baratearam apenas o acesso ao receptor de TV? Por que apenas cinco canais abertos, dentro de uma das mais geniais invenções da humanidade? A ciência, afinal, não tem dois pés. Cria o que quer, e não vê, não tem como enxergar, os resultados daquilo com que brinca. Pura ingenuidade: os bons políticos sempre tiveram os grandes cientistas em suas mãos, com, talvez, raras exceções. Com a TV não foi diferente, com o rádio (hoje as igrejas detém a maioria das emissoras, enquanto rádios comunitárias são perseguidas e punidas por "formação de quadrilha"), a bomba atômica, o DDT e a talidomida. Alguém foi punido?
Mas eu falava de ética. Ou Ética?
Não podemos apenas deixar de desejar aos outros aquilo que não desejamos para nós mesmos. Precisamos acrescentar algo à velha Regra de Ouro, de Confúcio. Uma regra de bronze, talvez, ou de prata: Deseje aos outros o que você quer para você mesmo. Quem sabe pensar assim?
Um apócrifo
Ofensas 1:1
O que é mais belo que a vontade realizada sem ofensa a ninguém? Mas quantas vezes é a vontade suprimida, pelo medo de se perder algo maior? Qual é, então, a melhor de todas as sociedades? Aquela com menor número de ofensas.
Um duelo de espadas. No final o contendor desiste e devolve a espada à bainha.
Ofensas 1:2
O que não me ofende, pode não ofender a meu próximo, mas ofender ao mais distante! Ora, que distante mala!
Um bar podrão. O dono, gordo e velho, fala escancaradamente para a câmera, numa entrevista. A câmera segue do dono ao próximo, e deste ao mais distante. O mais distante, mostrado do ponto de vista do dono do bar, é um sujeito esquisito, que começa a reclamar de alguma coisa, e contorcer-se, e esbravejar sem autoridade, lastimando-se pateticamente como um marreco na neve. De longe, o senhor atira um tomate na cabeça do outro, que já erguia os braços e aumentava a voz.
Ofensas 1:3
O juízo de valor sempre será aplicado, mas raramente será admitido por completo, em público, sob a luz de uma lanterna, quem dirá do meio-dia equatorial.
Julgamento. Uma questão familiar. O juiz bate o martelo, em close, só se vê o martelo batendo, uma duas três vezes. Afasta-se do prédio para o alto, uma multidão em fadeout, juízos, um enforcamento? um enterro? um túnel! pessoas conversando, um homem negro sendo humilhado por seu superior, saindo ofendido - a luz em sépia. O superior, um branco, está cansado e abatido. Um carro sai do fórum, um Mercedes-Benz (close no símbolo como no martelo) - é o juiz, enquanto a família que era atendida no processo, negra, caminha alegremente pelo salão ensolarado rumo ao seu automóvel antigo.
Ofensas 2:1
Quero ofender a mim mesmo, tenho direito?
Ofensas 2:2
Para quê, em primeiro lugar, ofender-se? O que se busca nessa jornada?
Ofensas 2:3
Demonstrar a ofensa sentida, identificar sob olhares desinteressados que há uma ofensa no que foi feito. Agir como o outro, ofendendo-o, mas ofendendo-se no ato de baixar-se a tal ponto. O homem afastado, que não se ofende e nem aos outros, tem ainda assim seus próprios medos, mas não teme em público. Esconde-se e não cede. Este homem cresceu nos sertões das Amazonas, nas terras distantes de águas, palmeiras e fêmeas de peles nuas e perfumadas, e garanhões viçosos e jovens, e todo tipo de caboclo d'água, índio e sertanejo, garimpeiros e aviadores, proprietários e patrões. Nessas terras a ofensa era pouca, e dava-se cabo de uma vida. Hoje, ele tem os olhos serenos, este homem, e assiste a tudo impassivo, guardando para si e para os seus os seus elaborados rancores. Por que haveria de mostrar-se, quem já se acostumou a essa vida? Quantos têm o desejo de mudar? "Que percam para os mais fortes, para a resistência armada, tradicional e sagaz como os espíritos de nossos antepassados" - mas continuamos perdendo...
Ofensas 2:4 Ou não,
quero apenas me ofender, como que desafiando qualquer autoridade escondida sob as sombras das lianas que escurecem meu sub-consciente.
Ofensas 2:5 Quero
pôr em luta os meus mais remotos instintos, para torná-los sagazes e fortes. Quero ver o caos, de perto, para sentir de perto sua loucura e sua força.
Ofensas 3:1
Cansei de ofender a mim mesmo. Vou ofender agora apenas ao próximo.
Ofensas 3:2 Cansei de ofender
aos outros, vou agora apenas ofender-me, às vezes.
Ofensas 3:3 Cansei disso tudo e
foda-se.
Ofensas 3:4
Chegai, irmão, e descansai. Nesta casa há morada para todos, enquanto nos tolerarmos.
Ofensas 4:1
A sua água, próximo, me faz falta.
