Tuesday, March 28, 2006

Não faz sentido...

pagar por programas, quando tantos programadores no mundo inteiro estão doidos para resolver nossos problemas do dia-a-dia, e ainda preferem a fama ao vil metal.

Pagamento inibe a criatividade

Viva o software livre!

Trabalhadores, estudantes e artistas tornam-se menos motivados quando alguma espécie de prêmio ou motivação material é oferecida em troca de um bom trabalho criativo. É o que dizem alguns estudos citados no site do projeto GNU, criador do sistema operacional livre Linux. Não importa se eles só estão puxando a sardinha pro seu lado, o fato é que eu acho muito mais prazeroso criar uma coisa só porque eu quero, mesmo que ela não tenha a menor utilidade.

http://www.gnu.org/philosophy/motivation.html

Sunday, March 26, 2006

Lições para todas as idades

Entrei no site www.cvvnet.org (CVV = Cristo Vai Voltar) para ler um trecho do Apocalipse bíblico. O site mantém vários estudos sobre diferentes partes da Bíblia, além de conselhos para o público em geral. Há uma seção com várias lições categorizadas por idade. As opções disponíveis são as seguintes:

Adultos, Jovens, Adolescentes, Juvenis, Primários, Jardim da Infância, Rol do Berço

Isso me deixou bem mais incomodado do que eu gostaria. De que adianta a Filosofia estudar com isenção e lógica todo o conhecimento humano, se o vírus religioso já está preparado para contaminar mais mentes desde o berço? Não deveria haver lições de Voltaire e Nietzsche também preparadas para os recém-nascidos? A verdade é que nós, os filósofos, justamente pela incerteza que é nossa maior premissa, não temos nem uma fração desse empenho que os religiosos têm em divulgar suas idéias. Quantos livros explicam as idéias "além do bem e do mal" para crianças? Se você conhece algum, por favor publique a referência nos comentários.

Visual mathematician

Acabei de fazer um teste de QI na internet e o resultado foi 135. É verdade que eu me acho mais inteligente que muita gente, mas esse negócio de medir inteligência com um número pra mim é uma aproximação tosca. Muito tosca, na verdade. O que achei interessante foi eles definirem o meu Tipo Intelectual (assim com maiúsculas) como Visual Mathematician. Segundo a definição deles:

This means you are gifted at spotting patterns — both in pictures and in numbers. These talents combined with your overall high intelligence make you good at understanding the big picture, which is why people trust your instincts and turn to you for direction — especially in the workplace.


Tá, parece aqueles negócios de horóscopo, mas não é que eu gostei? Às vezes é bom dar uma massageada no ego...

Saturday, March 25, 2006

Previsão

A tendência do mar no prazo de mil anos é subir; a da Amazônia é secar.

É o que muitas pesquisas dizem.

Caminhada em Manaus III

Em Manaus nada é proibido, quando se tem um pouco de coragem. No centro há um lugar chamado calçada alta, que é exatamente o que o nome diz. Suas casas têm uma vista privilegiada do rio Negro. A duas quadras da Avenida Epaminondas (e seus ônibus sobre o asfalto deformado, mais os camelôs e a multidão perene) começa uma região de rara beleza, principalmente os rapazes.

Atravesso a ponte e chego ao porto do São Raimundo, onde a moçada do interior se encontra para uma cerveja gelada perto d'água. Dali há uma escada e suas centenas de degraus, ou uma rua comprida de terra que deve ter ano que vai alagar. Lá no alto, casas familiares, o boteco mais inocente no mundo, e a bela paisagem de toda a vista.

Friday, March 24, 2006

Conceitos

1) Droga. Foda-se o Houaiss. Droga é tudo aquilo que pode viciar e em exagero (ou nem tão exageradamente) faz mal. Pode fazer bem também - isso não faz parte do conceito. Senão vejamos:

Todo mundo sabe que cigarro, bebida, maconha, cocaína, heroína e cogumelo fazem mal. Mas há algo de estranho numa humanidade que desde os tempos primevos sempre consumiu pelo menos uma coisa tóxica. Hipóteses:

1.A. Ao sermos expulsos do Éden, o consumo de drogas estava naquele pacote que o Arcanjo Gabriel saiu carregando sobre o ombro, só pra depois jogar no homem e na mulher assustados, com força, e xingar: "Se eu fosse vocês não chamava a polícia!"

