Ora bolas...
A selva de pedra é a moderna reprodução dos mitos e medos primitivos da humanidade. Um paradoxo: ao mesmo tempo em que se cultua a tradição, aspira-se pelo moderno - absorvendo apenas o pior de cada oposto. Aponte-me um valor tradicional que seja útil ou de alguma outra forma benéfico, e eu te apontarei três valores maléficos. Aponte-me algo que a modernidade trouxe de bom, e eu mostrarei ao menos duas conseqüências nocivas.
O telefone celular. As pessoas sentem mesmo uma urgência de comunicação? Ou é apenas um fetiche tecnológico? Em casa, o almoço de família se dá em frente à TV, todos calados. A janta, idem. Antes a conversa à toa era com qualquer um que estivesse próximo, agora é com os distantes, com os amigos antigos, com o estreito círculo do catálogo de endereços em cristal líquido. Pouco a pouco perde-se o conceito de comunidade, aquela coisa física, palpável, das pessoas de carne e osso à nossa volta. Talvez em breve essa palavra nem exista mais.
A Amazônia. Mesmo sendo metade do território brasileiro, os habitantes da outra metade preferem ir para a Europa, buscar o que consideram "moderno" e o que consideram "clássico". Sua origem está lá, não aqui. Da Mata Atlântica só sobraram manchas, o Cerrado viu os tratores expulsarem seus últimos filhos. A Amazônia ainda guarda algo do que é "clássico" aqui, do que é parte da história de um país que não se considera como tal. O Brasil "desenvolvido" não sabe onde fica seu umbigo, vê apenas o umbigo dos outros.
Considera-se pobreza uma vida ribeirinha, mesmo quando é preciso erguer muros cada vez mais altos e viajar apenas raramente para conhecer um rio de águas limpas. Considera-se pobreza a vida no campo mesmo quando não se tem tempo para olhar o horizonte, mesmo não tendo restado um horizonte, ainda mais um Belo Horizonte.
A água é uma coisa tão trivial que se prefere Coca-Cola. Quando precisamos de água, abrimos a torneira e esquecemos todo o caminho por trás disso.
Ora bolas...
O vôo grande
Venta muito e um carro passa em alta velocidade. São dois homens, em silêncio. Estão indo para um bar afastado da cidade. Passam em frente ao quartel, próximo à fronteira, onde muitos jovens sonham futuros de glória e respeito, e muitos sairão sem nada, apenas com histórias para contar.
Como a história do guianense que mudou de país para conhecer o mundo, e acabou conhecendo ali naquela cidade um mineiro da capital, e acabaram formando uma grande amizade.
Conheceram-se no bar escondido das vistas, escuro, contaminado de glórias podres e jovens inocentes, mas a inocência é sinônimo de juventude, não se pode dizer pessoa inocente que não seja jovem, pois a velhice acaba a tudo isso corrompendo, há ali também pessoas tristes querendo esquecer, querendo manter a esperança de um dia sair dali, ou então conhecer uma pessoa verdadeira.
Uma roda de amigos jogava sinuca, enquanto dois conversavam a um canto.
Um deles era o mineiro. O guianense ainda comprava uma garrafa de cerveja e retornava ao centro da casa, onde acabou passando pelo mineiro e o reconheceu. Melhor, reconheceram-se ao mesmo tempo.
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A grandeza de um povo heróico em formação, de heróis de carne e osso, de pessoas parecidas com os heróis que conhecemos do dia-a-dia, das pessoas fortes e sorridentes, que sem esforço acomodam qualquer visita apenas pela sua presença. Conheci pessoas assim, a postura ereta, a voz firme, o olhar profundo e reto. O semblante tranquilamente em paz, suave e satisfeito. A voz limpa, calma, bela e simples, sempre a dizer o que importa, nunca apenas por dizer. E ele me disse que deveríamos tomar uma cerveja gelada juntos. Coisa que, com naturalidade, fizemos pelo resto da noite. No dia seguinte estávamos na praia, tirando um cochilo na sombra de um jambo, depois de um mergulho e um frango assado com farinha, e bastante cachaça, sonhos, histórias e aventuras em comum, e um tempo que nunca passava, porque não é medido, a não ser no lento girar dos astros e das estrelas. Ali a vida era simples, os astros orientavam os romances e as estações, como a Lua iluminando o grande rio e os corações. É claro que eu não resisti à rima, pois ali a vida era rimada, compassada no lento girar do planeta em seu disco orbital, entre todas as órbitas que ainda não conhecemos. Não são nem a moda nem as liquidações, o que mudam o ritmo da vida dos moradores deste lugar, onde a noite apenas se despede do dia para dar as suas voltas, e amanhã volta a ser a mesma. Aqui a noite não envelhece, o mundo está sempre virgem, a selva vizinha respira em nossos ouvidos, sussurando contos fantásticos.
- O que você vai fazer quando sair daqui? - o mineiro perguntou.
- Não sei. Talvez conhecer Minas. Não tenho a menor idéia, na verdade.
O mineiro às vezes acreditava em sinais, como quando você está em dúvida entre duas opções e uma coisa banal e irrelevante ao problema parece dar uma "sugestão", que, evidentemente, era ele quem fazia a si mesmo, analisando a coisa banal e extraindo dela vários significados, até que um se encaixasse e resolvesse para ele o problema. Foi nessa hora que ele viu uma nuvem, com a forma de uma grande onda, um grande e profundo vale onde poderiam se esconder milhões de conjecturas sobre tudo o que foi e tudo o que ainda será. Era uma enorme tempestade que passava rente, dirigindo-se à serra do Curicuriari, do lado direito do rio. Os dois se levantaram e caminharam até a beira da areia, na parte alta do final da praia, de onde viram toda a grandiosidade do espetáculo. Na gíria do circo local: muito mais que um show de espetáculo! O horizonte plano de floresta e rio parecia envergar-se sob o peso da nuvem maciça e plúmbea. Do lado esquerdo, do outro lado do rio, começava a cidade, distante da ameaça. Do lado direito, pedras, outras praias onde a chuva já caía e as perigosas corredeiras entravam na escuridão das águas. Eles estavam numa ilha. Mais à frente, quase engolida pelas nuvens, uma torre de radar girava dia e noite, dando apenas mais uma noção de tempo, ao lado das várias fornecidas pela natureza. Na verdade, uma noção pequena demais para ser útil a alguém de ali de fora, sob o vento que crescia como uma lenta sinfonia, ainda em seu início promissor.
Correram para a ladeira que era a praia e atiraram-se na água mais uma vez. Na idade deles, o ar contém o combustível para a vida. Nadaram algumas braçadas rente à praia, contra a correnteza, para deixar vazar pelos poros toda a existência que entrava todos os dias pelos mesmos poros, e que ali na água voltavam a fazer parte do reino das coisas externas a nós, dando uma sensação de completar uma tarefa, fechar um ciclo, fazer parte de algo que existe, algo maior, mais completo, longo, intrincado e fresco que nós mesmos. A temperatura de nossos corpos contrastava com a água gelada e negra, antiquíssima. Em meio ao escuro, apenas a pele branca do mineiro assemelhava-se à areia, já escurecida pelo acomodar da tarde.
