Tuesday, June 10, 2008

Origem da moral

Muito se diz que a ética não pode vir da ciência, que deve vir de uma área à parte, algo mais filosófico (no fundo a religião não quer abrir mão de sua "galinha dos ovos de ouro"). Posso escutar suas palavras: "a ética não pode ser descrita ou medida cartesianamente como medimos os bicos dos pássaros e as sementes de que se alimentam".

Mas de onde então viria? E como explicar todas as semelhanças entre os povos dos lugares mais distantes e de todas as épocas? Por exemplo, como explicar que nalgum povo isolado do Pacífico seja estranho um indivíduo assassinar o outro apenas porque este pisou-lhe o pé? Ou, como explicar que um assassinato banal sempre desperta a ira dos parentes e amigos do assassinado? Não poderiam as pessoas simplesmente dar de ombros - caso não tivessem a moral como uma característica quase anatômica?

A moral ainda não foi ensinada como já vem sendo pesquisada, ou seja, como um fenômeno natural que evoluiu junto com os demais traços humanos. Onde estão os pontos homólogos entre o nosso comportamento moral e o comportamento dos animais? Como poderiamos mesmo esperar nos compreender ignorando os animais e nosso parentesco com eles?

Ou, para ficar na nossa espécie, qual a diferença entre um assassinato e um aborto? Se uma mãe, naquela mesma ilha isolada do Pacífico, decide que não quer o filho que traz na barriga, quem tem direito a contestá-la seria, no máximo, o pai da criança. Como ele talvez nem tenha certeza da paternidade, poderia nem se atrever. Mas os avós virem dizer à moça o que fazer? O cacique? Ora, se a mãe mata a criança antes do desmame, os avós achariam mais estranho, tanto trabalho para isso? E se a mãe mata a criança de seis anos, já quase tão forte quanto ela mesma, e agora com as amizades de outros irmãos e primos, com alianças e inimizades, egoísmos e invejas, com seu próprio modo de rir e sua habilidade para pescar ou para trepar nas árvores, com tudo que a distingue como um membro único na comunidade -- e não apenas outro bebê -- os avós provavelmente matariam a mãe, e talvez todas as suas crianças, na simples e compreensível necessidade de eliminar de sua pequena sociedade esses genes assassinos.

Origem da fé

A minha "fé" na ciência é o que me sobrou depois que eu eliminei progressivamente tudo o que era mais duvidoso. A sua fé na religião é o duvidoso primeiro, o não eliminado (por falta de alternativa). Sem ter o que pôr em seu lugar, você aceita o "deve acreditar". Eu não acredito em nada por dever, mas pelo sentido que faz. Não acredito a priori, mas a posteriori. As alternativas são: ciência ou religião. Para escolher é preciso estudar ambas (alguns conhecimentos úteis: cosmologia, química, física, evolução biológica, zoologia) e a história de ambas, naturalmente.

Sem essa que ciência e religião "não se sobrepõem", que cada uma trata de um fenômeno, de "uma parte da experiência humana". Ou deixemos os cientistas darem a palavra final sobre o aborto, o aconselhamento ou desestímulo populacional (nem controle, nem só planejamento familiar), os direitos dos homossexuais (comecemos pela sua natureza, aceitando a naturalidade do bissexualismo), as concessões das telecomunicações; e que tipo de estabelecimento lucrativo deveria pagar impostos, conforme a riqueza individual que gera. Tiremos esses assuntos "mundanos" das mãos das igrejas e da multidão de "não-praticantes" que as obedecem e respeitam. Um pouco de educação (chame de propaganda, se quiser igualar os discursos) faria enorme diferença.

O frio necessário do conhecimento

O que causou a loucura de Nietzsche foi provavelmente o isolamento. Quanto mais estudamos, quanto mais lemos, quanto mais descobrimos, mais nos afastamos da massa de onde viemos, mais subimos rumo a um desconhecido gelado -- subimos no sentido de um esforço contra uma gravidade psicológica -- mais afastados nos tornamos de nossos parentes e amigos.

A massa não tem preguiça de pensar. Talvez ela saiba instintivamente que o pensamento esclarece, mas também resfria. O trabalho para escalar o conhecimento não é pouco, e não apenas são poucos os que têm condições e oportunidade de empreendê-lo, como também são poucos os que têm coragem de enfrentar suas conseqüências. É como sair de casa num inverno nevado para cortar lenha. As crianças que ficaram em casa aproveitam o calor fornecido pela lareira, mas é o trabalho daquele que enfrentou o frio que tornou o fogo possível.