1.B. Com a evolução da inteligência os seres humanos começaram a viajar em altas hipóteses malucas sobre a causa das coisas. Porque começou-se a perguntar: qual a causa disso? Humanos têm duas coisas importantes a distingui-los dos chimpanzés e outros animais, coisas que permitiram pensar em causas bem complicadas para tudo:
1.B.I - comunicar-se por palavras, que apresentam mais possibilidades de associação que os grunhidos, o que deve facilitar para guardar as coisas na memória;
1.B.II - associar símbolos, palavras, e fonemas, na verdade qualquer coisa, em cadeias potencialmente infinitas, criando assim longas histórias. Pode-se encadear causa atrás de causa atrás de causa atrás de causa.... até chegar a lugar nenhum. Assim inventou-se Deus. Uma causa primeira. Conclusão: as substâncias psicotrópicas, ou que de outra forma alterem o comportamento, sempre forneceram idéias diferentes das que a mente limpa conseguia conceber. Pô, meu, viajar é mó barato! Pergunte aos filósofos.

2) Roquenrol. Não tem explicação, foi só uma palavra que inventaram para marcar uma coisa que estava acontecendo, umas músicas meio parecidas. Mas é só isso. Agora; cada música, vai...

3) Sexo. Forma de misturar conteúdo genético; foi assim que surgiu, conferindo vantagens aos antigos seres que o praticaram, melhorando-o. Mas eu nasci 1979 anos depois de Cristo, e mesmo ele já entrou tarde nessa história. O mecanismo que faz misturar conteúdo genético não é nada simples, tente imaginar, e nenhuma empresa multinacional estava lá pra dar garantia de cinco anos. Em outras palavras, quem falou que todo mundo é igual? Sexo geralmente funciona, e precisamos nos contentar com isso.

Escrevendo em banho-maria

Quanto de poesia se põe numa prosa sem salgá-la? Porque escrever é como cozinhar, toma-se familiaridade com os ingredientes e aprende-se a misturá-los em ordem, vigiando o tempo todo.

O prato pode empolar, pode sair queimado ou insosso. Pode ficar salgado ou doce demais, talvez azedo ou amargo, esquisito, com a consistência errada ou pior: pode ficar sem graça.

Pois o segredo da vida está na graça.

Thursday, March 23, 2006

Caminhada em Manaus II

Tenho pensado em seguir ou não uma carreira. Com os anos ou nos tornamos senhores respeitados e elogiosos em suas carreiras, ou nos tornamos pessoas ainda vivas, ainda sustentadas pelo próprio trabalho, ainda independentes e lúcidas, mas por algum motivo desconsideradas nas listas dos grandes em alguma coisa, como se a vida se fizesse de fermento cujo objetivo é apenas crescer, crescer e crescer, para a apreciação alheia e nada mais. Sou respeitado pelos meus semelhantes, eu acho, porque tenho atitude. Se com o passar dos anos cobra-se do homem menos atitude e mais posição, ou fama, ou sucesso financeiro, não significa que qualquer dessas coisas traga a alguém qualquer felicidade maior que o simples caminhar sem rumo sob um céu azul de sexta-feira. Não consigo entender. Para mim a razão da vida está na passagem do tempo, nas distâncias que percorremos, euclidianas ou não. Principalmente as últimas. Principalmente a distância dos olhares, do olfato perfumado da pessoa amada, do momento em que o gozo substitui a realidade e transforma homens em anjos alados e sem peso. A felicidade é o caminho, e não há caminho único nem felicidade duradoura. Não há caminho único. A vida é como esta cidade e suas ruas, suas esquinas, seus guetos e subúrbios e castelos e espelhos. Nos vemos a todo instante, não como vemos os outros, mas com os olhos obsequiosos da sociedade, com olhos que nos devoram e às nossas ações, nossa história. Quem foi este homem que hoje caminha sem rumo, e o que ele representa à Terra - é o que querem saber. Não se pode abster de significado, de importância para os outros. Os sem-rumo, os eternos jovens rebeldes e inconformados, não têm direitos, não têm respeito, não podem ter o sossego dos justos e velhos donos de carreiras antigas e aprovadas, não podem se sentar à ponta da mesa entre seus pares, nem propôr o brinde que gostaria de propôr ao luar, ao cheiro da grama e da chuva, ao sorriso desconhecido que passou por uma janela de automóvel numa tarde deprimida.