Na outra vez que saíram o negro levou duas índias para conhecerem o branco. Saíram os quatro e foram à cachoeira do Dabaru. Beberam, conversaram, riram, nadaram, e depois foram ao brega e dançaram, mas o branco não queria dançar muito. Sentou-se com outro conhecido enquanto os outros davam voltas pelo salão. O branco queria o guianense, e o outro não sabia. Ninguém sabia. O guianense dançava com a indiazinha mais nova, os dois sorrindo, os dentes brancos brilhando na escuridão que principiava embaixo do teto de palha. O branco não queria ir embora porque o negro estava ali, e logo se cansaria de dançar. Mas ele sabia que as índias iriam onde eles fossem. Não seria daquela vez.
Nem foi da outra vez, quando foram à sua casa e fizeram o almoço com outros amigos. Não importa de quem era a casa. Nem eles provavelmente se lembrarão. Assaram uma carne no fogão enquanto bebiam no quarto, e discutiam tudo o que os amigos discutem. Questões importantes como o tempo que leva pra chuva chegar, quando você a vê do outro lado do rio. Questões dificultosas, como o tamanho ótimo para um skate, ou a melhor banda de rock, que nunca chegavam a conclusão alguma. Mas mostrava o conhecimento de cada um sobre o ofício, coisa a que os meninos respeitam muito. Ali os dois eram os melhores em seus ofícios, e os outros garotos eram mais novos, e mais inexperientes. Para o fim da tarde o mineiro acabou dormindo. O guianense, que também estava sentado na cama, que era de casal, acabou deitando-se abraçado ao outro, depois que os outros saíram. Dormiram juntos por horas. Mais tarde, quando o negro acordou sóbrio e viu onde estava, levantou-se cuidadosamente para não acordar o amigo, deu dois passos até o meio do chão, deitou-se ali mesmo e dormiu novamente. Mais tarde contou ao branco que tinham dormido abraçados a tarde inteira e o outro não acreditou. Nessa época ele ainda não sabia que o mineiro também o queria.
Por fim, se conheceram. No sentido bíblico. Estavam voltando de um circuito pela cidade, onde pararam em várias festas. A rua estava deserta e era sombreada pelas largas folhas de muitas árvores plantadas pelo caminho. Não se via coisa alguma. Caminhavam para a casa do mineiro, quando este colocou em palavras o que era até então uma mútua suspeita de intensidade variável. O outro, sorrindo apenas por dentro, aceitou de imediato. O branco, que já conhecia o outro, conseguiu enxergar aquele sorriso, e associá-lo, para sempre, à honestidade na conduta de um homem. Interesse os dois já tinham, apenas ali tiveram mutualidade. Talvez um tipo de mutualismo antigo, há muito calcado na memória genética da espécie, e ali, como em outros lugares, apenas dando vazão à sua pressão interior, como um vulcão, retornando à superfície a imagem do que foi por insondáveis séculos subterrâneo. Cada experiência na vida deles era assim, única, subterrânea, libertária. E era por isso que não podiam continuar juntos. Cada um seguiu seu caminho pelo mundo, e um dia o guianense finalmente conheceu Minas Gerais; e agora o mineiro se prepara para conhecer a Guiana, uma terra como tantas outras, prometida e especial.
Duas coisas (sobre o Windows Vista)
1) O bem e o mal se camuflam mutuamente, ora um se faz passar pelo outro, ora o contrário.
2) O Windows Vista. Bonitão, mas feito sob encomenda para comer toda a sua memória e fazer você comprar mais, muito mais. Joguei o campo minado (Mineswepper, acho), com efeitos visuais meio Hans Donner em propaganda do Intercine. Abri o gerenciador de tarefas (Task Manager) na hora, e tentei lembrar de quanta memória o revolucionário Doom II exigia na época (1996, por aí). Acho que pouca gente tinha 32 MB na época. O jogo inteiro cabia em 16 disquetes formatados com 1.6 MB. Já deu 25 MB, descompactado devia dar 50 MB ou mais. E o Campo Minado, um jogo ridículo, que deve caber em 500 linhas de código, ocupa mais que um jogo com umas 30 fases enormes, cheias de monstros, demônios, armas, bolas de fogo e poços de lava radioativa: cravados 60 megabytes.
Agora consideremos quantas pessoas (ou quantos PCs) usam Windows no mundo, e quantos terão migrado para o novo sistema em, digamos, dois anos. Cada uma dessas pessoas deverá ter por volta de 1 GB de memória RAM, vamos dizer. Muitas terão 2 GB, para uma melhor "performance". E antigamente com 32 MB jogava-se Doom II. E hoje não estamos, necessariamente, manipulando bibliotecas digitais com o poder do pensamento. Estamos apenas escrevendo texto em preto e branco, editando tabelas, fazendo alguns gráficos, ouvindo música, navegando na internet e vendo alguns filmes. Nada que não se fizesse com 32 MB de RAM, desde que você tenha um sistema que não devore bytes com a ânsia de um dragão empresarial. Só pra contextualizar, hoje 100 MB são quase grátis. Há muito se supõe a relação de negócios entre Microsoft e empresas de hardware, com a primeira puxando as demais a velocidades astronômicas, e, lógico, fazendo todos lucrarem bilhões de dólares.
Aí entra o Linux e a filosofia do "software livre". Hoje a maioria dos leitores deste blog já usam o navegador Firefox, gratuito e bem mais confiável (i.e. trava bem menos) que o IE. Pensando bem, ainda não travou comigo. Nos órgãos públicos já há quem use Open Office e alguns departamentos já migraram para o Linux. Em breve teremos computadores com pouca memória e processadores mais simples e baratos, que farão apenas aquilo que já fazem, sem desperdício do trabalho de ninguém, nem mesmo o dos robôs construtores de chips de informática. A produção de softwares de uso comum continuará livre e participativa, mas conquistará a maioria dos usuários. Chegará, e não levará muito, o dia em que a informática parará, restando em evolução apenas as tecnologias de ponta para aplicações industriais e a indústria do entretenimento.
Existirá uma coisa hoje impensável, o computador simples, usado em inúmeras tarefas do dia-a-dia, e que funcionará como som, TV, telefone, editor de texto, biblioteca, relógio, despertador, controlador de luz e temperatura, entre outros. Todos terão acesso a ele, pois custará muito menos que uma TV atual. Outra coisa será o computador de ponta, para quem trabalha com geoprocessamento avançado ou análises estatísticas poderosíssimas, ou ainda para quem quiser jogar o que houver de novidade na área de realidade virtual.
Quando apenas a indústria da informática cair à posição ainda assim ruim de "sociedade desigual", com uns poucos tendo computadores de ponta, e a maioria tendo computadores baratos, já teremos chegado a um quadro muito melhor que o atual, onde todos precisamos comprar máquinas de dois mil reais, apenas para sobreviver no mundo digital, enquanto a maioria não tem computador algum.