Ofensas 4:2
Há entre nós, caro irmão, um muro de diferenças devidas sobretudo àquilo que melhor lhe fizer dormir à noite.
Ofensas 4:3
Sim, mas temos sede. Nossas diferenças não permitem que você nos ajude? Chegou afinal o ponto em que os recursos não são mais suficientes? Eu satisfaço quem precisa. E muitíssimo me apraz que agora tenhamos que diminuir por completo os nossos caprichos, e lutar pra sobreviver. Defenda-se quem puder.
Ofensas 5:1
O tempo é uma caixinha de surpresas. Tic-tac-tic-tac-tic-tac... o tempo escorre como mel pela casca exposta da árvore, desperdiçado se não for encontrado pelo ser mais sortudo do universo, ou nem tanto. Enfim...
Ofensas 5:2
O tempo já não escorre mais, acumula-se.
Ofensas 5:3 E é
cada vez mais poluído, este tempo. Mais capaz, mas mais mordaz. Mais agreste o nordeste; mais frio o sul que o bairro central de Seul.
Ofensas 5:4
Ofensas fizestes vós, filhos da Babilônia! Chegou a tua hora, e não será sem motivo. Abusaste de tua sapiência em detrimento uns dos outros, sem a menor bondade! Eu, que sou um Deus, puno-vos não por não ter bondade, mas por
não tentarem se igualar a mim! Ao que é só bondade, e que brinca com a sociedade moldando-lhe como um jardim, uma poesia divina, uma brincadeira de criança - e tem-se em troca os olhares gratos das multidões. Mas é preciso subir muito alto, para isso, e o céu já sufoca de urubus, gaviões e harpias.
Ofensas 5:5
Queres dizer que não vais mais subir?
Ofensas 5:6 Quero dizer que
sufocam a diversidade. Quero dizer que subir pode ser, por vezes, embrenhar-se ou mergulhar.
Ofensas 6:1
Falta alguém ainda para ofender, meu filho?
A velhinha na porta do orfanato católico, uma boa e velha freira magra e pequena, amada por toda a comunidade. À sua frente um jovem com seus 12 anos: asseado, calças retas e cinzas, camisa limpa e bem passada, os suspensórios fora-de-moda. O guri leva a mochila à mão, como quem se vai pensando na vida e feliz por partir.
Ofensas 6:2
Falta sim, senhora.
Ofensas 6:3
Falta ofender esse porra-
o guri cai sobre outro, atacando-o com murros e pontapés. A senhora, vestida de branco, sai dando de ombros, erguendo os braços e perguntando aos céus que elemento da raça faz os homens tão singulares desde a infância. Ao redor, enquanto a câmera se afasta para longe e para o alto, tudo são nuvens brancas: - de esquecimento? de distância? de paz? de solidão? de acomodação, talvez? de algo que se desfaz, que é irrecuperável e só em ti existe? Branco de paz e conformidade com o instinto, mesmo o mais agressivo instinto, e também com o mundo e com a natureza, a beleza e a sabedoria do universo. Branco como o céu dos católicos, brancos. Poderia bem ser o negro da certeza imperial, da sábia tradição de ferro impressa até os genes, da bravura, coragem e desapego à mesma vida que cultuamos, mas que hesitamos e não bebemos das últimas gotas de seu cálice. Finalmente, o negro escurece a sala.
FIM.
Ofensas 7:1 O que não rói a casca, rói o miolo. -
De formigas a homens
Quem aí sabe o que é sentar-se no chão e observar as formigas? Que prazer mundano e simples! Que beleza a organização e a capacidade de comunicar-se, o locomover todas aquelas patas sem confundir-se! A Natureza consegue os maiores prodígios agindo como aquela estátua da justiça, às cegas. Na tentativa e erro, nas variações individuais que fazem um todo colorido e belo, nos pequenos e grandes acertos e defeitos de cada um de nós, vive a força da vida.
As menores formigas têm os mais diversos e intrincados sistemas de comunicação, regras, toques e movimentos ritualizados. Mas não leve a comparação tão a sério. Todas as formigas são igualmente ricas em códigos ocultos, bastam olhares à espera de começar a desvendá-los. Tudo ali é sentido, necessidade, objetivos e trabalho. Mas engana-se quem só vê isso. Um indivíduo fica horas imóvel. O trabalho da maioria é que alcança os resultados.
Ouvir o barulho que conseguem fazer insetos às vezes menores... testa-se os limites do universo, da audição e visão e tato. O mínimo e menor esforço conseguido é por isso mesmo um enorme esforço! Em outras palavras, qual a fórmula para otimizar os resultados minimizando as tarefas? É assim que trabalham formigas e homens.
Mas como se vive? Perdem os homens seus dias e noites atrás de venturosa tarefa, escondida entre as ondas de oceanos turbulentos e inacessíveis, labirintos lingüísticos.... esqueçam! As palavras jamais captarão a Essência.