Alguns homens caminham, outros apenas se locomovem em seus automóveis. É difícil encontrar compreensão; trata-se de um ouro ainda mais raro e valiosíssimo, embora não saibam os homens apreciar-lhe o brilho. Eu compreendo que os homens que andam diferem muito daqueles que se guiam em seus carros ou em meios de transporte de massa. Não buscam a mesma coisa, não têm o mesmo ritmo, a mesma respiração; não sentem um pelo outro a consideração que sentem por seus semelhantes. Caminhar é uma prece. Não se entra num veículo sem a finalidade de chegar num determinado lugar, ou ao menos de cumprir um certo trajeto, a não ser nas exceções de praxe, as raras e inevitáveis exceções de praxe. Ao caminhar não, podemos ou não ter o objetivo de chegar. Muitas vezes é o próprio mover-se, como se o movimento fosse para os pulmões uma espécie de motor, ou quem sabe para o ânimo. Aqui mesmo, nessa avenida, os caminhões devolvem aos meus pulmões a sujeira que devo ter contribuído de alguma forma para criar. Mas não fazem isso apenas comigo; também o fazem aos passageiros, aos rostos sóbrios e duros e taciturnos que lotam os vidros dos ônibus, poluindo suas vidas e seus olhares tristes como uma nuvem cinza urbana pesada e lenta, indestrutível e de difícil descrição, de impossível argumentação ou combate. Seus olhares ficam ainda mais pesados, mais vagos, mais foscos, na medida em que o Sol sobe e transforma a fuligem do trânsito em suor negro colado à pele. Eu também, mas eu ando avenida abaixo cantarolando uma canção, e o movimento ritmado das minhas partes parece que me liberta, parece que encanta algum gênio, algum deus ou demônio que me redime, e me faz transportar meu inconsciente para uma praia distante num tempo remoto, melancolicamente misturado às minhas memórias de tardes e manhãs ensolaradas, e mesmo não tendo a areia branca e os antigos amigos por perto, sorrio, pois a selva de pedra não me reterá ainda por longo tempo, e sei que não posso dizer o mesmo de cada uma das infelizes faces que cruzam meu caminho, certas que devem estar de seu destino traçado nas leis humanas e divinas, incapazes de fugir ao óbvio, ao certo, à cama quente e sufocante do cônjuge, à sanha voraz de filhos indiferentes, à família, à pátria, a Deus, ao inferno. Caminho e canto, certo de que pássaros me observam quietos enquanto respiram cansados o ar quente. Deixo-os voar, como as faces velozes que zunem ao meu lado, e sigo repetindo a canção que não sei inteira, entre um e outro rascunho incompleto de pensamento. É sexta-feira, e não sei onde vou parar.

Mais adiante uma avenida mais larga interrompe meu caminho arborizado. Do outro lado há ruas que descem rumo à baixada central da beira do rio Negro, no centro da cidade. À esquerda o grande boulevard leva de volta aonde vim. À direita leva para a região oeste da cidade, que desconheço. Na esquina uma banca sombreada vende sucos e salgados. Sento-me num banco do canto, de onde posso ver todo o movimento das duas avenidas, os jovens que vendem jornais e compram esperança à prestação, os idosos que caminham despreocupados, porque ficaram tão velhos? Por que só começaram a se despreocupar depois que as rugas já enfeavam-lhes a cara? O rapaz que me atende abre um largo sorriso e me pergunta o que quero. Não posso dizer tudo o que quero, e nem quero tanto assim, então peço só um açaí. Ficamos ali de trivialidades, ele batendo no liquidificador meu pedido, eu olhando os detalhes de sua nuca morena, o pescoço denso e firme, as mãos pequenas e retas, os dedos grossos. Ele repara e se encabula. Divido com ele meus pensamentos e ele os acolhe. Reparte comigo os dele, encabulado, atende outro cliente depois de me entregar o copo grande e suado. Bebo devagar. O cliente se vai e ele se senta. Diz que quer viajar, conhecer lugares, pessoas, viver. Ele está certo. Não, não viajou muito não, chegou do interior e trabalha duro, se diverte pouco, economiza o que pode e não tem filhos. Como ele pode não suar trabalhando o dia todo ali embaixo? Não sabe, acha que é acostumado, nasceu naquela terra quente, herdou a pele escura e a disposição de resistir, o passo firme. Percebo que ele traz em si a capacidade de produzir a felicidade em tantas pessoas que o mundo não pode ser uma roleta, um jogo de azar. Eu mesmo outrora fiz outras pessoas felizes, mas viajei e me mudei em busca do novo, e agora o novo me apanhou de calças na mão, fugindo não sei bem de quê, talvez do próprio novo, embora em busca do mais novo ainda, como se a novidade fosse me devolver o que o antigo me havia tirado, ou talvez o que eu nunca tenha tido de fato.