Condenados a sermos livres
Existem golpes duros na vida. Um deles é descobrir que amigos vêm e vão, poucos ficam. Outra coisa que assusta é a solidão. Saímos de casa com toda a juventude no peito, coragem e decisão, e pouco a pouco vamos nos vendo menores, num mundo maior e mais difícil, mais complicado. Os seus amigos vão se casando, você vai conhecendo e convivendo com gente mais nova, até ver que qualquer 3 anos já nos deixam oriundos de outra cultura, outra época, outros brinquedos, outra televisão. E os amigos casados agora já não fazem as mesmas coisas que fazíamos quando éramos todos solteiros. E os colegas de repartição não têm necessariamente o que admiramos em nossos amigos. Muitas vezes saio sozinho, a percorrer o mundo conhecendo os outros, mas o fator "peso" sempre se impõe, e é difícil manter uma amizade assim nova, assim espontânea como milhares que surgem todas as noites, em todas as avenidas e bares, pois quanto mais velhos mais estranhos ficamos, exigentes, nos consideramos mais sábios, mas perdemos a sabedoria da inocência, a facilidade de nos igualarmos ao próximo, de conquistarmos empatia. Antes fazíamos amigos com maior facilidade, ou talvez seja o colégio que aja como um presídio e nos ensine a nos tolerarmos, por pura falta de opção. Antigamente os homens eram amigos de batalhas, as mulheres amigas de trabalhos braçais. Hoje somos todos amigos de mesa de bar e de mesa e cadeira. Como anseio por um tempo de homens livres, de homens e mulheres ao
ar-livre, sem paredes e aparelhos de ar, sem portas eletrônicas e elevadores. E quanto mais anseio este mundo mais me canso e me decepciono com o nosso mundo de fato, numa bola de neve que talvez nunca acabe, e me torna mais e mais distante, mais fugitivo, mais condenado à liberdade.
Caminhadas noturnas
O negro tinha os braços de um Hércules. No meio da multidão eu caminhava sozinho, procurando por distração. De longe seu porte sobressaiu entre os demais, na porta da boate de brega onde todos entravam e saíam e conversavam e bebiam, enchiam a cara mesmo, e já era de madrugada. Ele tinha muita consideração por todos, e todos com ele, percebi logo que se tratava de um sujeito decente. Daí entrei, fui revistado, bebi, saí, entrei de novo, já sem ser revistado, mas com o olhar dele, ainda difuso. Depois é que puxei papo. Sabe como é, o que vier na hora. Mas o que geralmente funciona melhor nessas ocasiões é começar com "E aí, beleza?", senha que já me serviu a muitos propósitos diferentes. Com esse cara eu já não lembro como foi, mas em pouco tempo era eu quem mais conversava com ele (realmente ele era popular, antes de eu chegar havia mais de três pessoas ao seu redor, fazendo comentários esparsos numa conversa lenta, cheia de capítulos). Mas dali eu ainda dei mais uma volta, perguntei antes o horário que ele saía e voltei só depois.
Antes do brega fechar ainda ficamos por ali sentado numa mesa, bebendo, aliás, enchendo a cara, e conhecendo outras personagens crípticas da noite interiorana. Uma delas era uma bicha gorda, boa pessoa, pacífica e risonha. Outra uma mulher dessas que fala pelos cotovelos, pinta os cabelos de louro, usa uma roupa provocante mas gosta de andar de mãos dadas com o marido, um sujeito taciturno, feio e calado. Outra figura era o Jacaré, o segurança do brega que agora era todo piadas, e contava as mais diversas histórias dos seus conhecidos, como a de um menino que, para entrar num barco na beira do rio, passou por cima de uma tábua daquelas pra lavar roupa, mas a tábua quebrou e o menino perdeu o saco, preso no que restou de pé da tábua. Essa não era engraçada, mas as outras eram. Por fim, saímos dali ainda tarde, muito bêbados, e deixamos os demais (principalmente a bicha gorda que estava dando em cima de mim e do Jacaré fazia horas, e que eu, na dúvida se rolaria ou não com o segurança, ainda cogitava, digamos, acompanhar).
Mas deu tudo certo e fomos eu e o negão descendo por ruas desertas, escuras, de terra e pequenas casas de madeira, com quintais visíveis da rua pelas cercas finas, cheios de árvores frutíferas e palmeiras. Nos sentamos numa varanda alheia, espaçosa e limpa. Ele tirou um pacotinho do bolso e me passou. Fui dichavando a erva enquanto ele pegou outro pacotinho e foi misturando o seu conteúdo. Logo já tínhamos um cigarro perfumado nas mãos, e conversávamos alegremente, ainda que em voz baixa. Às vezes olhávamos para os lados, pois não queríamos companhia, e ele tinha lá seus medos da polícia. Eu ouvia suas histórias e contava algumas minhas, mas o pescoço suado e grosso dele de vez em quando tomava minha imaginação, e eu esquecia o que queria dizer. Depois andamos mais, e ainda fumamos outro cigarrinho, até chegar na casa dele. Eu estava na cidade sem pouso, chegara de ônibus e não me alojara em lugar algum. Tinha deixado minha mochila escondida num prédio público, era feriado e ninguém ia encontrá-la, então fui direto para a casa dele, para voltar lá só no outro dia e recuperar as minhas coisas, que eram bem poucas mesmo.
A casa dele era longe, e demoramos a chegar. Uma grade de madeira separava a casa da rua de terra. Lá dentro o lugar-comum da cidade: casa de madeira, ampla e ventilada, quintal generoso. A mãe dele ainda se incomodou de levantar, mudar várias crianças de lugar para abrir espaço para o filhão dela com o seu amigo de fora, eu. Num instante estávamos deitados num colchão de casal, no meio da sala, e todas as luzes estavam apagadas. Comecei a pensar como começaria minha incursão sobre o corpo dele, mas ele foi mais rápido. Já me puxava pela cintura, de leve, quando a mãe dele voltou, mas antes que ela acendesse a luz ele já estava imóvel de novo em seu lugar, qual jacaré mesmo que era seu apelido, e a mãe mandou ele dormir noutro lugar, para "me dar espaço". Ainda tentamos argumentar que o colchão era grande, e que não precisava se incomodar, mas foi em vão. A mulher parece que conhecia bem os hábitos do filho e não queria ouvir gemidos aquela noite. Então dormi só, acordei com uma ressaca terrível mas ainda brinquei com as crianças, umas doze, não sei quantas da casa e quantos vizinhos. Foi muito bom, jogamos bola, comemos caldeirada de peixe e depois saímos para que eu pegasse minha mochila. Ela estava lá, intacta. Ainda voltei pra casa dele e fiquei outro dia, outra vez sem chance das interações que eu queria. No outro dia fui embora e nunca mais o vi. Mas nessas caminhadas desses dois dias e meio nos divertimos bastante. Como o mundo é pequeno, um dia ainda haveremos de nos encontrar e aí, sim, a mãe dele não vai estar por perto para moralizar noitada nenhuma, eu espero.
Novo Genesis
I
A noção de pecado está errada.
Antes de estar errada, está apenas incompleta. Não é suficiente.
A razão nos ensina a pensar para que aprendamos.
O erro existe para nos ensinar. Quem não erra, não aprende.
O processo de aprendizado é o que nos livra do que se quer chamar de pecado.
Depois de aprendido, não precisamos guardar arrependimento.
Mas outra vez não erraremos, já que aprendemos.
Outra coisa será o vício.
II
A coisa mais medonha e triste que alguém pode pensar é:
não quero estar certa, quero ser feliz.
A felicidade é um vício, como qualquer outro.
Estar certo, aprender a estar certo, quando preciso, não é vício,
é a solução dos problemas, daqueles para os quais há solução.
III
A felicidade é uma seta acima, a tristeza é uma seta abaixo,
nós percorremos o espaço como uma onda
subindo e descendo,
e apenas quem desce fundo pode subir mais alto
e vice-versa.
Tudo é uma questão de impulso.
IV
Vícios são vícios. Quem não os tem?