Pois que há uma Essência, que nasceu em mim, que conheci e conheço a cada dia, mas só eu sei do que estou falando. Acho que é o que uns chamam Deus, outros inspiração, mente, eu, I, yo, ya, kamiyë, algo anterior, mais sábio, mais completo e superior em sua vontade, sua astúcia, seu grau de acerto e experiência, experiência milenar, supra-milenar...
Em uma palavra, Instinto.
Três pensamentos numa manhã de páscoa
A cada dia tomo o trabalho de me tornar melhor. Às vezes falho. Gostaria de dizer que já não existem verdadeiro e falso, tornaria o mundo mais fácil e a vida mais doce. Mas existem, e preciso divulgá-los e abrir os olhos de meus concidadãos. Mas não é para isso que vim.
Ontem busquei um amor antigo. Hoje insistirei, mas preciso me alimentar primeiro. Quais são meus planos para o futuro? Ser feliz, e construir algo. Ainda tenho tempo, e o dedicarei a não construir coisas de que possa me arrepender depois.
A ação e a reação regem o mundo. É o que se pensa. O que mantém, de fato, coeso o mundo é a inação. A igreja durou dois mil anos por ser
lenta.
No papel é melhor
A besta do apocalipse #1
Triste mesmo é ver puro consumismo nas capas e páginas da revista semanal mais "considerada" do país. Alguém na "classe média" ainda se preocupa com valores mais fundamentais? Alguém lê filosofia, questiona esse mundo escroto?
Monarca imaginário
Se eu fosse rei, proibiria o ar-condicionado, a não ser em museus, coleções científicas e processos industriais que o exijam. Proibiria também o celular, por razões óbvias. Todo o território tropical do meu reino seria reconstruído, e a arquitetura, unida com a natureza e o desenvolvimento sustentável, formaria meu único ministério. Até o exército, como glóbulos brancos, estaria sujeito ao ritmo dos pulmões, à decisão do cérebro... hum..... não.
O exército sou eu.
A ciência seria dirigida para o conforto e a economia. O luxo e a ostentação seriam crimes inafiançáveis. A simplicidade é a melhor arma, e os habitantes seriam premiados pela inovação de técnicas simplificadoras e econômicas. Por exemplo, como usar água quente num país tropical:
O clubismo
Por que o homem se agrupa ao redor de classes, clubes, times de futebol, igrejas, religiões? Chamemos essa propriedade clubismo. Eu prefiro ficar deitado, pensando. Há quem fique todo o dia em sociedade, falando, ouvindo, comendo, bebendo, rindo e se lamentando. Numa escala de solitário a social, a clubista, de 0 a 10 eu fico no 1. Mas por que há essa escala?
O ser humano é mais um macaco - portanto, social. É um estado plesiomórfico, ou seja, já veio pronta desde o ancestral. O que temos de apomórfico, de derivado, é a linguagem, a cultura oral. Muito depois a escrita.
A linguagem que os chimpanzés são capazes de aprender gira em torno de XXX palavras, com as quais constróem milhares de frases. Conhecendo-se 10% dos símbolos chineses é possível entender cerca de 50% dos textos.
O ser humano se agrupa para ficar mais forte, e a linguagem mais usada é a mais comum. Com 300 palavras já se conversa em inglês, e já podemos nos comunicar com virtualmente toda cultura do planeta. Não sei porque há essa escala, mas acho que tem a ver com a diversidade - uns preferem falar, outros pensar, e só.
***
Gosto de apenas deitar na rede e olhar pela janela, ouvindo e vendo os pássaros na mangueira do quintal. É essa mangueira quem faz sombra no meu quarto, dispensando o ar-condicionado. Gosto de me encontrar com as pessoas, mas não abro mão, ou melhor, decido 10% do meu tempo, talvez, para o convívio social.
E na janela escuto:
"Ê ô ô vida de gado,
povo marcado, ê
povo feliz!"
As pessoas gostam de esportes de equipe, talvez pela recordação genética de guerras imemoriais que nossos antepassados venceram.
Para nós é difícil se reunir sem falar, sentimo-nos desconfortáveis. Então precisamos de assuntos, coisas do que falar, e aí inventamos palavras e mais palavras, clubes e entidades, com normas e regulamentos e assuntos internos. Clubismo. A tv deixa todos a par do futebol, a igreja uma vez por mês e nem isso, ou todo dia ou semana, e já basta para deixar toda a sociedade impregnada com seus valores, as palavras que usamos, os nomes das cidades e das ruas, a moral, os direitos e os costumes, indissociáveis de nossa forma de ver o mundo e de considerar uma linha reta em algum lugar entre os normais e os doidos. Não há apelo pela diversidade, apenas às minorias - que preferem copiar as atitudes anti-indivíduo das maiorias, e abraçam uma série de dogmas e preconceitos. Como todo mundo, você poderia dizer. Mas os dogmas de grupos fortes vencem sobre os dogmas de cada um de seus dissidentes. A diversidade é admitida com desconfiança. Meus vizinhos jogam dominó e conversam o domingo inteiro, e também nas noites de semana, haja assunto!