É difícil explicar o que queremos. Algumas coisas que tenho eu sempre quis, outra nunca. Outras quero sem saber se terei, e outras ainda é apenas questão de tempo. Mas o único desejo a permanecer, independente do que consigo, independente das possibilidades e oportunidades, é essa vontade de andar, de ir além, de continuar vendo o novo, esse flerte com o desconhecido, essa paixão pelo inédito. Não sei como as outras pessoas conseguem manter um cotidiano tão prolongado, nem sei se somos da mesma espécie. Penso se não me sentiria mais à vontade num grupo de caçadores-coletores, morrendo de velhice aos 40 anos, mas sem nunca ter tido a impertinência de me questionar a razão de tudo isso.

Caminhada em Manaus

Com a sandália emprestada eu descia a rua, a longa rua que separa a minha casa da avenida. Tomo este caminho todas as manhãs para ir ao serviço. Não importa que esteja trabalhando na repartição ou na faculdade, o caminho a pé que me separa desta última é longo, sem árvores, quente e monótono. Há na região várias indústrias e seus funcionários broncos. Mulheres e homens uniformizados espremem-se nos ônibus, alguns nos pontos esperando a condução, uns e outros arriscam-se de bicicleta em meio à multidão de veículos ágeis e inseguros. Eu caminho quieto, os olhos vorazes de um estrangeiro, a testa suada, os passos ligeiros. Meia hora depois chego ao meu destino. Hoje, no caso, o ponto de ônibus, que outra meia hora depois me deixará no meu destino. Ou deixaria, porque hoje não vou trabalhar.

Quando penso o que existe para se fazer numa cidade grande... Posso entrar em qualquer beco, virar qualquer esquina. Posso andar ou tomar um ônibus, qualquer ônibus, em direção a qualquer terminal, onde posso fazer conexões e me deslocar a qualquer, mas qualquer mesmo, ponto de um território imenso, onde moram mais de um milhão de pessoas, por menos de dois reais. Como teria reagido a essa idéia um antigo nômade da pré-história? Será que ele captaria o conceito contido nesse parágrafo, mesmo que eu passasse e repassasse demoradamente com ele cada palavra, cada frase, cada termo que fosse novo pra ele? Acho que sua maior dificuldade seria a palavra milhão. O que é um milhão? pensaria o cérebro primitivo, acostumado com uma caçada e uma refeição. Os dias todos iguais e diferentes, um depois do outro, apenas? As luas e as estações. Não entenderia quanto é um milhão de pessoas, nem se as visse reunidas numa grande planície, não poderia concebê-las como gente, como iguais.

Mesmo aqui, caminhando nessa longa avenida, não consigo concebê-los exatamente como iguais. Sei que somos da mesma espécie, e que estamos de alguma maneira conectados uns aos outros, e que por seis dessas conexões, dizem, eu chego a qualquer pessoa da face da Terra. Mas não hoje. Hoje são só ruas e casas, e corpos que vêm e vão. Pra mim eles não têm história, como eu também não. Hoje sou só caroço, só um pequeno hipotálamo flutuando sobre um passeio, dentro da caixa craniana de um corpo que não é meu, apenas me foi emprestado. Posso, de fato, fazer o que quiser com ele. Posso jogá-lo em qualquer rio, sujá-lo com imundas visões e lugares, posso dizer com ele qualquer improbidade, todo e qualquer desafeto que me vier à mente. Posso muito, mas não devo tanto. Ainda se se tratasse de uma rápida aventura, mas não descobri a maneira de me desligar deste corpo e assumir outro, inocente. Então não me sujo. Apenas ando e reparo.