Carnaval em Manaus
A banda ia se encontrar ao meio-dia, a certa altura da Djalma Batista. Cheguei lá e encontrei três conhecidos, que me explicaram que o ponto de saída do bloco fora transferido para uma praça no V-8, um pouco longe dali. Logo antes de vê-los tinha pensado em comprar um açaí, mas o bonitão que vendia só tinha sacos de um litro e nada mais, nem açúcar, nem copo, nem farinha. Aí não foi negócio, e tive que tomar o açaí noutro canto, pagando 529% mais caro. R$6,60 por 300 ml batido com gelo, num lugar burguesinho onde a garota do caixa nem me viu, e ainda cobrou 10% pelo serviço do garçom que apontou uma mesa e me trouxe a tigela. Ao invés de R$3,50 por um litro puro do açaí do peixe da esquina, gelado. Talvez todos ganhem quando eu pago mais caro, mas certos custos não me atraem. O açaí estava gostoso até demais, preferia que não estivesse tão bom, pra que eu pudesse desejar profundamente ter ajudado o moço pobre e bonito que vendia açaí barato sem muitas perspectivas.
De lá para o carnaval, o encontro mudou para a praça que eu já conhecia sem saber o nome, e continuo sem saber. O trio elétrico já se aquecendo, os produtores organizando a cerveja que acabava de chegar e era vendida dentro dos freezers nas pick-ups. A polícia vigiando as pessoas vestidas com seus uniformes da banda famosa de Recife, o Galo da Madrugada, que fazia, ao que parece, sua primeira incursão na "Madrugada" manauense. O Sol a pino. Suor às bicas, panos empapados, óculos escuros, toalhas, gelo, banhos de mangueira, céu limpo, poucas nuvens, a tarde apenas começando. Samba, suor e o consumo de cerveja eram contínuos, enquanto todos procuravam ficar um pouco sob a sombra das árvores da praça, até que o bloco saiu. As filas se acumulavam nas lojas de postos de gasolina, as pessoas esperando com suas latas de cerveja esquentando, reclamando, gritando num verdadeiro frenesi popular de galácticas proporções, as letras das músicas ecoando nos salões amplos e ventilados das lojas de conveniência, entre piadas e ofensas sem muita seriedade, mas com toda sinceridade.
O trio seguiu reto pela avenida e foi dobrando outras, roçou o shopping, retornou entre os canteiros gramados e passou por baixo de uma trincheira, deixando a multidão em verdadeiro alvoroço. Carros passavam na fila oposta, e uma multidão de rapazes uniformizados carregavam uma corda, e tentavam em vão conter os mais aventurosos que saíam a alcançar um e outro amigo que ficou preso lá na outra parte da multidão. E que multidão! Espremiam-se e dançavam e cantavam, caminhavam se arrastando na santa folia. Alguns amigos param aqui e ali, ora pra comprar duas garrafas que são levadas em uma lata, um copo e duas sacolas plásticas. De outra vez param num posto de gasolina para fumar um baseado. A polícia, ao largo, não vê. No posto a sombra do prédio, um lugar pra mijar, uma parede pra bloquear o vento, e dois doidos que bebem e se beijam e vão tirando a roupa e não parecem dar a mínima pra mais ninguém. Todos querem ser felizes.
Dali o carro ainda andaria muito. Passou por largas avenidas, árvores recém-podadas, gramados, mato nos lotes vagos e reentrâncias da cidade grande que ainda guarda um traço do passado verde.
Por fim o carro chegou ao destino. As pessoas ainda unidas ocupavam seus lugares, compravam comes e bebes nas diferentes lojas da praça de alimentação onde a caminhada ia caindo junto com a noite, saindo do dia para entrar na história.
2007
Quatro anos e estou aqui, ainda. Mas quatro anos não são nada. Terminei a faculdade em mais tempo. E aprendi aqui mais no primeiro ano que em dez de escola. Talvez o problema seja esse. Já não aprendo mais tanto a cada ano. Chegou a hora de mudar de novo, relembrar 2003 e seguir em frente.
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CADA
Ora ar, ora ventos,
ora osso, ora merda;
ora mais, ora menos,
ora gesso, ora pedra;
ora mar, ora erva,
ora gás, ora névoa;
ora vida, ora selva,
ora tudo, ora trevas;
ora saliva, ora sossego,
ora canto, ora sôfrego;
ora sim, ora não,
ora talvez, por que não?
Da solidão humana
O homem está sempre só. Cada um segue um caminho próprio, suas dúvidas são únicas, seus temores e fascínios são exclusivos. Os homens constróem em torno de si um mundo de objetos, de luxo, conforto, de distinção, e tornam-se assim ainda mais sós, ainda mais isolados.
Suas roupas, suas jóias, todas as suas posses formam uma barreira, separando-os por categorias de classe, de estilo, de língua, raça, raízes, religião, costumes, gostos, até que cada categoria, cada grupo assim definido é um grupo unitário, formado apenas pelo solitário rei e escravo de seu próprio reino. Para fugirem da massa e buscar identificação, os homens acabam se identificando apenas consigo mesmos, ainda que não saibam quem ou o que são.
Do copo estar meio cheio ou meio vazio
É mera questão de ponto-de-vista o quanto nos contenta o enchimento do copo. Para uns, o copo pela metade está meio cheio; para outros, meio vazio. Para uns, bastam algumas gotas para matar a sede, para outros, quase tudo nunca é o bastante.
De véus
Como incluir o nós em um diálogo com a pretensão de avançar fronteiras? Como ter essa pretensão sem pretender destruir essas mesmas fronteiras? As fronteiras, na verdade, são de corpos, não de idéias. Idéias custam caro, e podem ser pesadas. Livros são pesados E caros: contêm centavos de peso e o resto de idéias. Livros e idéias são, ou podem ser, perigosos.
Faz tremer governantes a idéia de que as idéias possam ser livres. A liberdade do corpo é fácil governar, a liberdade das idéias, não.
Por isso a TV é tão estúpida.
Por isso as rádios-comunitárias são perseguidas.
Por isso o lixo da educação.
Por isso os impostos, a religião, o roubo.
Roubam, acima de tudo, nossas idéias próprias, pessoais, privadas. Porque com elas somos mais fortes e concentrados no que queremos. Íntegros num ideal, somos invencíveis. Mas o ideal está corrompido. O ideal tornou-se utópico, além: novelas de luxo, igrejas de barro, deuses gasosos e ásperos.
Não apenas roubam as idéias, mas cultivam o que seria a erva daninha do pensamento: de que é errado, ingênuo, infantil pensar que ideais existem e devem ser cultivados. Que a melhor moral é a resignação da morte, a coletividade, a paz, a justiça de um governo corrupto, inconstitucional. Aprendemos já na escola que nossos líderes são covardes e cegos, e crescemos para nos tornar como eles: satisfeitos com tudo que alcançamos na vida, mas sempre dispostos a pisar em alguém (ou deixar que pisem) para conseguir mais um pouquinho. Como algum índio que, fumando o cachimbo da paz, assine um papel para poder dar uma talagada a mais a cada volta.
A sociedade e seus muitos véus.
É Natal
Um vento gelado cortou o ar sobre o asfalto, enquanto eu me afastava a passos largos de um shopping movimentado pelas ânsias natalinas. O frio vagamente familiar insistia em me lembrar de coisas que eu preferia esquecer, ali. Olhares pobres atravessavam o ar como setas no vazio, atravessando corpos e objetos como flechas sem vontade. Olhares desconhecidos mantinham a humildade de perscrutar, em busca de intimidade, ou de aceitação, ou de visibilidade, desejosos de serem vistos, de
existirem aos olhos do sistema.