Em nossa sociedade, a grande massa (onde se vê gente de todos os níveis sociais) é feita desse tipo de infantes psicológicos (em biologia seriam chamados de "mentes neotênicas"): apegam-se ao recanto quente e aconchegante do preconceito religioso, desde que tenha alguém que dele se afaste para gerar-lhes o calor do conforto.

***

Pensemos de outra forma: e se ninguém se habilitasse a buscar lenha lá fora? E se fôssemos todos religiosos que pensam ser melhor não pesquisar nada, não descobrir, não questionar? Como desenvolveríamos nossas teorias econômicas, nossos comércios marítimos? Como consertaríamos os computadores, como manteríamos a internet funcionando (e a programação televisiva nos envenenando)? Como fabricaríamos alimentos e remédios para bilhões de pessoas? Talvez nos surpreendêssemos com um resultado melhor que o previsto, mas duvido muito que decidiríamos conscientemente por tal suicídio coletivo.

Pensemos agora da forma inversa: e se todos crescessem e cada um buscasse para si parte da lenha? Ou talvez se revezassem na tarefa, permitindo aos que ficassem a execução de outras atividades, jogos, criações artísticas, esportes, passatempos, ou até mesmo... descanso! Sim, creio que seria algo melhor do que o entretenimento passivo, alternado por obrigações produtivas desprovidas de sentido (como nas indústrias e no comércio), e coroados ambos pela comunhão com um fantasma cosmopolita arrogante, que nos dá todos os dias a pílula azul do esquecimento, e ainda costuma cobrar por isso.

Caridade? Façam uma caridade ao mundo inteiro, lendo isto ou isto .

Sunday, June 08, 2008

Produtividade e especialização

II. 1 29 [56] 383
"Os estudos históricos na educação. O jovem é levado a toque de caixa através de todos os milênios, como jamais o foram os gregos e os romanos. Além disso, se oferece história política a adolescentes que não podem absolutamente compreender o que é uma ação política, uma política comercial, questões de poder, etc.! É desta mesma maneira que o homem moderno percorre as galerias de pintura e assiste aos concertos! Ele percebe que isto soa diferente daquilo e é a isto que ele chama ter um 'julgamento histórico'. - A massa dos objetos é tão grande que só se pode sair dela embrutecido. A isto se junta uma superabundância de fatos terríveis e bárbaros, diante dos quais uma consciência mais refinada, quando podemos encontrá-la, só pode experimentar desprezo. Além disso, distancia-se o jovem da sua pátria, ensinando-lhe a duvidar de todas as idéias e de todos os costumes. Cada época tem a sua maneira de ser: 'pouco importa o que tu és'. O homem, em conseqüência, é determinado segundo o seu ethos [modo de vida], para bem ou para mal (quer dizer, grande): 'Segue livremente o teu caminho, mas o siga perigosamente, sem seres colhido no final'. Felizmente, a juventude é muito freqüentemente de tal maneira aplacada, que dela não se extrai nada de essencial, afora uma vaga estupidez: falta nela uma poderosa imaginação e, além disso, a massa de conhecimentos é muito grande, faz tudo submergir.
"Ninguém tem necessidade desta quantidade de história, como comprova o exemplo dos antigos; isto é inclusive extremamente perigoso, como demonstra o exemplo dos modernos.
"Vejamos agora o estudante de história! Ele cuidadosamente destaca do passado um pequeno capítulo, ao qual consagra as suas pesquisas; ele é agora um servidor da ciência, da verdade, que com toda modéstia atingiu o seu pleno desenvolvimento! A presunção erudita levanta um obstáculo­ à educação superior. Considero os jovens doutores em história como indivíduos que, do ponto de vista da cultura, não sabem contar até três e, no que diz respeito à maioria deles, não o saberão jamais: pois são já 'produtivos'! Ó Céus!
- Nietzsche, Escritos Sobre História, Ed. PUC-Rio/Ed. Loyola. p. 316-317.

Duas palavras mais para não dizerem que eu só falo mal da religião: produtividade e especialização.