A avenida aqui sobe uma suave colina até uma grande praça ao redor da qual os veículos circulam com seus fastidiosos viajantes. Passo a praço e sigo avenida abaixo. Agora há árvores na pista do meio, e a cidade já não parece tão má. Decido intervir com outro humano que passa pela rua em sentido contrário. Pergunto-lhe as horas. Não quero saber as horas, mas quero observar a maneira estranha com que ele se porta, como se dirige a mim com um sotaque exótico, uma postura que combina com o clima e suas roupas - sou eu o estranho. Já não lembro mais as horas, isso não me preocupa, apenas o seu passo rebolando grandes glúteos pelo estreito caminho.

Por todo o caminho que me separa do centro da cidade haverá ainda muitas pessoas que me olharão com um ar que eu não serei capaz de interpretar. Olharei de volta, a cada um com uma expressão no rosto, testando suas reações. Mas é um teste sem possibilidade de avanço científico, porque não sei mais quando a reação de cada outro foi fruto da minha expressão ou de sua própria disposição. Persisto olhando-os.

Cruzo uma avenida e uma ponte. Sob mim um rio imundo faz uma curva e passa ao largo de uma pequena reserva arborizada. Já conheço esse lugar, é um parque até extenso, embora estreito. Uma pequena faixa de vegetação nativa ao longo de um rio um pouco menos poluído que este, os dois se unindo para formar algo maior, mas nunca pude observar se mais claro ou mais sujo. Poderia olhar agora, o sol ainda está baixo, mas o céu está hoje tão azul, tão limpo, tão musical, que cada passo que dou me faz querer dar outro, libertar-me através do movimento de vai e vem das minhas pernas, como se fossem uma pequena máquina de extrair pecados, ou que se pensa e se acostumou chamar de pecados, apenas por serem as pequenas imperfeições de cada um. Todos os que vejo na rua têm suas imperfeições. Elas são visíveis externamente, porque haveria eu de pensar que não as teriam também por dentro? E pior, por que alguém julgaria honestamente haver os homens de melhorá-las para depois da morte, como se alguém fosse esperar com bolos e apitos? Não entendo os homens, sinto-me como se viesse daquela mesma época do meu amigo nômade, que varava os desertos e os sóis e as estrelas até chegar a qualquer lugar que não conhecesse ainda, numa eterna aventura.

Mais adiante um beco desce tortuoso e íngreme na direção de um caminho estreito de tábuas. Decido conhecê-lo, já que é uma sexta-feira e os ânimos começam a preparar-se para as festas semanais. Ao longo do caminho portas abertas ou fechadas com grades me deixam ver o interior dos lares humildes. Pessoas conversam nas portas e nas janelas e parecem sentir menos minha presença que os caminhantes da avenida; ou será só minha impressão? Crianças carregam e são carregadas por seus velocípedes e bicicletas. Os pais estão no trabalho. Eu não tenho filhos, e por isso não preciso estar no trabalho. Mulheres solteiras e casadas me olham com seus olhos ágeis. Olho-as e sinto em algumas uma disposição que eu não tenho. Sigo em frente e desço até as tábuas, que formam um caminho, agora entre paredes de tábuas; antes eram umas de tábuas, outras de alvenaria. Sob as curvas e entre os desvãos formados pelas esquinas vejo cortes de água, suja , naturalmente, mas interrompida aqui e ali por uma e outra canoa de madeira, úteis como os carros lá em cima, mas menos arrogantes.

Em uma das esquinas, onde um caminho de tábuas suspensas ergue-se acima do primeiro e leva a três casas mais afastadas, isoladas no meio do alagado, um homem colossal está sentado. Conversa com uma mulher enquanto costura sua rede de pesca. Penso se ele caberá em alguma das pequenas canoas que consigo avistar nessa que é a maior abertura disso que devem chamar de um pequeno bairro bastante diferente dos demais. Imagino que sim, e mais uma vez louvo a água como meio de transporte barato, seguro e agradável. É claro que fora bem mais agradável no tempo em que era limpa e sem cheiro, mas ainda hoje seu cheiro não é, às narinas daquele enorme pescador, mais desagradável que o cheiro do asfalto, gasolina e borracha queimada das ensolaradas avenidas. É possível que esse homem não precise sair das redondezas da sua casa para pescar o sustento e crescimento da família. Mas já estou numa escada após outra curva, e tanto sua casa como suas preocupações já não me são mais visíveis. Alcanço com alguns passos o asfalto de uma rua convencional, arborizada e inclinada, com casas maiores e quem sabe, mais antigas. O pequeno bairro não tinha mais que uma rua de madeira, suspensa sobre um alagado e isento de visitantes curiosos e insatisfeitos, a não ser eu mesmo. Aliás, satisfeito.