Sociobiologia prática I
O tempo que cada um gasta pode ser dividido em categorias:
S social
R rapid energy
s self
i inanimate
v vocalization
V visual survey
Algumas espécies já foram medidas quanto a isso. Por exemplo, para macacos barrigudos (Woolly monkeys,
Lagotrix lagotricha), temos algo como
SSSSSSSSSSSSSSSSSSsRiiivvVVV
e para os macacos stump-tailed(???), temos:
SSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSivv
com os demais traços praticamente desprezíveis.
Já o lêmure ring-tailed (???) é
SSSSssRRRiiivvVVVVVVVVVVVVVV
Como ficaríamos nós, humanos?
Quanta variação existe entre um caçador-coletor e um homem solteiro que trabalha 8 horas por dia numa fábrica, tem um carro e mora só num apartamento?
Entre um habitante da Europa medieval e um europeu atual?
Entre um amigo de Jesus de Nazaré e um amigo de Sidarta, o Buda? E entre os próprios? Ou os próprios e seus amigos?
Aí está um ramo da sociobiologia digno de estudo.
Imagino o gráfico humano, das pessoas urbanas de hoje, algo como
SSSSSSSSSSRsssssssssiivvvvVVVVVVVV
Classificando cada categoria como:
S, qualquer tipo de relação entre duas ou mais pessoas, que envolva interatividade sem diálogo. Transar, beijar, fazer carinhos, trocar fralda, olhar nos olhos, escutar música junto, beber cerveja, fumar um baseado, rezar em conjunto, assistir a um show ou partida de futebol (in loco).
R, movimentos enérgicos, como trabalhos forçados ou esportes.
s, tempo gasto consigo mesmo, escovando os dentes, comendo, coçando-se, etc.
i, inanimado, acordado, porém imóvel, sem olhar para nada em especial, pensando, divagando, sonhando acordado, ou concentrado e imóvel.
v, vocalização, todos os sons ditos, seja cantando no chuveiro ou conversando ao vivo, por telefone, videoconferência, etc. Só é contado o tempo em que a pessoa fala, não aquele em que escuta.
V, pesquisa visual, atenção em algum objeto ou interlocutor, o tempo gasto ouvindo durante as conversas; usar um computador ou assistir TV ou cinema, mesmo em grupo, entra aqui.
Façamos essa pesquisa para entender melhor a sociobiologia humana. Mande um e-mail com descrições de pessoas que você conhece, ou de você mesmo, sem se identificar nem a ninguém mais, para
rodrigo1406 em
gmail.com. Mande também suas dúvidas e acompanhe aqui os resultados.
Sociobiologia prática II
O comportamento social pode ser dividido em:
s social observation
p presenting
a aggression
g grooming
r return aggression
v avoid aggression
Para humanos, temos:
s, observação social, observar as pessoas em uma festa, ou família, ou estádio
p, apresentação, mostrar-se para alguém; ou fazer um favor a alguém?
a, agressão, discussão ou briga.
g, coçar-se, fazer carinhos ou agrados físicos, incluindo sexo.
r, retorno de agressão, agressão defensiva.
v, apaziguamento, esforço para evitar uma agressão maior.
Estes dados já foram medidos em etogramas para as seguintes espécies:
? - Stump-tailed macaques
? - Pig-tailed macaques
Macaca mulata? - Rhesus macaques
Lagothrix lagothrica - Woollys
Cebus sp. - Black-capped cebus
Saimiri sciureus? - Squirrels
Lemuridae - Ring-tailed lemurs
From: Jolly, Alison, 1972.
The evolution of primate behavior. Macmillan Co., New York. xiii + 397 pp.
apud E.O.Wilson,
Sociobiology. The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge & London, 2000.
Por exemplo, Macaco stamp-tailed:
ssppgggggggggggggggggggggggggggg
Já o barrigudo (
Lagothrix sp.):
sssssssssaaaaaaaaaaaaaaaggggrrvv
Por fim o lêmure ring-tailed:
sssssssssssssssssssssssppaagggrv
E as pessoas?
Fico curioso de saber como em cada mesa de bar cada pessoa apresentará um comportamento, pois enquanto uns falam outros escutam, uns partem para a agressiva e mantém outros na defensiva, outros retrucam sempre na mesma moeda, outros são mais pacificadores.
Um estudo dessa natureza poderia permitir mapear os tipos de personalidade humana, e associar com medidas como estatura ou renda.
Quais são os níveis naturais de agressão entre homens, entre mulheres, entre as pessoas em grupos mistos? A religião muda isso? A língua falada, a moeda? O seu país ser um exportador de petróleo, ou importador de aveia?
A sociobiologia está apenas começando...
A poem
If you say to me tomorrow
all that is to be will be
it could bring my memories back
stir the sorrow that was lying deep.
If you say to me that you'll still want me
and I doubt you do
I would sit back into myself and then turn out
to you.
But tomorrow never comes
and as I do live today without regret
You still live yours without knowing me at all.
You don't know how I feel, but I suppose I know you
I say to you that this tomorrow may come
And you'll know how it is to be true.
Esses spams!
Entendi muito pouco deste último SPAM (aquelas mensagens indesejáveis) que recebi:
Edonkey has been forced close!
> não sabia. Nunca cheguei a usar, e inclusive não acredito em spam.
Mail list for weekly guide our news stories.
> News stories? Lojas de notícias? Deve ser new stores, novas lojas. Lista de e-mail pra quem quer ver a loja deles todo mês. Quer dizer, toda semana! Mesmo se alguém quiser, não fala onde tem que clicar.
Is shut with extra, added glowing led enhanced. Wikipedia running out cash microsoft, forces.
> Hein?
Else wtfino catche gin?
> Tipo: else (senão) What The Fuck Is Not on... catche, tipo , gotcha, tipo, sacou? Nem eu.
Graphics servers, channel set, top, boxes consoles. Recording industry ever existing, which owned. Generated tag, gfpcwtfpc function dcsadv else wtfino catche.
> Olha ele de novo aí, o wtfino catche.
Has been forced close pay million recording industry ever.
Hahaha!
Full detail amd talks. Stop punters using previously downloaded versions? Intel core, chip, revealed full detail amd talks barcelona. Said will, take steps stop punters using previously.
Us message board login white!
> Seria racista, isso?
So we think he might got bit mixed up.
> Imagine!
Dcsencodes gindex, dcsmeta dcstag dcs wt, dcsext?
Down, letters, bearshare ihub winmx grokster have?
Firstparty cookie generated tag gfpcwtfpc function dcsadv.
With extra, added glowing.
From: here Asia
Subject: Web
E ainda veio uma imagem junto, que nem abriu...
Sempre ele
Às vezes sinto o tempo que passou como o cair de algo pesado e súbito. Acordo mais velho e tenho uma saudade única de um tempo que agora se mistura aos sonhos recém-esquecidos. Parece que aquela praia, aquela época, foram vividos por outro alguém, um jovem ainda munido da coragem e honestidade para ser ingênuo. Era um tempo onde a seriedade de ser humilde era ainda um traço indelével de minha personalidade. Hoje não mais. A humildade esqueceu-se de desfranzir o cenho, de suavizar o semblante, de aliviar o sobrolho. Esqueceu-se que a humildade ingênua e séria da juventude retira sua força do desprendimento, da imoderação, da espontaneidade, da permissividade próprias de quem ainda não viveu as grandes desilusões; o amor, ah! o amor...
A amoralidade como princípio
Em resposta a um post do Chicão no nosso novo blog,
Esquina Sociobiológica.