O mal da produtividade é que já vivemos com muito mais do que precisamos, e achamos que a justiça será feita quando os pobres tiverem direito a viver a vida materialista da nossa classe. Ainda se refuta os problemas ambientais. Isso se observa todos os dias, quando se joga fora uma vasilha de plástico que poderia ter utilidade (digamos, de margarina), e se compra outra do mesmo tamanho "porque é mais bonita". Ou quando se queima revistas antigas "porque estão ocupando espaço", ao invés de dá-las a uma biblioteca (conheci uma dentista, que ganhava R$ 5.000 por mês, que jogou fora um ano inteiro da revista Caros Amigos porque "já tinha lido". Isso num município onde os professores são quase analfabetos). Mais exemplos? A dona-de-casa que passa cera na casa toda no sábado, depois liga a enceradeira que consome tanto quanto um chuveiro elétrico, para deixar todos os cômodos b-r-i-l-h-a-n-d-o! Depois fica com dó de chamar as visitas para o aniversário do filho, porque vai estragar todo o trabalho! (aparentemente o brilho da lâmpada vale mais que o gênio preso). Ou aqueles que vão de carro comprar um cigarro (1 quarteirão) e depois compram uma esteira elétrica para "perder a barriguinha". Ou quem liga o ar-condicionado no máximo todas as noites porque acha "mais gostoso" dormir com edredon. Se eu estivesse falando dos porcos capitalistas, mas estou falando das pessoas que trabalham com a questão ambiental no dia-a-dia, analistas ambientais, biólogos e outros cidadãos supostamente esclarecidos. E se você diz a essa gente que precisamos mudar os nossos hábitos, com urgência e em escala global, você é chato, radical, excêntrico, etc. "As Unidades de Conservação já estão aí para resolver o problema", ou "não sou eu que vou fazer diferença", ou ainda "ah, se a vida não tiver desses pequenos prazeres, que graça teria?" Ó Céus!

E a especialização intensifica o problema. As pessoas precisam se distinguir em seus respectivos campos, e isso as obriga a não ler muita coisa fora desses campos. Não pergunte a um ornitólogo sobre as frutas que a ave-que-ele-estuda come, nem a um economista sobre as externalidades do crescimento econômico. No fim, o objetivo da especialização parece ser a concorrência, e o objetivo da concorrência é o vencedor ter dinheiro para poder comprar um carro e não depender do péssimo sistema público de transporte. Mas, ora, se a concorrência fosse ignorada, e a especialização menos idolatrada, todos teriam tempo para adquirir um conhecimento mais completo, mais filosófico, mais holístico. E assim o tempo passado esperando o ônibus seria apenas uma oportunidade feliz para a introspecção ou para um bate-papo com as pessoas normais que ainda vivem fora dessa ânsia toda. Mas como os especialistas são, em sua maioria, nascidos em berço-de-ouro, não saberiam como se socializar com os pobres dos pontos de ônibus.

Brasil, terra do carnaval, do futebol e da inércia

II. 1 19 [38] 185
"A história e as ciências da natureza foram necessárias contra a Idade Média: o saber contra a fé. Agora, opomos a arte ao saber: retorno à vida! Refreamento do instinto de conhecimento! Reforçamento dos instintos morais e estéticos! (...)"
- Nietzsche, Escritos Sobre História, Ed. PUC-Rio/Ed. Loyola. p. 309.

E no Brasil ainda continuamos na Idade Média. As ciências da natureza são mal sabidas pelos seus próprios cientistas, quanto mais outros cientistas, historiadores, moralistas, políticos e intelectuais. Ainda se fosse possível pegar um atalho da fé diretamente à moralidade! Como seríamos bons! Mas não, somos preconceituosos, arrogantes e insensíveis. Os mais velhos, quando não sabem discutir com os mais novos, se retiram sem jamais entregar os pontos. Não aprenderam, infelizmente, a usar a razão, nem a se divertir com ela. Será que ainda carregam a maldição cristã de que toda diversão, como todo prazer, é pecado? É triste perceber que aquilo que todos os dias é defendido como o bem é, na verdade, a suprema manifestação do mal.

Claro que eles vão dizer que a caridade é ensinada pela religião, mas isso é de uma prepotência tão espetacular que só mesmo quem não conhece outras religiões e outras filosofias-não-religiosas (como o budismo, o taoísmo, mitologias indígenas ou o humanismo secular) acredita. Olhe em volta e veja se os mais cristãos são mesmo os mais caridosos. Mas é claro que você não vai olhar, você certamente já tem uma opinião formada sobre o assunto, certo?

Em suma: não existe um único argumento em defesa das religiões monoteístas que se sustente! Mesmo assim a inércia vence de goleada. Amém! E fiquem com Deus por mais alguns séculos ainda.

Vem com o papai, cristão!

II. 1 29 [41] 375-376
"Existe uma outra escola que quer levar em consideração tudo o que constituiu uma 'potência histórica' e que avalia o que é grande com esta régua: é 'grande' o que exerceu uma influência histórica duradoura. É isto que se chama confundir quantidade com qualidade. Quando a massa rude encontra este ou aquele pensamento, esta ou aquela religião completamente da sua conveniência e a defende com furor, então, o autor e fundador deste pensamento é visto como 'grande'! Mas por quê? As coisas mais nobres, mais elevadas, não atuam sobre as massas; e o sucesso histórico do cristianimso não prova felizmente nada quanto ao seu fundador, provaria antes algo contra ele; mas aqui o fato original parece ter desaparecido totalmente, deixando apenas um nome para designar certas tendências das massas e de numerosos indivíduos ambiciosos e egoístas."
- Nietzsche, Escritos Sobre História, Ed. PUC-Rio/Ed. Loyola. p. 293.