Sunday, March 19, 2006

Espiritualidade

A natureza que contemplo não está ao alcance da maioria dos homens. Nu em uma cachoeira, quilômetros distante do próximo homem, entre animais, plantas e a música do universo, sinto-me o mais afortunado humano a contemplar o mesmo imenso céu azul. O progresso deveria ser permitir a todos presenciar a soberania natural ao menos uma vez. Sentir-se parte do todo, sem barreiras físicas, sem roupas, sem guias ou roteiros - apenas o corpo e a natureza, nus e sinceros - esta é a Revelação, este o verdadeiro sentimento religioso.

Sin City

Acabei de ver o filme. Sensacional.

Saturday, March 18, 2006

só um comentário...

Depois que eu fui perceber, não parar no buteco pra tomar cerveja; não ficar batendo cabeça com as mesmas pessoas e suas mesmas cabeças falantes; não beber mais que uma única, gelada e ouvindo AC/DC garrafa de cerveja, tudo isso me deixou de muito melhor humor.

Discurso

Enquanto falava as bocas e os olhares piscavam na minha direção. O auditório não estava cheio, mas havia gente na oitava fila. Enquanto falei, muitos assistiram, alguns perguntaram e eu respondi de acordo. Um gordo da primeira fila ajudou nas respotas, ele que conhece bem a região. Geralmente é assim, a gente vai caminhando e as pessoas ajudam. As pessoas são solidárias. Por que parece preciso escrever isso? Será talvez porque o mundo não é? Solidariedade é um conceito e tanto! Onde terá surgido, quando pensamos evolutivamente? E se pensarmos neurologicamente? E segundo a interpretação de Oscar Magrini? Ou a do Papa? De Roberto Carlos ou Jesus Cristo, talvez? Porque segundo a minha, deixe-me ver, pensando bem, hoje eu vi coisas que me agradaram. Se eu pensar mais um pouco eu posso achar que não vejo essas coisas todos os dias, atos de hospitalidade, de respeito, solidariedade mesmo; mas vejo, sim. Então o mundo não vai assim tão ruim, e acho que deveríamos acreditar um pouco mais nisso. Maldita TV e seus noticiários de guerras do outro lado do planeta, de mísseis invadindo minha sala de estar, durante a janta. (O Houaiss registra janta como um, como se diz? vocábulo? um substantivo feminino de uso informal. Será que só se diz em casa, no aconchego do lar? Se eu for a um restaurante pedir o que tem na janta ou qual é a janta o garçom me corrigirá?

- Garçom, a janta está fria!

E o garçom friamente:

- Jantar, senhor.

Eu janto sim, como a janta com vontade, aliás, a que minha mãe fazia era louvável, digo, é ainda, eu é que não moro mais lá. Ô vontade de comer um trem que minha mãe fazia! Vaca atolada. Estar morando longe de casa tem um mar de coisas, mas não tem a vaca atolada da minha mãe...)

A noite foi feita para uma luz que pisca, uma estrela, um aparelho televisor. Está inscrito não nas estrelas, mas no nosso genoma humano, naquele livro que os geneticistas abriram, eles dizem, mas que não leram ainda muita coisa, está lá escrito: a noite foi feita para uma luz que pisca, uma estrela, um aparelho televisor.

A graça de nosso povo reside naquele sorriso educado e jovial, algo maroto, saudável e franco, de quem sabe a música toda da propaganda.

Eu gosto muito mesmo é de caixa d'água. Toda caixa d'água, como tende a ser alta, é um lugar ótimo pra trepar e olhar a vista lá do alto. Quando guri eu gostava de trepar em goiabeira, embora até hoje não goste de goiabas. Goiabada, sim, e com casca, mas goiaba não vejo graça. Olhe que não tenho nada contra, não me entenda mal, não tenho preconceito, nem pós-conceito, nem nada politicamente incorreto, não, é mentira! Me solta! Ei! POW! Ai minha orelha, caralho, sai fora!............................................ai......................................ui.................pronto... foram-se.

Sim, goiabada. E o queijo minas então? Molinho, meio aguado, e macio. Bem alto e redondo, e branco também. Com aquele quadriculado em cima da marca imagino do que eles usaram pra achatar ele daquele jeito. Como será? Lembro do gosto, minha boca chega a aguar...