Caro Francisco, sou obrigado a concordar por alto com sua argumentação, ao mesmo tempo em que discordo de diversos pontos. Concordo que a compreensão de nossos instintos nos ajudará a moldar uma sociedade mais agradável, mais justa, mais feliz. Concordo que a sociobiologia já foi usada para o mal, mas nem por isso devemos perder de vista seu potencial para o bem, como concordo que esse bem só será alcançado com o estudo do comportamento humano em larga escala, e não através do mapeamento genético de indivíduos, o que pode levar a cenários terríveis de preconceito e exclusão, como no filme de ficção-científica Gattaca, que você cita.
Entretanto, o problema é justamente de onde extrair a moral que permite distinguir entre o bem e o mal para uma sociedade: de onde vêm nossos valores e nosso julgamento acerca do que é uma sociedade melhor? Discordo veementemente de sua proposição do instinto como inimigo. É como dizer que o maior inimigo de uma árvore são suas raízes, ou os nutrientes em seu solo, ou a água e a luz do Sol que permitem sua fotossíntese. Ou como dizer que o maior inimigo das aves migratórias é sua capacidade de se orientar à noite pelas estrelas, ou pelo campo magnético da Terra. Trata-se, no meu entender, de uma visão equivocada do instinto.
Infelizmente nossos mais caros sentimentos sobre o bem e o mal vêm de nossa civilização ocidental, cristã, católica, falsamente democrática, imperialista, consumista e capitalista, entre muitos outros ismos que mal saberíamos distinguir, tão profundamente embrenhados estamos nessa selva milenar de valores arraigados. Pudéssemos ver o mundo aos olhos de vikings antigos, ou de orientais budistas, ou de nativos americanos pré-Colombo, e perceberíamos como todos esses valores estão longe de ser necessários, sendo apenas contingentes, ou seja, tendo surgido e se fixado apenas pelos acasos e fortuidades da história.
O instinto, é bom que tentemos defini-lo, é para mim aquela parte da humanidade que independe da cultura, embora possa se expressar variavelmente conforme a cultura. Por exemplo, todos temos o instinto de procurar comida quando estamos com fome, mas o comportamento associado a este instinto será diferente caso uma pessoa se encontre dentro de um avião, ou em um ônibus, ou num velório, ou na sala de aula, ou na própria casa. Ao longo da história a cultura vai e vem, costumes surgem e desaparecem, mas tudo gira em torno do instinto, o único imutável, o único que, erigido sobre nossas bases genéticas, é tão constante quanto nosso número de dedos, nossa percepção auditiva ou a estrutura química de nosso suor.
O produto do instinto muda conforme o meio, mas sempre que o meio retornar ao ponto de partida, o produto do instinto tornará a ser o mesmo.
Podemos, então, esperar extrair algum conceito moral desta entidade ultra-milenar que é o instinto? Quando você diz que as pessoas são iguais, e que não devem existir mais machos-alfa, ou a dominação de uns sobre outros, creio que trata-se de sonhos utópicos, e até mesmo indesejáveis. Coloque crianças juntas, em qualquer lugar do mundo, e logo se definirão os líderes, os árbitros das regras nas brincadeiras, como surgirão também os párias, aqueles que quase sempre perdem e são humilhados pelos demais. Criar uma sociedade que ensine as crianças a não agir assim pode funcionar, mas tão logo esta nova cultura desapareça, ou seja substituída por outro modismo, as pessoas tornarão a se dominar umas às outras, como sempre fizeram.
O insinto é inescapável. O que podemos fazer é moldar a sociedade de forma que a atuação do instinto cause o menor mal possível.
Mas então voltamos ao ponto de partida, o que é o mal? O que é o bem? Na natureza não existem tais conceitos, é o que se pensa, então por que damos tanto valor a eles? Seriam apenas uma maneira de nos distinguirmos dos demais animais? De mantermos viva uma parte daquele antropocentrismo outrora tão caro a nós, e que pouco a pouco foi se perdendo através dos últimos séculos, de Galileu a Darwin? Chimpanzés mudaram seu comportamento em relação a uma fêmea que assassinou o filhote de outra, tratando-a com desdém, retirando qualquer privilégio que ela antes possuísse, seja na partilha alimentar, na definição dos locais de sono ou no hábito de esperar os que se atrasam durante uma caminhada. E essa mudança durou bastante tempo. Serão os chimpanzés capazes de definir certos atos, como o assassinato de uma criança indefesa por outra fêmea que não a sua mãe, como algo intrinsecamente mau? Serão eles capazes de julgar uns aos outros conforme sua própria moral? Eu acredito que sim, e não tenho motivos para duvidar dessas e de outras capacidades de nossos primos evolutivos. E creio ainda que o conceito de bem e mal é tão instintivo neles quanto em nós, seres sociais que somos.
O bem, num contexto social, pode ser visto apenas como a capacidade de uma sociedade de se preservar, de manter sadios seus integrantes, a despeito do que ocorra com os integrantes de outras sociedades. Daí o assassinato ser mau numa cidade, mas não numa guerra. Hoje, é claro, a globalização está redefinindo o conceito de sociedade, e pela primeira vez é comum sentirmos horror ante o assassinato de inimigos de guerra do outro lado do planeta.
Por outro lado, a guerra, como a dominação dos mais fracos pelos mais fortes, sempre fizeram parte do instinto humano. Como podemos conciliar isto com uma sociedade ideal, onde haja o mínimo de guerras e de exploração? Onde haja o mínimo de sofrimento - posto que é do nosso instinto fugir do sofrimento? Uma parte da resposta está dada: a globalização e as uniões entre os países, como ocorre hoje na Comunidade Européia, e como se tenta arduamente no Mercosul, estão ampliando nosso conceito de sociedade. No dia em que cada cidadão estiver convicto que sua sociedade é todo o planeta Terra, com seus mais de 6,5 bilhões de pessoas, as guerras serão vistas com um repúdio muito maior.
Entretanto, guerras civis são tão ou mais comuns que guerras entre sociedades distintas, e também têm como mote causador a disputa pelo poder. Sim, o poder, o alimento dos espíritos fortes, guerreiros, tão necessário a certas mentes como o oxigênio que respiramos é para todos nós.
As pessoas não são nem nunca serão iguais. Para a maior parte do povo, é mais confortável, mais simples, mais cômodo seguir o dono do poder, do que lutar para ter poder. A mesma diferença genética e ambiental que faz uns altos e outros baixos, uns escuros e outros claros, uns rápidos e outros lentos, faz de uns mais ávidos por possuir poder do que outros. Se a dominação de uns por outros é instintiva e, portanto, inevitável, é porque alguns
querem ser dominados, enquanto outros querem dominar. O que pode ser transformado na sociedade, em prol do maior bem-estar geral, é a distância existente entre o alto e o baixo poder, ou entre o poder e a ausência dele.
Numa tribo de caçadores-coletores, qualquer indivíduo mora a menos de duzentos passos da casa do cacique, e as decisões comunitárias são tomadas pela participação de todos falando ao mesmo tempo, até que um consenso seja alcançado. Em nossa pseudo-democracia moderna, a distância do mais pobre dos mortais até o presidente é de milhares de quilômetros, tanto físicos quanto burocráticos, sendo que a distância física é, sem dúvida, a menor delas. Toda a estrutura da sociedade, sua justiça, por exemplo, é construída de forma que o poder paire estratosfericamente acima da cabeça do indivíduo comum, e esteja ali a salvo para perpetrar seus mandos e desmandos, como aumentos do próprio salário, a bel prazer, enquanto o povo assiste calado, boquiaberto e inerte.