Lembra um pouco o Argumento Circular mais comum de todos os tempos: a Bíblia é sagrada pois é a palavra de Deus. Como sabemos que é a palavra de Deus? Está escrito em suas páginas, e uma vez que suas páginas são sagradas, é verdade.

COMO AS PESSOAS ACREDITAM EM ALGO ASSIM? Eu me belisco, mas não acordo.

A religião dos cientistas

II. 1 29 [57] 384-385
"Esta não deve ser a época da personalidade harmoniosa, mas aquela do 'trabalho coletivo'. O que significa somente isto: empregar-se-á pessoas na fábrica antes que elas tenham atingido o seu pleno desenvolvimento. Mas fiquem certos de que a ciência será logo arruinada, e também os homens submetidos a este trabalho industrial. A 'honesta mediocridade' se torna cada vez mais medíocre, o homem é mais sábio do que os outros num único ponto, mas é, em todos os demais, mais estúpido do que qualquer outro sábio do passado: in summa, infinitamente mais pretensioso. Sistema de carroceiros que decretam que o gênio é supérfluo: ver-se-á nas suas construções o fato de que eles só produzem como carroceiros, não como arquitetos. Para aquele que tem eternamente na boca os mandamentos: 'Divisão do trabalho!', 'Entrem no jogo!' etc., a este é preciso dizer alto e claramente: com querer a todo custo aguilhoar a ciência, vocês estão a ponto de arruiná-la, da mesma maneira que matarão uma galinha forçando-a por meios artificiais a chocar mais rapidamente. É verdade que a ciência progrediu, durante os últimos decênios, de maneira muito rápida: mas olhem então estes eruditos, estas galinhas estafadas. Não são mais naturezas 'harmoniosas'; cacarejam mais do que nunca, também os seus ovos são os menores que já se viu. Daí também a 'vulgarização' da história tão apreciada pelo 'grande público'. Isto é muito fácil para os eruditos, pois eles próprios pertencem, abstração feita de um pequeno campo, ao 'grande público' e compartilham de suas necessidades. É bastante para eles instalar-se confortavelmente, vestidos com o seu robe de chambre, e abrir a sua pequena especialidade a estas necessidades populares e não especializadas: este gesto cômodo será logo qualificado de 'modesta condescendência do erudito para com o povo', quando na verdade o erudito, na medida em que é mais canalha do que erudito, só é condescendente consigo mesmo. Criem primeiro um povo - não poderão jamais concebê-lo tão nobre e tão elevado!, mas o seu 'grande público', não poderia parecer mais vulgar!
- Nietzsche, Escritos Sobre História, Ed. PUC-Rio/Ed. Loyola. p. 294-295.

Dizem que falar mal da religião é chutar cachorro morto, mas a "raiva canina" ainda não foi eliminada. O maior mal da religião é fazer com que um século e meio tenha se passado desde essas palavras e até hoje a sociedade não as enxerga. A religião, sim, é a culpada, pois ensina o respeito à ordem, o não-questionar, o ter-de-acreditar. Daí nem os cientistas mesmos saberem questionar o sistema. "Deus é incognoscível", mas continuamos extraindo a moral dele, ou melhor, de seus parasitas. E mesmo quando nos dizemos "modernos", "espíritas", "católicos-não-praticantes", "espiritualistas-independentes-de-religião", "humanistas seculares", ainda seguimos a mesma moral religiosa que domina o ambiente cultural, pois acreditamos que "a religião dos outros deve ser respeitada". Os poucos que se levantam para dizer a verdade são silenciados, pois "certas coisas não se discute". Chega de mordomia! Para o inferno com a mentira. A religião é o maior de todos os males, e deve ser combatida dia e noite.

"Mas, coitados de nós, o que chuparemos enquanto a morre assustadora não vem? Quem vai nos contar histórias para dormir, agora que você nos quer fazer crescer? Não queríamos ter que crescer! É tão bom ter um confortozinho especial, e além do mais não estou fazendo mal a ninguém, a não ser àqueles que ataco e humilho mesmo sem querer, graças à minha moralidade retrógrada e mal informada, mas estudar é tão trabalhoso, você não pode chamar nossa ignorância de imoral só porque estudou."

Arrogante, eu? Apenas me pergunto: por que a maldita certeza, se dizem que Deus é incognoscível? Mistério, é só o que temos, mas na hora de atacar, de reprimir, de moldar a mente das crianças, assumimos o que a maioria assume, e com uma certeza que deixaria Jesus ruborizado.