E o refrigerante Real? Guaraná Real? O melhor da Amazônia!
- desculpe, não podia fazer propaganda?

Por que as pessoas não têm muita paciência com quem fala bobagem? Tem bobagem repetitiva e bobagem original. Tem umas meninas que gastam tanto tempo em serem sérias que parece que não riem nunca, só das bobagens sem criatividade que os outros falam, geralmente o namorado. Ou as amigas e os amigos mais íntimos. Depois os conhecidos. De estranhos, não. Só se os outros rirem.

Janta, sim, meu povo sempre falou da janta - substantivo feminino - quem falou que dicionário é regra? - E aqui eu vou concordar com o Chicão: uma cultura é um povo. Mais: um jeito de falar é a alma desse mesmo povo, ou coisa que se compare.

Friday, March 17, 2006

Preciso sentar e jogar o lixo pra fora. Levantar e varrer o quarto, arrastar umas coisas, arrumar a estante e providenciar um guarda-roupas.

Porque as vezes é preciso ao homem parar e silenciar um pouco? As vezes é preciso remoer-se, procurar e ficar quieto. Só. Sentei o olhar sobre uma mesa do outro lado, enquanto observava as coisas com e sem forma; percorria o olhar pelo lugar.

Um conhecido me chamou pra sentar, e eu respondi não.

-Quê isso? Por que você não vai sentar?

-Porque não vai ter nada que você possa falar que vai me interessar.

O outro engoliu seco; mirou o infinito. Tornei a assistir o clipe. Saboreei minha cerveja gelada sozinho, egoisticamente. Depois, já esquecia o que houvera, e continuava apenas. Vivo.

Há momentos que a memória é melhor andar desligada. Este não é um deles.

Thursday, March 16, 2006

A religião foi o tiro de misericórdia do nomadismo.

Tuesday, March 14, 2006

A humildade é como uma semente, se não brota fica cinza e puída.

Monday, March 13, 2006

A certeza é a pior das pérolas.

Sobre programação zoológica

A hierarquia de objetos do mundo da informática pode descobrir
e traduzir as hierarquias da natureza.
Posso copiá-la em alguns detalhes,
mas jamais em sua beleza.

Rubem Braga I

"Deito-me na rede,
olho as nuvens vagabundas.
Creio que aquelas que estão
paradas lá longe,
branquinhas, espichadas
como franjas, se chamam
cirros; e essas gordas,
brancas, que brilham ao sol
aqui mais perto, se chamam
cúmulos. Mas não é preciso
saber seus nomes; deixo-me
levar pela fantasia de suas
esculturas, e vou vagando
ao sabor de seus caprichos.
Direis que essa ocupação não
é construtiva; responderei
que estou contemplando
o céu da minha Pátria.
Sempre é algo de nobre
e afinal há momentos em
que a gente se cansa de olhar
a terra e os homens."

da crônica "Na rede"

(Quem me dera ter escrito isso. Pensando bem, que bom que pude ler isso.)

Brokeback Mountain

Acabei de ver Brockeback Mountain, e não podia deixar de escrever sobre esse filme. Há dez anos eu saía do serviço depois de furtivamente olhar se havia algum filme gay em cartaz. É claro que existe uma categoria de filme diferente dos filmes comuns, destinada especialmente ao público gay, que fala sobre a vida gay, os problemas que só os gays enfrentam, e que poucos não-gays sabem que existem ou chegam a pensar com mais atenção. A diferença é que naquela época esse "tipo" de filme não passava no grande circuito, apenas nas salas mais cults da cidade grande e cosmopolita que é Belo Horizonte. Ainda assim a vida gay lá não era tão aberta como é hoje. Voltando ao filme, é de longe o melhor filme gay que já assisti. Talvez o melhor que assisti naquela época tenha sido um sobre dois garotos que se apaixonam, moram na mesma vizinhança pobre de periferia, e descobrem que existe um mundo paralelo, um gueto, onde é possível não se envergonhar pela preferência sexual diferente. Brokeback Mountain lida com o mesmo assunto, a aceitação - a auto-aceitação do cowboy tímido, no caso.

É estranho assistir à reação das pessoas, principalmente mulheres, ao filme. Há cenas que podem ser consideradas quase explícitas, mas têm menos conteúdo erótico que a novela das oito, é a diferença o que espanta. Uma amiga chegou a achar o filme bobinho, porque afinal uma história de amor é uma história de amor, e de fato são todas iguais ou muito parecidas, se alguém consegue abstrair a masculinidade de ambos os envolvidos.