Se é inevitável que uns dominem e outros sejam dominados, a sociedade ideal é aquela onde a distância entre uns e outros seja mínima, de forma que a dominação seja ao menos inteligível, e que o cidadão não entre finalmente em seu caixão sem nunca ter compreendido para que viveu e para que pagou ao Estado mais do que pôde dar à própria família.
Concluindo, o maior inimigo do homem é o próprio homem. São as artimanhas racional e maquiavelicamente projetadas para aumentar o escopo e o alcance da dominação, para esconder os erros da classe dominante e isolá-la dos riscos que a classe dominada lhe impõe. Proponho como ainda o maior inimigo do homem a sua mais recente habilidade, a última e mais imperfeita inovação evolutiva, sua própria razão.
Conservação de 8 a 80
Nos meus tempos de criança tinha um clube perto da minha casa. Eu e meus irmãos, quase sempre acompanhados por um séquito de primos, costumávamos ir lá nos fins-de-semana, quando chegávamos com o Sol ainda baixo e só saíamos quando os seguranças nos expulsavam da piscina, lá pelo terceiro apitar da sirene das cinco horas. Também íamos nos dias de semana, mas com menor freqüência e em menor número.
A situação financeira da minha família não era muito estável, e nem todos os meses a mensalidade do clube estava em dia. Ficávamos frustrados quando algum primo passava lá em casa num desses meses, nos chamando para ir ao clube, e nós, sem nenhum orgulho, contávamos porque não podíamos ir. Mas geralmente o clube estava lá, acessível a nós, felizes membros da classe média da época, e ocupa até hoje várias páginas agradáveis das nossas memórias de infância. Mas e quanto aos que não tinham esse privilégio?
Não sei se existe um índice ou equação que meça essa coisa vaga que chamamos de qualidade de vida, mas tenho certeza que o acesso ao lazer é uma peça fundamental desse conceito. Antigamente, ou seja, muito antes de eu nascer, era comum associar-se o lazer com a existência e a proximidade de áreas naturais. Hoje, nas grandes cidades, muito tempo depois do grande êxodo rural, lazer costuma estar associado a projetos urbanos como clubes, praças, ciclovias, cinemas, teatros, shopping-centers. Numa cidade como Belo Horizonte, a diferença entre o público que freqüenta, digamos, o Shopping Cidade e o Parque Municipal - ambos no coração do centro da capital mineira - é gritante.
No primeiro, pessoas de todas as idades e classes sociais, embora predominem jovens de baixo a médio poder aquisitivo (os mais ricos preferem o Diamond Mall, o que o próprio nome já sugere). É evidente a preocupação com a roupa, que deve estampar alguma marca famosa, ainda que falsificada, e com os cabelos, que deixam transparecer mais vaidade que praticidade.
No Parque Municipal o cenário é bem outro. Para começar, o Parque tem hoje apenas 1/4 de sua área original. O projeto do engenheiro Aarão Reis, responsável pelo desenho inovador (para a época) de ruas perpendiculares e avenidas largas e transversais, previa um parque que deveria se tornar o coração da cidade, situado em frente à sede da prefeitura, na principal e mais larga avenida de então, e com os fundos para a nobre região hospitalar. Hoje, o Parque é diversão apenas para famílias de baixa renda, além de recanto para a sesta diária de garis, operários e vagabundos, e ponto de furtivos encontros entre homossexuais que preferem a gratuidade ao glamour.
Conservar para quem?
Tenho muitos amigos biólogos que, indagados sobre a questão conservacionista, mostram-se conscientes da necessidade e da urgência de protegermos os recursos naturais. Algumas cervejas depois, porém, quando a conversa avança dos princípios e fins para os meios - os "comos" da conservação - o fantasma da impotência acaba se abatendo sobre eles: como conservar o que sobrou de nossas florestas, cerrados, campos naturais, quando o ideal-conservacionista-da-boca-para-fora apenas dissimula o desejo quase universal de bens materiais, carros do ano, casas luxuosas, roupas acima da média, eletro-eletrônicos nada duráveis e altas taxas de consumo de combustíveis fósseis, energia elétrica e produtos descartáveis, além do desperdício de água, a poluição em todas as suas formas e tudo o mais? Como alguém realista pode esperar ainda salvar o mundo? Para que lutar pela conservação, se as previsões mais otimistas prevêem a desertificação da maior parte da Amazônia em 100 anos ou menos? "Eu nem estarei aqui daqui a cem anos" é um desabafo comum.
Acho que era Sócrates (o filósofo, não o jogador da Seleção de 86) quem dizia que metade das discussões estariam resolvidas se as partes primeiro definissem seus termos. Concordo com ele, e também acho que a outra metade se resolveria se as pessoas fossem menos extremistas. Se o assunto é conservação, quem falou em "salvar" o mundo? Se o fim da Amazônia for mesmo a desertificação, quantos milhões de famílias, quantas gerações estarão aqui durante todo o processo, perdendo pouco a pouco sua qualidade de vida, e aproveitando ao máximo cada dia de cada árvore poupada?
A idéia da conservação é semelhante àquela história do menino que pegava estrelas-do-mar na areia da praia e as atirava na água, e que, questionado por um adulto sobre a inutilidade de seu gesto, dados os milhões de animais ali encalhados, respondeu: "pode não fazer diferença para você, mas para cada bicho que eu salvo, faz."
Estamos no limiar de duas eras. Saímos da fase da desinformação geral e dos alarmes considerados sensacionalistas por parte de eco-chatos ou eco-xiitas, para entrar na fase do terror generalizado e previsões apocalípticas que correm o risco de cair no lugar comum. Pior: antes não se fazia nada pela incerteza ou pelo desconhecimento do problema; agora enfrentamos o perigo de não se fazer nada devido ao estúpido convencimento de que não há nada mais a fazer.
Jamais salvaremos o mundo. Mas para cada criança pobre do planeta pode haver uma área natural - sua única opção gratuita de lazer - a 1, 10 ou 100 quilômetros de sua casa. O nível do mar, daqui a 50 anos, pode subir 1, 5 ou 20 metros. O preço da água potável daqui a vinte anos pode alcançar 1, 2 ou 10 dólares. Hoje mais de metade da humanidade já não tem acesso a água potável. Amanhã podem ser 90 ou 99%. Pense nisto: conservação é qualidade e quantidade. Cada hectare faz diferença.
A moral da galinha
ou
de coisas que aprendi com os "índios"
As galinhas botam seus ovos invariavelmente pela manhã - estejam os ovos fecundados ou não - após o cantar do galo, que costuma acontecer exatamente às quatro da madrugada. Daí aquele samba "galo cantou às quatro horas da manhã..." não ser ficção, mas a mais pura verdade. Isso qualquer criança da roça sabe, e qualquer criança hoje criada nos galinheiros verticais dos grandes núcleos urbanos desconhece.
Mas esse texto é sobre pessoas, não sobre galináceos. Pessoas são um pouco mais complicadas que os galináceos, e mesmo que outras aves, porque, embora não botem ovos, deixam de botá-los pelos mais variados motivos. Mulheres não são galinhas, apesar da denotação pejorativa a que são associadas algumas delas, devido a certos comportamentos tidos como moralmente incomuns, e por isso mesmo, inaceitáveis.