A religião não é apenas inútil. Ela enfraquece o espírito crítico e anestesia a razão. O consolo que traz é o de desarmar um povo outrora autêntico e bravo. Um povo que já foi digno, e que hoje é um papagaio da razão (?) alheia, que não aprendeu a ler pois foi ensinado a "ler de tudo" - modernos! Pós-modernos! Quem diz "não acredite em tudo que lê" não aprendeu ainda a ler. "Confie desconfiando" talvez seja melhor. Enfim, não há fórmula simples para se ensinar a ler (muito menos a pensar!). E de qualquer maneira, depois que se aprende o funcionamento e o método da lógica, da ciência e da filosofia, há muitos livros que não devem mais ser lidos!

Na melhor das hipóteses, a religião é apenas um desvio de tempo e energia do que poderia ser a construção de um entendimento melhor entre as pessoas, famílias, classes sociais e povos. Mas nossa covardia e preguiça são maiores que nosso entendimento.

Saturday, June 07, 2008

Tentei, mas é impossível?

O caminho completo que ia de baixo até em cima não era o caminho completo.
O caminho incompleto do alto até em baixo é tão completo quanto o inverso.
O caminho reto não percorre as alamedas com suavidade, nem olha as estrelas, nem as folhas nas árvores.
O caminho claro ofusca a visão para os esconderijos com seus tesouros.
Os tesouros não têm utilidade ou função ou sentido ou forma.
O pó das estrelas não tem valor, nem seus filhos precisavam existir.

Mas existem.

O caminho tortuoso demora mais que o reto, e o tempo não se curva.
O tempo é constante, e o caminho curvo.
Nas voltas do caminho estão os tesouros guardados à luz das estrelas ou à sombra das folhas.
Os filhos do pó percorrem o caminho sem saber, e nele dão nome aos valores e valor aos tesouros.
Mas o caminho é o valor, e o tesouro é o caminho.
As folhas e as estrelas são filhas do pó, e o pó é o futuro e o passado.

O pó.

O pó se separa e se une, e nenhum grão seu é maior que o outro, embora alguns ventos não carreguem todos.
Os ventos são no caminho as ações do pó, e cada pó tem sua ação.
O pó sem ação é como o pó que age, exceto que seu caminho é mais curto.
Um caminho mais curto guarda menos tesouros, e seu valor é ainda menos conhecido.
O pó pode ser poeira ou areia, pode ser levado pelo vento e sujar o caminho, ou deitar-se ao longo do rio numa bela praia.
Mas o pó pensa ser o pó algo imóvel, imutável, necessário, rígido e mineral.

O pensamento.

Existe o pó e existe o pensamento.
O pensamento é do pó sem ser pó, é como o brilho da estrela que não é estrela nem pó.
E no entanto, o brilho não é da estrela como o pensamento é do pó?
E morrendo a estrela não cessa seu brilho, embora haverão ainda muitas estrelas?
E se o céu fosse tomado de infinitas estrelas, onde restaria a noite?
Quantos visões ofuscadas não mais enxergariam tesouros?

Tudo tem seu lugar.

Quando a onda passa a água não a segue.
O som é a vibração do ar, mas o ar não segue o som, ou seria vento e não som.
As ondas movem o mundo sem movê-lo, e o pó são ondas.
As ondas vêm e vão, e nenhuma onda existe depois que se foi, embora seu meio ainda esteja lá.
O pó retorna ao pó, e outro o substitui, como ondas são e deixam de ser, sem jamais deixar de ter sido.
O infinito é reservado ao pensamento, não ao pó.

Infinito.

O infinito é uma idéia, que é pensamento do pó.
Não é o pó pensamento, nem idéia, nem infinito. O pó é pó.
É breve, é sujo, é limpo, é longo, é estreito, é curvo, é reto, sobe, desce, são ondas, são vários, mas não são infinitos.
O pó não é infinito.
O pó tem o brilho do pensamento como as folhas nas árvores têm sua cor.
Depois que morre a árvore, a folha cai, muda a cor, e alimenta novas folhas em novas árvores.

É suficiente.

O pó é suficiente, e somos todos pó.

Macacos de pó. Macacos que falam idéias de infinito.

E ainda assim, pó.

Friday, June 06, 2008

Tao Te Ching 31-40

31

Exércitos são instrumentos sinistros
odiados por toda criatura,
por isso quem segue o Tao os evita.
Uma mente nobre, em casa,
valoriza a esquerda;
dirigindo um exército,
valoriza a direita.
Um exército é um instrumento sinistro,
não é o instrumento de uma mente nobre;
quando seu uso é inevitável,
a calma e a leveza devem prevalecer.
A vitória não é bela,
quem vê beleza na vitória
se delicia com assassinatos.
Quem se delicia com assassinatos
não pode alcançar suas ambições no mundo.
Eventos propícios favorecem a esquerda,
eventos nefastos favorecem a direita.
O segundo general fica à esquerda,
o primeiro general fica à direita,
poderia ser dito que estão em um funeral.
Quando os mortos são milhares
só podemos lamentar.
A vitória na guerra deveria ser triste como um funeral.