BM é um filme gay, é uma história de amor, e muito mais. Fala sobre a vida desperdiçada, sobre duas décadas de café com leite sem açúcar quando havia um mundo à disposição, mas fora do alcance para quem vive numa sociedade dominada pelo medo, pela proibição explícita de comportamentos "desviantes". E o pior é que a história ainda se repete, e continuará se repetindo muito ainda.

O filme fala de escolher o que somos, de aceitarmos nossas vontades mais profundas, por piores que sejam. O cowboy que se casa e tem duas filhas vive uma vida de merda porque não pôde escolher ter a sorte de um amor tranquilo. O mais idílico da história, tirando o cenário Marlboro, é a própria existência de apenas dois gays, a diferença das metrópoles de hoje, onde preferimos fugir do mundo natural para encontrar mais pessoas, para fugir da solidão, para poder ter a chance de encontrar alguém que nos satisfaça, mas onde no final sofremos da mesma megapopulação e da incapacidade da maioria em manter um relacionamento.

Se 10% das pessoas são homossexuais (e alguns acham esse número alto), haveria numa festa, por exemplo, nove vezes menos opções de parceiros para mim do que pra você, se você for heterossexual. Uma história de amor onde dois rapazes livres dos vícios dos guetos gays, livre dos preconceitos modernos das grandes metrópoles - sejam eles a vida noturna das baladas, a cultura massificada do mundo gay pop, os trejeitos e afetações das bichinhas de todos os lugares - uma tal história apenas me remete ao tempo em que eu era ingênuo, quando minha necessidade de viver não era ainda revestida de uma certa cara-de-pau que desenvolvi para aumentar minhas chances na roleta da felicidade.

Talvez seja como a história do príncipe encantado, mas aqui ninguém foi feliz para sempre. Ainda assim , o apelo sensual do filme é esse encontrar alguém como você, uma alma gêmea, e deixar existir nisso um romantismo que abunda, mas não chega, na minha opinião, a ser exagerado. Falem o que quiserem, se o romantismo hetero vai de mal a pior, só por estar batido, o que não dizer dos gays e suas baladas metropolitanas com tanta gente e tão poucos corações limpos?

Nada vi de pior que pessoas que não se aceitam como são, por medo. E quando isso significa perder a mais bela proposta de uma vida a dois, como poderia ter sido no filme, preciso admitir que as lágrimas rolaram, embora com gosto.

Todo homem no fundo é uma criança. Dá pra ver isso na cara do cowboy tímido, sua vontade de viver quando os dois se descobrem pela primeira vez numa barraca no meio do mato. Dá vontade de consolar aquele sorriso desejoso, aquele furacão indefeso ante o poder do amor. É tudo o que o outro queria, mas a vida, a sociedade daquele lugar e época, como tantos outros, reduziram a pó os seus sonhos nada mesquinhos. Sonhos como os de todo mundo, mas que os héteros só entendem e não ridicularizam nem consideram leviano quando se trata de seus iguais. Que assim seja, e o mundo permaneça dividido, mas que ao menos tenhamos o mesmo direito de viver o que acreditamos, cada um na sua.

Wednesday, March 01, 2006

O Carnaval

O carnaval é antes de tudo uma festa religiosa e por isso eu acho adequado fazer uma penitência. Todos os anos eu me penitencio no carnaval, com um severo jejum de quatro dias. Alimentando-me apenas de líquidos (e comendo uma ou outra porcaria, porque também não sou santo).

Os líquidos que compõem a minha dieta nestes dias consagrados consiste principalmente de derivados de vegetais, do lúpulo e da cevada, por exemplo. Como bom Franciscano, prego a modéstia, a humildade e abdico do conforto, andando noites inteiras em procissões completamente abarrotadas de gente e com uma música religiosamente hipnótica, acompanhada de diversas danças e rituais sagrados, não apenas com um íntimo regozijo espiritual, mas na esperança de encontrar algum santo. Já não falei que sou um homem religioso?

What about respect?

The philosopher is the seeker of knowledge.

He should disrespect some things. Many of them, if not them all, at least once.

fear

What do I fear?

I fear time.

Or don't I?
Why should I?

I fear the others, no actually I don't.

I fear the fall of the beautyness will come from mankind.