Vejamos, as galinhas botam ovos todos os dias. As mulheres menstruam a cada mês, mais ou menos, e mesmo assim sujeitas a atrasos, pílulas, estresses, regulação menstrual num bando de mulheres que convivem juntas, e todas essas complicações que nós, humanos, vemos de perto, e assim entendemos melhor, e num lampejo provável de antropomorfismo acabamos nos situando várias ordens de magnitude acima da complexidade daquelas bípedes penadas. Não, não. Não tenho tanta certeza de que as galinhas sejam seres assim tão simples.
Se bem que para a galinha sujeira é comida, pau é cama e pinto é gente, se é que você me entende. Tudo muito simples. Para nós não, nem toda cama serve, tem lençol que pinica, tem quem não durma sem edredon, o travesseiro tem que estar assim, assado, entende? Tudo muito complicado.
Então, eu queria mesmo falar sobre a moral. Tem quem ache tudo absurdo, tem quem não estranhe nada. Não sabemos as opiniões das aves não-passeriformes acerca da moral, e por isso concluímos logo que elas não têm opinião nenhuma. Ledo engano. Ou não, quem vai saber? Mas parece que nossa espécie tem mesmo uma ampla variedade de opiniões morais, indo desde o Velho até o Novo Testamento, para dar um só exemplo, bem global, e que cabe num único livro.
Mas ali atrás eu apresentei uma dedução lógica que talvez tenha passado despercebida. Disse que as mulheres apelidadas carinhosamente de galinhas o são devido a seus comportamentos incomuns,
por isso, inaceitáveis. Ora, a diversidade moral na espécie humana costuma ser encarada apenas por seu viés antropológico, como uma curiosidade de circo, como índios que perfuram os beiços, andam pelados, pintam-se de cores gritantes e empunham seus arcos, flechas e tacapes cantando canções de guerra assustadoras em línguas estranhas. Quem não aprecia um entretenimento? Mas moral é coisa séria, e a verdade é que a moral varia bastante de pessoa a pessoa, com algumas pessoas considerando lícito o que outras achariam vergonhoso, e assim por diante. Mas vivemos em uma sociedade cheia de regras, onde quem foge à missa foge à média, e tem que arcar com as conseqüências. A exemplo da mulher que ganha certos apelidos.
Vamos falar de homens homossexuais, gays, bichas, viados, porque para mal entendedor quatro palavras nem sempre bastam. E quando o assunto é esse quase todo mundo finge que não viu.
Aproximemo-nos devagar. Primeiro, a moral masculina por excelência - a do garanhão. Todo pai quer um filho que coma todas as garotas, que seja o macho alfa do seu bando, com espírito de liderança, forte, decidido, corajoso e machão. Resumindo, e se for pra medir tudo isso numa única variável (que os cientistas chamam de "surrogate"), se comer um monte de meninas já está de bom tamanho.
Agora, com as meninas o assunto é outro. Nenhuma família quer uma filha galinha. A idéia é bem outra. A verdadeira dama, a mulher que se valoriza, que procura encontrar um marido decente, trabalhador, honesto, para constituir uma boa família, deve ser recatada, se guardar para o homem certo, não vai assim com qualquer um não. O ideal até outrora era se casar virgem, e ainda há quem siga tais preceitos, como há pais que os sustenham.
Está certo, já temos o estereótipo ideal do homem e da mulher em nossa sociedade, e ninguém reclama. Mas e os gays? Serão pontuais como o cantar do galo, previsíveis como o desovar da galinha, ou variáveis como bons seres humanos que são? Para minha tristeza, vejo uma variabilidade muito menor do que seria de se esperar de pessoas à margem da sociedade. À margem, sim, no sentido em que a grande sociedade copia e recopia seus valores em todos os meios possívels, forçando as pessoas a seguirem aquilo ali para não ganharem apelidos perniciosos, mas apenas para os heterossexuais. O homem deve ser garanhão, a mulher uma dama; o gay não importa. Fora aquele estereótipo da bichinha desmunhecada, que poderia talvez ser considerado o estereótipo em que a sociedade gostaria de ver enquadrados todos os gays, ninguém se preocupa com o que eles vão fazer na privacidade de seus lares, ou em suas festinhas particulares, onde só entra entendido.
Assim, seria de se esperar que os gays tivessem uma liberdade moral maior, que pudessem inventar suas próprias morais, suas próprias regras de conduta, suas maneiras mais individualizadas de encarar a vida, o sexo, o certo e o errado no dia-a-dia. Ledo engano. Muitos gays que conheci acabam tentando se definir pelos papéis já existentes de macho alfa e fêmea mansa. Alguns agem como verdadeiros procriadores, agindo sexualmente numa maneira que deixaria os pais orgulhosos, caso suas aventuras tratassem de criaturas do sexo oposto. Outros agem como verdadeiras fêmeas, para quem a castidade e a retidão, ao menos no discurso, têm um valor imensurável. Para aqueles, é comum no meio GLS receberem o apelido de
putas, o que para mim é uma desconsideração ao fato de fazerem o que gostam, sem cobrar por isso, e seguindo o mesmo instinto dos homens heterossexuais (aos quais, por uma questão genética, hormonal, fisiológica, anatômica e comportamental, sentem-se mais assemelhados). Para os demais, os que se dizem recatados, sua máxima de vida é encontrar O homem para se casar. Querem, como todo mundo, encontrar sua alma-gêmea, mas acabam batendo tanto nessa tecla que aproveitam menos, ou sofrem mais, com cada marmanjo que aparece para se "aproveitar" de seus dotes. Assim mesmo: "aproveitar-se". Ora, até onde sei, se uma pessoa se aproveita da outra, é sinal que esta outra não se divertiu tanto. Aí o problema é de quem?
Aprendi com alguns índios a moral que ninguém é de ninguém, ao mesmo tempo em que todos são de todos. Se eu posso dar prazer a mais de uma pessoa, não seria uma crueldade restringir esse dom a apenas uma? Se só se vive uma vez, que mal pode haver em experimentar? Claro, nada em excesso, e um relacionamento a dois é mais que saudável, é bom. Mas quem nega que há uma grande assimetria no comportamento sexual, no desejo e na necessidade de monogamia, por parte do homem e da mulher? Que os dois queiram, às vezes, pular a cerca, é natural, mas cada qual tem seus critérios, suas urgências, suas satisfações bem próprias da natureza interior de cada um. Negar isso, e exigir monogamia eterna de todos os casais, como sinônimo de virtude, é papo de padre, de quem sequer pode opinar, com embasamento empírico, sobre o assunto.
Então, até quando os gays vão se comportar como as galinhas, sendo tão previsíveis, tão limitados em suas morais, seguindo apenas o que foi ditado como regra para outras pessoas? Quando aprenderão a enxergar com os próprios olhos, e definir as próprias regras de conduta, ao invés de tachar os outros disso ou daquilo apenas por correrem atrás dos próprios instintos?
Esse tempo ainda há de chegar. E os gays serão os homens mais livres da face da Terra, porque estarão entre iguais e reconhecerão no próximo o próprio instinto, que, apesar das diferenças, guarda grandes semelhanças entre todos os homens, homo- ou heterossexuais. Enquanto isso, tratemos os gays recatados com respeito, aquele mesmo respeito à diversidade que pregamos para tudo o mais, mas com uma diferença: com a sugestão de que percebam que estão se guardando enquanto o tempo passa, a verdade grassa e o mingau engrossa.