32

O Tao, eterno e indefinível,
simples, e embora pequeno,
ninguém no mundo pode dominá-lo.
Se um rei puder abraçá-lo,
tudo e todos o seguirão,
o céu e a terra se unirão,
e choverá licores
sem que o povo ordene,
alcançando a todos naturalmente.
No início surgiram nomes,
nomes já existem demais.
Devemos saber quando parar;
sabendo quando parar
podemos evitar o perigo.
O Tao é para o mundo
o que as nascentes e os córregos
são para o rio e o mar.


33

Quem conhece os outros é inteligente,
quem conhece a si mesmo é iluminado.
Quem domina os outros tem força,
quem domina a si mesmo realmente tem poder.
Quem está satisfeito com o que tem é rico,
quem segue em frente persistente tem ambição.
Quem não perde seu posto dura bastante,
quem mesmo morto não é esquecido tem longevidade.


34

O grande Tao é como uma enchente!
Ele está à esquerda e também à direita.
Todas as coisas dependem dele para nascer,
e ele não as evita.
Alcança seus objetivos sem se apossar deles.
Veste e alimenta todas as coisas
sem se tornar seu senhor,
pode ser encontrado em cada detalhe.
Todas as coisas retornam a ele,
e nem assim ele se torna seu mestre.
Por isso o chamamos grande.
Mesmo perto do fim ele não se engrandece,
assim ele se torna ainda maior.


35

Quem segura a grande imagem (do Tao)
tem todo o mundo a segui-lo;
seguem-no sem desejar o mal,
calmos, seguros e em paz.
Ofereça música e boa comida
e os visitantes permanecerão.
Fale sobre o Tao, e suas palavras
serão triviais e sem gosto.
Olhar não é o suficiente para vê-lo,
escutar não é o bastante para ouvi-lo,
usá-lo não o extingue.


36

Se você quer diminuir algo,
deve aumentá-lo primeiro;
se quer enfraquecer algo,
fortaleça-o primeiro;
se quer derrubar algo,
promova-o antes;
se quer conseguir algo,
deve dá-lo primeiro.
Isso se chama brilho súbito.
O flexível e fraco vence sobre o firme e forte.
O peixe não deve ser retirado do fundo,
nem as armas de um país devem ser mostradas ao povo.


37

O Tao eterno nada faz
e no entanto nada fica por fazer.
Se os governantes pudessem aprender isso
todas as coisas se desenvolveriam naturalmente.
Se desenvolveriam querendo agir;
eu chamo isso de simplicidade sem nome.
Mantendo a simplicidade sem nome
o desejo desaparece.
Sem desejo, calmos, tranqüilos,
o mundo todo se satisfaz.


38

A pessoa virtuosa não se considera virtuosa,
por isso tem virtude;
quem não é virtuoso busca não perder sua virtude,
por isso não a tem.
A pessoa virtuosa pouco faz,
e pouco deixa sem ser feito;
quem não é virtuoso faz muito
e deixa muito por fazer.

A pessoa boa faz o que deve
e não deixa nada por fazer;
a pessoa justa faz o que deve
e deixa sempre algo por fazer.
A pessoa moralista faz o que deve
e se não obtém resposta
força aos outros o seu desejo.

Quando o Tao é perdido, sobra a virtude.
Quando a virtude é perdida, sobra a bondade.
Quando a bondade é perdida, sobra a justiça.
Quando a justiça é perdida, sobram os rituais.

O moralista (o que idolatra rituais) é apenas a casca
da lealdade e da honra, é o início do caos.
Conhecer o futuro é a flor do Tao e o início da estupidez.
Portanto, o indivíduo verdadeiro se mantém
no cerne das coisas, e não na casca;
procura o fruto, não a flor;
deixa ir o outro e mantém isto.


39

No passado cada coisa obteve sua unidade:
a matéria celeste se uniu e se tornou clara;
a Terra se uniu e se tornou calma;
os pensamentos se uniram e se tornaram inteligência;
as águas das nascentes se uniram e formaram rios;
as criaturas se uniram e formaram a diversidade da vida;
os líderes se uniram e governaram o mundo com sabedoria.

Tudo isso vem da unidade.
Se a matéria celeste não estivesse unida,
seus pedaços ainda estariam espalhados feito pó;
se a Terra não fosse tranqüila, entraria em erupção;
se a mente não trabalhasse em ordem, perderíamos a razão;
se as nascentes secarem, os rios também secarão;
se as criaturas forem exterminadas, a beleza da vida se apagará;
se os líderes não se entenderem, suas nações sofrerão.

Assim, o valioso tem no humilde a sua origem,
o alto tem no baixo sua fundação.
Por isso os líderes chamam a si mesmos de
solitários, miseráveis e sem valor.
Isso não é o humilde mostrando sua origem?
Não é?

Portanto, a honra vem da não-honra.
Melhor que querer brilhar como ouro
é ser opaco e comum como as pedras.


40

O movimento do Tao é o retorno;
o uso do Tao é a entrega.
Todas as criaturas surgiram da existência;
a existência surgiu do nada.

Thursday, June 05, 2008

Nada ou quase nada

"Há em cada cidade uma tocha - o professor; e um extintor - o padre." - Victor Hugo.

Que falta faz o conhecimento! Quando converso com parentes que pensam e dizem que entre o crer e o não crer há apenas uma diferença de opinião, sinto pena deles. No ponto de vista deles a crença é a única opção correta, e sei que eles sentem pena de mim - prefeririam que eu também acreditasse. Se fossem evangélicos ou católicos temeriam que minha alma fosse arder no inferno. Mas como são espíritas, sentem apenas que eu terei que voltar à vida mais uma vez, na eterna ascenção espiritual que define a doutrina do espiritismo.

Mas o que haveria de lamentável nisso? Voltar à vida? Mais uma vez? Repetir os mesmos passos? Não sei se compreendo. Gosto demais da minha vida, gosto da aventura de poder conhecer o mundo, conhecer as pessoas, descobrir a natureza das coisas, da história, da ciência, do pensamento, da política. E se eu tivesse mesmo a oportunidade de reviver tudo isso, fosse essa repetição idêntica ou não, eu acharia ótimo! Sensacional!

Mas por que preciso definir logo a minha crença? Não basta viver com justiça, desejar o bem comum, trabalhar pelo que acredito correto e bom, tentar deixar o mundo melhor do que o encontrei? Se todos pensássemos assim, o mundo não seria um lugar maravilhoso? É claro que há pessoas e pessoas, umas com mais tendência para o bem do que outras, e é compreensível que queiramos mudar os outros, convertê-los aos nossos ideais. Mas, como dizia, que falta faz o conhecimento nesse processo! O problema da crença é se julgar correta antes de entender as alternativas. Muito das discussões éticas de nosso tempo estão atrasadas porque as pessoas não buscam o bem comum, mas o bem a partir de seus dogmas religiosos. Na questão do aborto, a vida da mãe - uma pessoa com um histórico de vida, sentimentos complexos, lembranças, pessoas que a amam, dores e alegrias - vale tanto quanto a vida de um amontoado microscópico de células - sem história, sem personalidade, em um certo ponto sem sistema nervoso, sem emoções, sem capacidade de sofrer, simplesmente indistinguível de um embrião de girino. Como matar algo tão simples poderia ser comparado a um assassinato, a não ser por pessoas tremendamente ignorantes?

E o tratamento dado até hoje aos homossexuais, como poderia ser diferente se as pessoas buscassem o conhecimento antes de tentar satisfazer seus deuses! O homossexualismo é uma parte da variação humana, e a verdade é que ninguém é igual a ninguém. Existe um medo enorme, infundado e até desumano de que o homossexualismo, se deixado à vontade, corromperia todas as crianças, até o ponto em que a família desapareceria, as pessoas não mais procriariam e toda a sociedade desmoronaria. Como podem ser tão ridículos! Ou, como é ridícula a ignorância. A compreensão da evolução biológica e dos instintos humanos torna evidente que os homossexuais nunca serão a totalidade da espécie. Não existe ameaça. O que existe é o sofrimento de milhões de pessoas ainda hoje assassinadas, torturadas, difamadas, envergonhadas, tendo que viver sua vida sexual escondidas, como se isso fosse um mero detalhe. Se assim fosse de fato, os homens e mulheres heterossexuais se casariam escondidos, e não com festas caríssimas. Mas apenas porque está escrito em um livro antiqüíssimo que o homossexualismo é errado, ainda hoje milhões de homossexuais sofrem devido à fé cega. Fé cega, faca amolada. O mesmo livro, diga-se de passagem, que condena à morte vários outros "pecados" hoje simplesmente ignorados, como trabalhar no sábado ou comer carne de porco.

Como faz falta o conhecimento! Pela falta de conhecimento científico a massa humana segue em frente acreditando que crer é uma virtude, ou que deixar de crer é apenas uma opinião como outra qualquer. Falham em reconhecer que a crença desaparece no exato instante em que se descobre como funciona. E essa descoberta não é "apenas uma opinião", mas a conseqüência natural de uma massa de evidências. Por exemplo, a exigência da fé, associada à imagem de um inferno em chamas para os infiéis, é apenas uma isca para propagar com mais eficiência essa fé fanática. A proibição do planejamento familiar (seja pela camisinha, pílula do dia seguinte ou aborto, seja por políticas públicas contra a superpopulação) é apenas uma artimanha - uma estratégia política - para aumentar o número de fiéis da seita. Quanto mais filhos, mais seguidores no futuro, mais lucro. Quem não enxerga os objetivos das grandes religiões não fez uma escolha ainda. Só podemos falar em escolha a partir do momento em que um número mínimo de fatos é conhecido. E para isso é preciso ler outros livros, dialogar com outras idéias - todas práticas "perigosas", senão pecados graves, dentro de uma religião que correria assim o risco de se extinguir.

Vejamos o espiritismo, uma tendência minoritária dentro do cristianismo, que se julga mais moderna, mais esclarecida, científica até. Uma pessoa se senta confortavelmente num ambiente propício (luzes, incensos, mantras, respeito e comoção da platéia). Após um ritual de auto-hipnose, começa a dizer com uma voz geralmente modificada aquilo que todos ali esperam ouvir - um espírito desencarnado. O que seria da religião sem seus rituais? Pergunte aos presentes com toda a honestidade: mas e se aquilo não for um espírito, apenas o próprio médium em outro estado de consciência? E se ele for apenas esquizofrênico? É claro que você os ofenderá, pois eles não estão ali para descobrir a verdade, mas para satisfazer sua necessidade de um espetáculo. Ou de consolo.

As pessoas que precisam da fé não são apenas fracas ou mal informadas, elas são humanas. A fé organizada é que é esperta o bastante para reconhecer esse ponto fraco e construir um império sobre ele - minando tudo que o ameace, como a educação científica, o pluralismo de idéias e o debate aberto. A maior motivação para alguém crer numa religião é encontrar justificativa (ou escapatória) para a morte. Mas não viveríamos melhor, com mais atenção e respeito, com mais reverência, se não houver nada depois dela? E o que seria do mundo sem a morte? A superpopulação já é um problema gigantesco, e graças a todos esses religiosos "misericordiosos" o problema tende a aumentar ainda mais. Todos sofremos ou sofreremos um dia pela morte de alguém muito querido, mas um dia é preciso erguer a cabeça e continuar a viver. Se nos reencontraremos ou não com esse alguém é uma boa questão, mas ainda não foi respondida. Enquanto esperamos para ver, podemos usar nosso tempo disponível para aprender um pouco mais sobre a natureza da homossexualidade, do instinto humano, do processo embrionário, da psicologia de massas, da história das religiões, da filosofia da ciência, das coisas que os candidatos às próximas eleições estão ou deveriam estar falando. Ao invés disso, a grande massa procura apenas se entreter, para depois abraçar uma religião qualquer que a livrará de todo mal, desde que acredite com força suficiente (quanto maior e mais duradouro o entretenimento, maior a força necessária - o pecado é o entretenimento, nem tanto a busca por conhecimento; afinal, o império religioso sabe muito bem que a busca pelo prazer é muito mais comum, e por isso mesmo uma alavanca para multidões de convertido$). Acreditar, eis a palavra-chave. E se outros sofrerem porque a opinião dos crentes foi injusta, infundada, parcial e intolerante, não há problema: basta nos arrependermos no momento que há de chegar. Mas o sofrimento já terá sido causado, e a injustiça quase nunca tem remédio. Não importa, é importante respeitar a religião alheia, mesmo que essa religião não respeite as pessoas. Como é?

Devemos mudar as coisas? Podemos mudá-las? Sabemos que as coisas mudam lentamente, pelo menos aqueles de nós que têm um interesse genuíno na história. E se as coisas mudam, é graças àqueles que preferem argumentar sobre os pressupostos de toda crença, do que deixar as coisas como estão. Os crentes tendem a achar que o mundo não muda, ou que sua religião é um porto seguro (não importa sobre a cabeça de quem caia a âncora). Mas há uma diferença entre não mudar nada e não mudar quase nada; uma diferença sutil, mas profunda. O problema é que é preciso mais conhecimento para enxergá-la do que a maioria de nós acha necessário ou tem disposição para adquirir.


Nota: Há tantos livros maravilhosos para ler, e os espíritas geralmente lêem apenas livros espíritas. Que tal ler "Deus, um delírio", de Richard Dawkins, só pra variar?